Blog do Grupo de Pesquisa Politeia – Coprodução do Bem Público: Accountability e Gestão, da Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas – UDESC/ESAG
Por Bianca Kaizer de Oliveira e Maryane Cristina de Souza Crestani*
Durante o ano de 2020, a sociedade viveu em estado de emergência de saúde pública com o aumento de casos de Covid-19. O fechamento e limitação de circulação, comércios e atividades gerais, com o propósito de evitar a propagação do vírus, incluiu as atividades do setor cultural, que foi um dos setores mais prejudicados pela pandemia. Com o fechamento de espaços em que costumam ocorrer atividades culturais, muitas organizações e movimentos informais perderam sua principal fonte de renda. Nesse cenário, nasce a Lei Aldir Blanc (LAB), que parte da mobilização de diversos atores culturais com a finalidade de buscar recursos para conter o prejuízo da pandemia e garantir a sobrevivência dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura.
Devido à dimensão e à urgência da problemática, a Lei Aldir Blanc (Lei 14.017, de 2020) teve seu projeto inicial (PL 1075/20) rapidamente proposto pela Deputada Federal Benedita da Silva em meados de março de 2020 (LOPES; GARCIA, 2020). Mesmo com o desprezo do governo federal perante o setor cultural, foi possível verificar uma rede de agentes, entre entidades do poder público e representantes da sociedade civil, que logrou se articular em prol da emergência cultural e, com pressão e negociações políticas, alcançou a aprovação da lei e a sanção do presidente.
Após a aprovação, como resultado, a lei destinou três bilhões de reais ao setor cultural no período da crise, inicialmente até dezembro de 2020. O valor foi repassado para os estados, municípios e ao Distrito Federal, com o propósito de aplicar o recurso para trabalhadores do setor, manutenção de espaços e outros (BRASIL, 2020). Após o vencimento, a LAB recebeu ampliação dos prazos para utilização de recursos por mais um ano, concluído em dezembro de 2021 (BRASIL, 2021). Por consequência dos resultados gerados pela LAB, foi promulgada no dia 08 de julho de 2022 a “Lei Aldir Blanc 2” (Lei 14.399, de 2022), que prevê repasses anuais de três bilhões de reais ao setor cultural com vigência de cinco anos (BRASIL, 2022).
A criação da lei e seu processo de construção são muito significativas para o setor cultural, que tem sofrido com a falta de orçamento público e sucessivos desmontes das políticas públicas voltadas para esse setor (SILVEIRA et. al., 2022). Tal feito não seria efetivado sem a articulação dos atores envolvidos: organizações da sociedade civil, deputados federais e estaduais e senadores de diversos partidos, movimentos sociais, entidades do poder público, entre outros. O envolvimento desses atores foi fundamental para o processo de criação da lei, pois integrou diversos grupos sociais e abarcou diferentes campos culturais, como cultura indígenas, LGBTQ+, regionais, circenses, entre outras.
A mobilização gerada mostra bem como é possível articular de forma rápida e efetiva diversos segmentos da sociedade para produzir um bem comum. Por meio dessa mobilização, se cria uma conexão entre a participação do cidadão e a produção dos serviços públicos, dispondo de novas perspectivas para a administração pública (SALM; MENEGASSO, 2010). Eis que se evidencia um exemplo de coprodução do bem público, que une Estado e cidadão para fomentar a democracia e produzir bens e serviços públicos (DE MATTIA, 2014, p. 104). “As pessoas se engajam em processos participativos quando são motivadas pela certeza de que sua contribuição específica poderá alterar o rumo e a formulação de políticas e normas que as afetam diretamente” (ROCHA; SCHOMMER; DEBETIR; PINHEIRO, 2021).
Tão importante quanto a motivação é ter os canais e a capacidade coletiva de coproduzir: os cidadãos podem estar interessados em colaborar, mas ter dificuldade em executar a coprodução, seja pela dificuldade e complexidade das tarefas envolvidas, da falta de orientação e abertura das demais partes, ou por lhes faltar competências necessárias. A coprodução nasce de uma relação recíproca entre os profissionais e os cidadãos, entre o governo e a cidadania (ALFORD; YATES, 2016).
A construção coletiva da Lei Aldir Blanc incluiu a realização de diversos web seminários, lives e debates em grupos em mídias sociais. A diversidade dos indivíduos envolvidos ampliou capacidades para o desenvolvimento da coprodução. Tanto profissionais técnicos da área cultural, como pessoas que não tinham tanto conhecimento acerca de formulação de políticas públicas puderam participar do processo de construção da lei. Ou seja, “por meio de seu engajamento, atores leigos podem construir coalizões organizacionais, aprender a apreciar o valor da liderança pluralista que incorpora diversos interesses e desenvolver habilidades participativas mais fortes” (JO; NABATCHI, 2018, p.234).
Segundo Stott (2018), o valor adicionado é um dos princípios de coprodução. Por meio do valor adicionado, são discutidas a importância da tangibilidade de resultados, a geração de capital individual e social e a valorização da diversidade. A mobilização gerada pela Lei Aldir Blanc é um grande exemplo do valor adicionado na prática e do impacto positivo da coprodução. Criaram-se novas redes de relações e foram fortalecidos contatos que já existiam antes da pandemia. Além disso, adquiriu-se habilidades como negociação e mediação, pautadas em uma construção de confiança e colaboração, haja vista que a confiança é reconhecida como uma das condições-chave para a colaboração (FLEDDERUS, 2018).
O distanciamento social, ocorrido em 2020, abriu novas portas para a coprodução, mostrou que mesmo sem encontros físicos, é possível gerar interação social. A construção da lei é um grande legado para o Brasil. Não se construiu apenas uma política cultural, foi construída uma nova perspectiva para a cultura política (TURINO, 2020).
* Texto elaborado por Bianca Kaizer de Oliveira e Maryane Cristina de Souza Crestani, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.
REFERÊNCIAS
ALFORD, J.; YATES, S. Co-Production of Public Services in Australia: The Roles of Government Organizations and Co-Producers. Australian Journal of Public Administration. v. 75. n. 2, p. 159–175. 2016.
ARAPONGAS, Prefeitura Municipal. [Imagem ilustrando o compositor Aldir Blanc.]. 2020. Disponível em: <https://www.arapongas.pr.gov.br/8332_noticia_lei-aldir-blanc—resumo>
BRASIL, Câmara dos Deputados. Câmara aprova ajuda emergencial de R$ 3 bilhões para o setor cultural durante pandemia. 2020. Disponível em:
DE MATTIA, C.. A metodologia de elaboração dos Planos Estaduais de Cultura fomenta a coprodução do bem público?. POLÍTICAS CULTURAIS EM REVISTA, v. 17, p. 100-118, 2014.
FLEDDERUS, Joost. The Effects of Co-Production on Trust. In: Brandsen, T., Steen, T., & Verschuere, B. (Eds.). (2018). Co-Production and Co-Creation: Engaging Citizens in Public Services (1st ed.). Routledge. p. 258 – 265.
JO, Suyeon; NABATCHI, Tina. Co-Production, Co-Creation, and Citizen Empowerment. In: Brandsen, T., Steen, T., & Verschuere, B. (Eds.). (2018). Co-Production and Co-Creation: Engaging Citizens in Public Services (1st ed.). Routledge. p. 231 – 239.
LOPES, M. F. A.; GARCIA, R. O. G. Lei Aldir Blanc: formulação e aplicação no município de Franca. Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. LAP – Laboratório de Análise de Política. N. 4. 2020.
ROCHA, A. C.; SCHOMMER, P. C.; DEBETIR, E.; PINHEIRO, D. M. Elementos estruturantes para a realização da coprodução do bem público: uma visão integrativa. Cadernos EBAPE.BR. 19(3), p. 538–551. 2021. Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/83371>
SALM, José. F.; MENEGASSO, Maria Ester. Os modelos de administração pública como estratégias complementares para a coprodução do bem público. Revista de Ciências da Administração, v.11. n. 25. p. 97-120. set/dez 2009. Disponível em: <http://goo.gl/7S7W>.
SILVEIRA, L. B.; WIVALDO, J. N. S.; ZANOTTI, L. A. Z.; PEREIRA NETO, A. J. A operacionalização da lei Aldir Blanc por meio do comitê internacional de emergência cultural de lavras e região. v. 27. n. 2. 2022.
STOTT, L. Co-production: Enhancing the role of citizens in governance and service delivery. European Union. Technical Dossier. n. 4. 2018.
TURINO, C. Lei Aldir Blanc: modos de usar. 2020. Disponível em:
<https://revista.ibict.br/p2p/article/view/5432/5082>. Acesso em: 11/07/2022. VERMELHO. [Imagem ilustrando a diversidade cultural brasileira.]. 2020. Disponível em: <https://vermelho.org.br/coluna/desafios-da-gestao-da-cultura-no-crato/> Acesso em: 21/07/2022.
Governando o futuro #PostCOVID19 na Ibero-América é o tema do XI GIGAPP 2022.
O evento busca avançar na agenda de pesquisa (acompanhamento, avaliação intermediária) sobre andamento das iniciativas, políticas e modelos para dar vida à agenda ODS 2030 e seus 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, tanto em nível nacional quanto subnacional (estadual, comunitário, provincial e local), e como as agendas de reforma administrativa para os ODS responderam ou não a tais reivindicações em um contexto de pandemia e pós-pandemia.
Agenda:
28 de março – Chamada de Trabalhos (resumos). Chamada de propostas para apresentações, trabalhos e contribuições.
25 de abril – Último dia. Fechamento do prazo para recebimento de propostas de trabalhos e contribuições
09 de maio – Publicação do Programa Preliminar #GIGAPP2022
05 de setembro – publicação do Programa Definitivo Congreso #GIGAPP2022
21 a 23 de setembro – XI Congreso Internacional en Gobierno, Administración y Políticas Públicas #GIGAPP2022
São 39 temas sobre governo, administração e políticas públicas. A professora Paula Chies Schommer, da Esag-Udesc, participa do grupo coordenador do Tema 14, juntamente com colegas da FGV Eaesp e UnB.
*Por Sueli Farias Kieling, André Luiz Caneparo Machado, Luana Casagrande e Maxiliano de Oliveira
A pandemia de Covid-19 vem se mostrando desafiadora, persistente e complexa. Devido ao alto grau de transmissibilidade da doença, as pessoas internadas em hospitais e os familiares precisavam de distanciamento social, sobretudo quando não havia vacinas disponíveis. Mas a dificuldade de comunicação entre pacientes e familiares persiste e não apenas para pessoas com Covid.
As unidades hospitalares buscam promover vias de comunicação entre pacientes e seus familiares, de forma a aproximá-los virtualmente. Diante desse cenário, um grupo de alunos da disciplina Governança e Redes de Coprodução do Bem Público, do Mestrado Profissional da Universidade do Estado de Santa Catarina Udesc Esag, ministrada em 2021, após conversas e trocas de ideias com assistentes sociais de hospitais da região da Grande Florianópolis, desenvolveram um projeto colaborativo.
Assim surgiu a Campanha Conexão e Suporte de Vidas em Tempos de Pandemia, realizada entre agosto de 2021 e janeiro de 2022, buscando arrecadar fundos para aquisição de equipamentos tecnológicos a serem doados aos hospitais participantes, contribuindo um pouco para enfrentar o desafio posto.
A Campanha foi noticiada em canais de comunicação – rádio, mídias sociais como blog do Grupo de Pesquisa Politeia Udesc Esag, Facebook, Twitter e Instagram vinculados à Universidade. Manifestamos aqui nossos agradecimentos pelo trabalho e dedicação disponibilizados pela equipe de jornalismo da Udesc.
Finalizada a Campanha, o grupo de alunos formado por André Luiz Caneparo Machado, Luana Casagrande, Maxiliano de Oliveira, Sueli Farias Kieling, com orientação da professora Paula Chies Schommer, conseguiu por meio das arrecadações comprar 02 tablets e 03 roteadores para serem doados aos hospitais participantes: Hospital Florianópolis, Hospital Governador Celso Ramos, Hospital Infantil Joana de Gusmão, Hospital Nereu Ramos, Hospital Regional Homero de Miranda Gomes.
Como os bens que seriam doados são de características diferentes entre si, foi realizada uma reunião de fechamento da Campanha, na qual houve o sorteio dos itens a serem doados entre os participantes. Esta reunião ocorreu no dia 25/02/2022, e está disponível na íntegra por meio deste link.
Com a entrega dos equipamentos aos hospitais, entre os dias 09 e 11 de março de 2022, o grupo se sente gratificado ao vencer os obstáculos do processo de coproduzir para a realização do bem público e, especialmente, por contribuir de alguma maneira com essas instituições, de importância expressiva para a sociedade.
A realização se apresentou desafiadora em todas as nuances do projeto. Ao mesmo tempo, contou com a participação e o engajamento necessários dos alunos nesta iniciativa, a credibilidade e legitimidade perante os hospitais, o engajamento de assistentes sociais nos hospitais e das pessoas que foram convidadas a participar e fizeram suas doações. Houve também a busca de transparência sobre cada etapa, buscando esclarecer a todos os interessados sobre os critérios e ações, além de apresentar a prestação de contas da Campanha, ao final. Esses aspectos se mostraram na concretização dos denominados elementos estruturantes para a realização da coprodução do bem público, como engajamento, transparência, informação, confiança e participação (Rocha et al, 2021).
Outro aspecto relevante foi a participação do Instituto Comunitário Grande Florianópolis, ICOM, que atua junto às comunidades de maneira a fortalecê-las, tendo como pilares: investimentos sociais nas comunidades, apoio técnico e financeiro às OSCs e produção e disseminação de conhecimento (ICOM, 2021). Por meio do Fundo de Impacto para a Justiça Social, Linha Emergencial Coronavírus, do ICOM, foi possível o auxílio a alguns hospitais, por intermédio das associações vinculadas às unidades hospitalares, com a doações de recursos para itens como cestas básicas, produtos de higiene e fraldas.
Diante de todo o exposto, queremos por fim agradecer a todos os participantes desta Campanha, que se sensibilizaram pela ação e motivaram-se em auxiliar os hospitais no trabalho desafiador que executam.
Alguns dados são importantes de serem expostos e estão disponíveis por meio deste link:
-A prestação de contas com relatório e comprovante das arrecadações;
-As notas fiscais para fins de comprovação das aquisições;
-A gravação da reunião de fechamento da Campanha com sorteio dos itens tecnológicos, que contou com a participação de servidores dos Hospitais participantes; e
O presente texto tem como objetivo analisar a relação entre os conselhos gestores de políticas e a coprodução de bens e serviços públicos. Pretende-se, aqui, apresentar um pouco sobre o funcionamento dos conselhos e discutir sobre seus papéis frente à sociedade e a administração pública, bem como os principais desafios enfrentados pelos conselhos da cidade de Florianópolis.
Pretende-se entender o porquê de a participação cidadã em conselhos de políticas públicas se configurar como um exercício de socialização, publicização e construção coletiva e de como os conselhos se configuram como um mecanismo para garantir espaços de participação. Abordaremos a configuração dos conselhos no município de Florianópolis, dando ênfase ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).
Participação social, conselhos e coprodução
Entende-se coprodução como o compartilhamento de responsabilidades no planejamento e/ou na provisão de bens e serviços públicos, por meio da interação entre profissionais-servidores e cidadãos-usuários. Os arranjos organizacionais que promovem a participação social e a interação entre agentes, públicos privados e cidadãos, como os conselhos, geram oportunidade para que a coprodução ocorra e se desenvolva (RONCONI, DEBETIR, DE MATTIA, 2011). Os conselhos gestores de políticas públicas são relevantes, também, para o exercício do controle social.
A participação social consiste no compartilhamento de poder político entre o Estado e demais agentes, não necessariamente caracteriza-se como coprodução, enquanto o controle social é a inserção dos cidadãos no papel de orientar e fiscalizar a ação do estado (BAVA, 2016).
Para que seja possível ocorrer de fato a participação social no Estado é preciso mais que a articulação e a organização da sociedade civil. É necessário um tipo de gestão pública específica, que coopere para o trabalho em rede, denominado governança pública (RONCONI, 2018).
Na democracia liberal, a participação social é institucionalizada, estruturada e intermediada pela legislação, mas também verifica-se outras formas de auto organização e movimento não formais. Existem instrumentos normativos (leis, decretos e resoluções) que criam e regulam conselhos e conferências de políticas públicas na administração pública. Para ser viável a continuidade dos conselhos, eles precisam apresentar aspectos de legitimidade que se desdobram em condições de governabilidade (capacidades políticas) e governança (capacidades administrativas) (SPECIE, 2015).
Por isso, a abertura e apoio do gestor público à participação, juntamente com seu conhecimento técnico e viabilização de condições para as atividades conjuntas, se torna imprescindível no desenvolvimento e consolidação dos conselhos. A atuação conjunta entre agentes públicos, profissionais e cidadãos, representando diversos segmentos da sociedade interessados e afetados por certa política ou serviço, permite um processo contínuo de aprendizagem, que ocorre na prática, que requer e também desenvolve capacidades específicas.
Portanto, a participação social é uma condição imprescindível para que os conselhos existam e funcionem, sendo um meio pelo qual o cidadão informa, opina, produz e acompanha o andamento da administração pública local.
A participação nesses conselhos pode ter características diferentes, dependendo da natureza do conselho: consultivo, deliberativo, normativo e fiscalizador (Quadro 1). Alguns deles podem desempenhar mais de um desses papéis.
Quadro 1: Tipos de conselho conforme seu papel na política pública
Tipos de conselhos de políticas públicas:
Características relativas ao papel e ao poder dos conselhos:
Consultivo
Aquele em que seus integrantes têm o papel apenas de estudar e indicar ações ou políticas sobre sua área de atuação.
Deliberativo
Aquele que efetivamente tem poder de decidir sobre a implantação de políticas e/ou a administração de recursos relativos à sua área de atuação.
Normativo
Estabelece normas e diretrizes para as políticas e/ou a administração de recursos relativos à sua área de atuação.
Fiscalizador
Fiscaliza a implementação e o funcionamento de políticas e/ou a administração de recursos relativos à sua área de atuação.
Fonte: Elaborada pelas autoras com base em Oliveira, Martins e Melo, 2018
Os conselhos são caracterizados como “canais de participação política, de controle público sobre a ação governamental, de deliberação legalmente institucionalizada e de publicização das ações do governo” (BRONZO, 1988, p. 280). A partir da Constituição Federal, houve o aumento da participação dos cidadãos com a divisão paritária dos conselhos. Tendo, portanto, a sociedade civil e o governo o mesmo poder deliberativo nesses espaços, apesar de que nem todos os conselhos representativos carregam consigo essa definição de paridade, como será explicado a seguir.
Conselhos e controle social
Um dos elementos estruturantes da coprodução é a accountability (ROCHA, SCHOMMER, DEBETIR e PINHEIRO, 2021), conceito esse que corresponde à “responsabilização permanente dos gestores públicos em termos da avaliação sobre a conformidade e legalidade, mas também da economia, da eficiência, da eficácia e da efetividade dos atos praticados em decorrência do uso do poder que lhes é outorgado pela sociedade” (ROCHA, 2007, p.3). Os mecanismos e processos de controle interno, controle externo e controle social da administração pública são necessários para a realização da accountability.
Órgãos como o Tribunal de Contas e o Ministério Público são parte do sistema de controle externo da administração pública. As controladorias ou auditorias internas, por exemplo, são órgãos de controle interno. As ouvidorias e conselhos, por sua vez, estabelecem relações entre o controle interno e o controle social.
Um papel relevante dos conselhos é a demanda e a produção de informações públicas qualificadas, e o debate sobre elas, para subsidiar a análise e a deliberação sobre políticas públicas e a alocação de recursos. Sem informação, também não existe controle social. Conselhos são essenciais para a coprodução através da construção de instrumentos, de diagnósticos para direcionar, definir, publicizar informações sobre determinadas áreas de atuação de cada um deles. Assim, é possível que a sociedade civil se esclareça e construa um caminho que as guie nos processos de participação social, que podem gerar a coprodução no futuro. A partir da coleta dessas informações e dados, da transformação em um diagnóstico sobre determinada problemática social, e posteriormente da aplicação de um recurso público, é possível promover coprodução de bem ou serviço público (PEREIRA, 2021).
Logo, o controle social é uma ferramenta importante tanto para a organização interna dos conselhos, bem como para seus participantes cobrarem o uso por parte do governo. Os conselhos se configuram como uma forma de ampliar e qualificar a democracia, por meio de gestores e cidadãos interessados, os quais permitem o aprimoramento do controle social e a melhoria na confiança daqueles que buscam e participam, de alguma forma, da tomada de decisões (MENDONÇA, 2021).
Conselhos de políticas públicas em Florianópolis
Quando se olha para cada município, apesar de os conselhos manterem suas características: deliberativos, paritários e normativos, nota-se mudança na estrutura, os atores responsáveis e seus papéis dentro dos conselhos. Essas características são pautadas por uma legislação municipal e pela trajetória e dinâmica própria de cada contexto. Cada conselho confere singularidade em suas características, e por isso, cada um tem uma estrutura, lei e características próprias.
Em relação aos papéis dos conselheiros, o mesmo se configura como um trabalho voluntário, que exige uma carga de trabalho grande, devido ao conhecimento específico que cada área temática exige, e há a necessidade de levar as questões à sociedade civil antes da tomada de decisões. Esses aspectos demandam tempo, conhecimento e conexões com o segmento que representa.
O Articula Floripa é um projeto que tem como objetivo promover e garantir direitos de crianças e adolescentes em Florianópolis por meio do fortalecimento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e da articulação entre os atores do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA). Logo após seu início, em 2017, elaborou um plano de ação que guiou as ações. Uma delas incluiu encontros, workshops e entrevistas com os conselheiros do CMDCA. Esse trabalho foi apelidado de “diagnóstico da atuação dos conselheiros”, pois antes de fortalecer o trabalho realizado, era necessário conhecer quem está por trás dessa mediação.
Apesar de os conselheiros possuírem um currículo qualificado, um desafio atual é o de como utilizar esses perfis para produzir algo em conjunto, pois, muitas vezes, os conselheiros eleitos não conhecem o fluxo dos processos dentro do conselho, e esse processo de aprendizagem demanda tempo e energia.
Os conselhos acabam se tornando, também, espaços de aprendizagem e formação, tanto para os cidadãos, como para os gestores que pouco conhecem sobre as atividades realizadas por eles. Algo que exige tempo e certa continuidade nas ações e relações.
Esse tipo de diagnóstico, que tem a participação de usuários, do poder público e da sociedade civil, permite uma coleta de dados que servem de base para dimensionar as necessidades, iniciar novos projetos, realizar ações conjuntas e tomar decisões. A participação desses outros atores envolvidos permite um olhar mais amplo para o problema.
Guerreiro Ramos (1989) diz que há espaços sócio-aproximadores e sócio-afastadores. Aqui, nota-se que os conselhos se configuram como um espaço sócio-aproximador ao passo que estabelece essa dinâmica de participação entre diversos atores, configurando como um movimento de coparticipação e coprodução.
Os conselhos em Florianópolis enfrentam alguns desafios de gestão e comunicação. Há certa dificuldade em achar informações básicas sobre ele, como a qual órgão estatal o conselho está vinculado, qual a composição da gestão atual e anteriores, atribuições e objetivos dos mesmos.
Cíntia Moura Mendonça, co-vereadora do Coletiva Bem Viver e presidenta do Fórum Intersetorial de Políticas Públicas de Florianópolis nos Conselhos de Assistência Social e CMDCA, pontua que a necessidade de desburocratizar o acesso às informações que os conselhos possuem, e que, infelizmente, não possuem apoio do poder público para utilizar de um sistema capaz de fazer essa ponte com a sociedade (MENDONÇA, 2021).
Essa falta de visibilidade dos conselhos é observada no site da Prefeitura Municipal de Florianópolis, no qual constam apenas a descrição de quatro conselhos municipais: Conselho Municipal de Direitos LGBT; Política Cultural de Florianópolis; Transparência e Combate a Corrupção e o Conselho da Cidade de Florianópolis. Porém, só no ano de 2018, foram contabilizados 37 conselhos gestores de políticas em Florianópolis, durante a Assembleia Popular de debate sobre conselhos de políticas públicas e defesa de direitos (POPULAR, 2018).
Percebe-se, portanto, a necessidade de a Prefeitura melhorar a transparência e visibilidade direcionadas aos conselhos, pois, caso contrário, corre-se o risco de se tornarem menos responsivos e reconhecidos pela sociedade e consequentemente não cumprirem o papel para o qual se propõem.
Renata Pereira da Silva, Coordenadora de Desenvolvimento Institucional e Programas Sociais do ICOM e Coordenadora do Articula Floripa, pontua uma outra questão importante acerca dos conselhos de Florianópolis: atualmente, um dos pontos que mais enfraquece o movimento é a falta de participação nas lutas que defendem a permanência dos conselhos. Muitos integrantes de conselhos, inclusive os do poder público, não conseguem dedicar as horas necessárias ao trabalho no conselho e há uma baixa procura por parte de voluntários para participar dessa luta constante que os conselhos travam buscando por permanência e recursos para se manter (SILVA, 2021).
A coordenadora do ICOM afirma que já houve movimentações para solucionar esse problema, que seria necessário pagamento e destinação de tempo de trabalho para servidores específicos realizarem certas tarefas. Contudo, isso não ocorreu e isso deixa os conselhos mais expostos perante aqueles que detém poder (SILVA, 2021).
Conclui-se que os conselhos se tornam um mecanismo para garantir espaços da participação através da representação das organizações e segmentos da população, sendo vistos como uma contribuição para a qualificação na participação política.
Para que cumpram com seus propósitos, é necessário promover transparência por parte do governo local e dos conselhos em si, instigar a participação por parte da sociedade, divulgar sua função e quais as vantagens de utilizar tal mecanismo para melhoria nas entregas da administração pública para a sociedade, promover capacitações e outras condições para que se aproveite as capacidades de seus participantes e se compartilhe poder nas decisões e ações e no controle sobre processos e resultados.
Convergências e delimitações entre coprodução e conselhos
A partir das definições dos termos apresentados, é possível notar a semelhança entre conselhos e coprodução, sob a perspectiva da participação social. Ambos incluem a participação cidadã no Estado, fortalecendo a democracia. Mas os conselhos, por si só, não representam o mesmo significado teórico e prático que a coprodução. Enquanto os conselhos são dispositivos instaurados por lei na constituição para incluir a população nas decisões estatais e no controle social, a coprodução vai no sentido do compartilhamento de responsabilidade para planejar ou elaborar as políticas e bens públicos, mas sobretudo que haja participação dos cidadãos-usuários na implementação das políticas e na entrega (ou no uso) dos serviços em si.
Os conselhos podem ser instrumentos importantes para promover a coprodução. Como a coprodução não é garantida por lei, ela depende de um arranjo governamental que colabore para a sua execução: a governança pública. Quanto mais fortalecida estiver a participação social em uma localidade, seja através de conselhos ou por outras ferramentas, existe mais chance de o Estado trabalhar com a coprodução. Conselhos gestores ativos, através do controle social, podem fazer pressão pública, além de promover oportunidades para que os governantes utilizem mais amplamente a coprodução como uma estratégia para a entrega de serviços públicos.
Conclusão
Diante do exposto, nota-se o quanto o papel dos conselhos é imprescindível para a uma administração pública que preza pela democracia e direitos de seus cidadãos. Uma das principais funções dos conselhos é justamente promover participação social nos processos que gerem o país. Essa participação torna o cidadão um agente mais efetivo na sociedade em que está inserido.
Nesse sentido, os conselhos realizam controle social de maneira organizada, analisam as políticas necessárias para sua área, para decidir sobre a implementação das mesmas ou mesmo para fiscalizar o andamento das políticas públicas que devem ser aplicadas.
Apesar da grande responsabilidade que um conselho tem para com o país, estado ou município, ainda enfrenta muitos problemas para continuar realizando seu propósito, assim como foi mencionado anteriormente, por pessoas que lidam com a realidade de trabalhar em conselhos, como Renata Pereira da Silva e Cíntia Moura Mendonça.
A ausência de soluções para algumas problemáticas, como a falta de uma cadeira para adolescentes no CMDCA ou mesmo sem a presença do movimento estudantil em causa correlacionadas, é algo a mudar.. Segundo Cíntia Mendonça, o problema com as últimas gestões do município de Florianópolis que não fornecem apoio para os conselhos, configuram-se como empecilhos notáveis na execução do trabalho dessa ferramenta de participação social.
Nos últimos anos, o Brasil tem sido bombardeado de ações políticas que tentam, pouco a pouco, extinguir certas inovações institucionais que estavam sendo consolidadas desde os anos 1980. Apesar disso, os conselhos e seus agentes, independente de suas instâncias, continuam ativos, tentando promover o controle social e a coprodução do serviço público, fomentando a transparência e fiscalização da gestão pública. Eles são essenciais para que o Brasil possa continuar fornecendo o que é direito do cidadão, que são políticas públicas de qualidade e adequadas a cada realidade, buscando, assim, a manutenção de uma administração pública mais justa e democrática.
* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Gabriela Baia, Isabela Pedroso Troyo e Monyze Weber Kutlesa, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no segundo semestre de 2021.
Referências
BAVA. Maria; ROCHA, Juan. Participação e o Controle Social e seu papel na construção da Saúde. Ministério Público de Santa Catarina: Controle e participação social, Cap.18, 2016.
GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações. São Paulo: FGV, 1989
MENDONÇA, C; PEREIRA, Renata. Conselhos e coprodução. Aula da disciplina de coprodução do bem público da Universidade do Estado de Santa Catarina. Data: 9-Dez-20212
MENDONÇA, Cíntia Moura. (RE) PENSANDO A PARTICIPAÇÃO E O SEU PAPEL NA DEMOCRACIA À LUZ DO PRAGMATISMO: um estudo junto ao fórum de políticas públicas de Florianópolis. 2019. 231 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Administração, A Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
OLIVEIRA, A.; MARTINS, S.; MELO, E. Participação e Funcionamento dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas. Sociedade, Contabilidade e Gestão, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, mai/ago, 2018
POPULAR, Assembleia. Assembléia Popular de debate sobre conselhos de políticas públicas e defesa de direitos, 2018
ROCHA, A; SCHOMMER, P; DEBETIR, E; PINHEIRO, D. Elementos estruturantes para a realização da coprodução do bem público: uma visão integrativa. Cad. EBAPE.BR, v. 19, no 3, Rio de Janeiro, Jul./Set. 2021
Ronconi, L. F. de A., Debetir, E., & De Mattia, C. (2011). Conselhos Gestores de Políticas Públicas: Potenciais Espaços para a Coprodução dos Serviços Públicos.Contabilidade Gestão E Governança, 14(3). Recuperado de https://www.revistacgg.org/contabil/article/view/380
RONCONI, Luciana. COPRODUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS AOS DIREITOS DA MULHER: O CASO DO CONSELHO MUNICIPAL DOS DIREITOS DA MULHER DE FLORIANÓPOLIS. Revista dos Estudantes de Públicas, vol. 3 n. 1, 2018.
SALM, José Francisco Coprodução de bens e serviços públicos In: BOULLOSA, Rosana de Freitas (org.) Dicionário para a formação em gestão social Salvador: CIAGS/UFBA. 2014 p. 42-44
SPECIE, Priscila. Direito e participação social. 2015. Tese (Doutorado em Filosofia e Teoria Geral do Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. doi:10.11606/T.2.2016.tde-16092016-132522. Acesso em: 2022-02-11.
TANSCHEIT, Talita; POGREBINSCHI, Thamy. Andando para Trás: o que aconteceu com a participação social no brasil?. Opendemocracy: free thinking for the world, nov. 2017. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/pt/andando-para-tr-s-o-que-aconteceu-com-particip/. Acesso em: 20 fev. 2022.
Por Anna Carolina Melo Goncalves, Flávia de Souza Hülse e Paula Maria Petersen Haben*
A coprodução ocorre quando há o engajamento mútuo de profissionais-servidores e usuários-cidadãos para a entrega de bens e serviços públicos, gerando sinergia, um resultado que não seria alcançado se ambas as partes trabalhassem isoladas.
A realização do Diagnóstico é resultado do trabalho conjunto entre o Instituto Comunitário da Grande Florianópolis (ICOM) e o Movimento População de Rua de Santa Catarina (MNPR/SC). com outros parceiros. André Schafer, um dos líderes do Movimento População de Rua em Florianópolis e participante ativo do projeto, participou de um bate-papo, durante aula no curso de administração pública da Udesc Esag, quando afirmou que essa iniciativa tornou-se singular porque a população de fato foi ouvida e seus pontos cruciais foram destacados.
O Diagnóstico fez uma proposta incomum, no seu contexto, qual seja: tornar as pessoas em situação de rua protagonistas de um processo de produção de informações e compreensão de um tema no qual usualmente são vistas como objetos, não como sujeitos. O projeto contou com a participação da população em situação de rua não somente para a contabilização e coleta de dados, mas também na construção, aplicação e formulação da pesquisa, e nos debates públicos a partir dos dados. Por conta disso, trouxe à tona a importância da coprodução nesse campo, especialmente quando se refere à participação de segmentos da população que seriam os “alvos” de uma política pública, um projeto ou um serviço.
Na conversa com André Scheifer, entre outros pontos, foi relatada a importância da elaboração do Diagnóstico, a configuração da coprodução no projeto, e explanadas sugestões e considerações sobre como construir iniciativas que tenham continuidade e contem com a participação dos diversos interessados, incluindo os sujeitos, cidadãos-usuários que conhecem a fundo a realidade, pois são parte dela.
Então, esta análise refere-se ao contexto da assistência social, especificamente relacionada ao papel do governo, da academia e da sociedade civil organizada e a atuação efetiva em colaboração com a população em situação de rua, aplicado ao caso visto na população de Florianópolis e pela voz de um líder do movimento.
Ademais, o entrevistado expõe a realidade em que serviços básicos, que supostamente são direito de todos os cidadãos, são negados à população em situação de rua. Nesse quesito, ele se refere aos auxílios refeição e alimentação, banho, remédios, moradia, saúde e entre outros. Em sua fala, relata o cotidiano de mulheres que têm negado o acesso e cuidado à higiene pessoal básica. Isso porque grande parte das políticas públicas, iniciativas e programas realizados no Brasil são feitas sem a participação das populações chave.
Foi relatado pelo convidado que grande parte das políticas públicas para a população em situação de rua são realizadas sem a participação ativa das mesmas, o que dificulta o real entendimento sobre as suas necessidades e particularidades. Entendemos que o principal diferencial deste movimento na grande Florianópolis é evitar a ausência desta voz ativa das pessoas em situação de rua, desta forma incluindo-as como participantes, incluindo em reuniões e tomada de decisão, o que possibilita um diálogo mais transparente e fiel às reais necessidades dos cidadãos-usuários.
A coprodução justamente focaliza a necessidade de envolver os usuários dos serviços públicos, para que sejam revelados os verdadeiros problemas e possibilidades. Sem a participação das populações assume-se o risco da construção de políticas vazias, ineficazes e fracassadas. Cabe aqui citar o lema das pessoas com deficiência, lembrado por André Schafer na aula e que se aplica a qualquer segmento da população: “Nada sobre nós sem nós.”
* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Anna Carolina Melo Goncalves, Flávia de Souza Hülse e Paula Maria Petersen Haben, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no segundo semestre de 2021.
Por Kamilly Silva de Oliveira e Cristian Schilisting*
De acordo com dados do IBGE (2020), 54% da população brasileira se autodeclara preta ou parda. No entanto, mesmo diante do histórico de escravização e construção do país a partir da mão de obra escravizada vinda da África, posteriormente majoritária nos chamados subempregos, pouco se conhece de suas tradições e cultos que influenciaram e formaram o Brasil, sob diversos aspectos (musical, culinário, linguístico, vestuário etc.).
Quando pensamos em coprodução de bens e serviços públicos, normalmente buscamos por iniciativas que visem saúde, educação ou segurança, que, de fato, são serviços públicos imprescindíveis. No entanto, especialmente nesses tempos de pandemia pelo novo Coronavírus, foi possível evidenciar o quanto a cultura é relevante para a saúde física e mental das pessoas. Projetos, oficinais, cultos, shows e eventos são não apenas distrações, podendo também proporcionar novos conhecimentos, emoções e relações.
A Oficina de Ritmos e Cânticos do Candomblé, realizada em parceria pelo professor em música Alagbe Willian Camargo e a Prefeitura de São José, por meio da Fundação Municipal de Cultura e Turismo, focaliza a aprendizagem através da prática musical voltada para os toques e cantigas dessa religião afro-brasileira.
Por intermédio da música e dos cânticos tradicionais, se propicia conhecimento sobre aspectos da cultura e valores dos povos iorubás, contribuindo de maneira indireta para a diminuição de casos de intolerância religiosa, que costumam ser motivados pelo preconceito, derivado da falta de conhecimento e de estereótipos racistas ligados à cultura afro-brasileira, que há muito tempo não são mais compatíveis com o país que desejamos e precisamos.
Antes de apresentar o projeto em questão, faz-se necessário que se conheça alguns conceitos e informações básicas. Por isso, deixamos como sugestão de leitura introdutória o livro O Candomblé bem Explicado, além do vídeo no Youtube do canal QG do Enem, Historiando: O candomblé.
Intolerância religiosa e estereótipos que motivam os ataques
Para mostrar um pouco o problema da intolerância religiosa e suas consequências, apresentamos a seguir trechos de reportagem do jornal Brasil de Fato, por Marina Duarte de Souza.
Há 22 anos, a Yalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, faleceu em decorrência de um ataque motivado por intolerância religiosa. Um atentado ocorrido em janeiro de 2000 teve como alvo o terreiro de Candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, nas imediações da Lagoa do Abaeté, no bairro de Itapuã, em Salvador, capital da Bahia.
Em homenagem à Yalorixá, a data foi instituída como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 2007. Décadas depois, os ataques que afetaram Mãe Gilda ainda acontecem. No primeiro semestre de 2019, por exemplo, aumentou em 56% o número de denúncias de intolerância religiosa, em comparação ao mesmo período do ano anterior. A maior parte dos casos ocorreu com praticantes de crenças como a Umbanda e o Candomblé.
Os casos são registrados via Disque 100, número de telefone do governo criado em 2011, que funciona 24 horas por dia para receber denúncias de violações de direitos humanos. Entre 2015 e o primeiro semestre de 2019, foram 2.722 casos de intolerância religiosa – uma média de 50 por mês.
Os números podem ser ainda mais expressivos, já que em muitos casos as vítimas não denunciam as agressões, por medo de que a violência se repita ou de que o Estado não preste o apoio necessário.
Para acompanhar a apuração dos casos e dar assistência psicológica e jurídica às casas e praticantes das religiões de matriz africana, nasceu o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões de Matriz Africana (IDAFRO). A organização reúne advogados, contabilistas, sociólogos(as), sacerdotes e sacerdotisas que já estavam articulados em um coletivo da sociedade civil em ações contra a intolerância religiosa.
O Supremo Tribunal Federal, STF, e outros órgãos de Justiça também tem discutido o tema da intolerância religiosa e adotando medidas para combatê-la.
A intolerância e a violência decorrentes são muitas vezes geradas por estereótipos sobre a religião e a cultura afro-brasileira, pelo racismo estrutural e por desinformação. Para combatê-los, um dos caminhos é promover informação, conhecimento e oportunidade de encontro entre as pessoas, o que pode acontecer por meio da música.
Oficina de Ritmos e Cânticos do Candomblé
A Oficina de Ritmos e Cânticos do Candomblé, realizada nos dias 13, 16, 19 e 20/02/2022, refere-se a uma oficina de prática musical voltada para os ritmos e cânticos de candomblé Ketu e Jeje. Tem como foco a aprendizagem do repertório que é comumente tocado nas festas públicas desta religião/cultura afro-brasileira. Mediante práticas individuais e coletivas, são ensinados diversos ritmos tocados nos instrumentos de percussão e os principais cânticos tradicionais.
De acordo com o fundador, o professor de música Willian Camargo “no candomblé ketu e jeje, quase tudo se faz cantando, dançando e tocando atabaques. A música tocada nos terreiros é uma herança cultural resultante de combinações rítmicas, sonoras, textuais e gestuais, fruto do caráter de resistência de várias etnias africanas que vieram para o Brasil.
Diante da pandemia de Covid-19 e suas consequências, o apoio público a projetos culturais teve Mecanismos específicos como os da Lei Aldir Blanc, que dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública. Em Santa Catarina, foi possível inscrever-se por meio da Fundação Catarinense de Cultura. Cada projeto submetido passa por análise e, caso aprovado, recebe financiamento e outros tipos de apoio. Há também iniciativas organizadas e financiadas pelos governos locais, como acontece em São José/SC, por meio da Fundação Municipal de Cultura e Turismo, que apoia a Oficina. O projeto é divulgado nos sites da prefeitura, promovendo publicidade, além de amparo legal para serem realizados e do apoio financeiro.
As oficinas são realizadas no salão principal do terreiro de candomblé Ilê Axé Omim Babá Oxaguian, conhecido como Terreiro do Pai Edenilson, sendo abertas a qualquer pessoa interessada, integrantes ou não do candomblé.
Cada oficina tem duração de 60 minutos, em formato presencial com transmissão online em tempo real. A dinâmica da oficina estimula a interatividade entre o ministrante e os participantes. Posteriormente as aulas ficam gravadas no canal do Youtube: Alagbe Willian Camargo.
Através da relação entre o profissional da área, o poder público e os alunos, são compartilhados ensinamentos sobre a cultura candomblecista e, portanto, afro-brasileira. Além da música em si, o trabalho auxilia de maneira indireta no combate à intolerância religiosa, através do conhecimento e da empatia, dissipando medos e estereótipos comuns sobre religião e outros aspectos culturais.
Considerações
Com base nesse exemplo e nas fontes consultadas, foi possível identificar que projetos de coprodução ligados à cultura podem desempenhar um papel significativo e educativo para a sociedade.
Os africanos, assim como seus descendentes, tiveram seu culto proibido durante séculos, sua identidade apagada ao serem batizados com nomes e sobrenomes portugueses e foram perseguidos pelas religiões eurocêntricas por possuírem um modo diferente de leitura de mundo, bem como de externalizar sua fé (além de seu tom de pele).
Ainda nos dias atuais, não são raros os casos de intolerância religiosa, com terreiros queimados ou depredados puramente por resistirem ao preconceito derivado da desinformação ou do racismo estrutural. Ainda assim, por meio de diversas adaptações que os tornam únicos e genuinamente brasileiros, esses povos resistem e buscam, através de seus orixás, a ligação com seu continente de origem deixado para trás nos séculos passados, bem como o resgate de sua história, através do culto aos seus antepassados.
Desta forma, embora nos dias atuais o candomblé já tenha transcendido os povos pretos e seja reconhecido pelo acolhimento de diversas minorias, muitas vezes rejeitadas em outras religiões, projetos como a Oficina de Ritmos e Cânticos destacam-se pela disseminação do conhecimento da cultura afro-brasileira, fortalecendo terreiros e simpatizantes na promoção do resgate às raízes e, de quebra, auxiliando no combate à intolerância religiosa ao ampliar o conhecimento da cultura afro-brasileira.
Embora muito já tenha sido conquistado, o caminho a percorrer ainda é longo para alcançar o ideal de igualdade, tolerância e segurança para o povo de axé. É dever do Estado não somente apoiar iniciativas como estas como promovê-las, visto que conhecer a histórias do povo africano é conhecer a história do povo brasileiro e, portanto, do próprio Brasil.
Vale lembrar que o desenvolvimento de um país não se atinge apenas com saúde, educação e segurança, sendo a cultura o fio que interliga e dá sentido a todos esses objetivos em busca por um Estado Democrático de Direito melhor, mais justo e tolerante.
Como disse a atriz e diretora Bárbara Paz, “um país sem cultura é um corpo sem alma” e o Brasil tem espaço para muitas almas, basta sabermos que devemos alimentá-las e principalmente respeitá-las.
* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Kamilly Silva de Oliveira e Cristian Schilisting, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no segundo semestre de 2021.
Referências
BEZERRA, Juliana. Candomblé. Toda Matéria.Disponível em:<https://www.todamateria.com.br/candomble/>. Acessado em 14 de fev. de 2022.
DE SOUZA, Marina Duarte. Denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no Brasil em 2019. Brasil de Fato. 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/01/21/denuncias-de-intolerancia-religiosa-aumentaram-56-no-brasil-em-2019>. Acessado em 14 de fev. de 2022.
Portal São Francisco. História Geral do Candomblé. Disponível em: <portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/candomblé>. Acessado em 12 de fev. de 2022.
Wikipédia. Templos Afro-brasileiros. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Templos_afro-brasileiros>. Acessado em 12 de fev. de 2022.
*Através dos ensinamentos dos mais velhos da acadêmica Kamilly Silva de Oliveira.
TÍTULOS PARA SABER MAIS:
Livro: Órun-Àiyé: O Encontro de Dois Mundos;
Livro: A Cadeira De Ogã E Outros Ensaios;
Livro: O Candomblé Bem Explicado;
Livro: Orixás, Deuses iorubás na África e no Novo Mundo;
Livro: Ewé: O uso das Plantas na Sociedade iorubá;
Por Emilly Rosa, João Gabriel Almeida, Pabola Mafissoni e Felipe Serpa*
O Brasil é um dos países com maiores índices de violência e criminalidade do mundo (exemplo disso na Figura 1, de um estudo global sobre homicídios). A ação dos órgãos de segurança pública não é suficiente para dar conta do desafio. A coprodução de serviços públicos é uma forma de envolver o cidadão, juntamente com profissionais da área, para que seja possível enfrentar os variados problemas que temos em segurança pública.
Figura 1 Taxa de homicídio por país | Fonte: Revista Época – Estudo Global sobre o Homicídio 2013.
Muitos podem pensar que a coprodução está longe da nossa realidade e que ela pode trazer riscos e dilemas, sobretudo quando se trata de segurança pública. No entanto, nesse texto vamos desmistificar alguns receios comuns e buscar explicar de forma didática sobre essas ações.
O que é coprodução?
A coprodução de bens e serviços públicos ocorre quando o servidor público ou profissional de certa área atua em conjunto com o cidadão-usuário dos serviços e a comunidade para que, nessa junção, ocorra a sinergia. Ou seja, se possa chegar a resultados que o serviço público não conseguiria atingir sozinho.
Entre as iniciativas que buscam promover alternativas em segurança pública em Santa Catarina, temos o Programa PROERD, proposto por integrantes da polícia militar no estado, com base em experiências em outros países, que conta com o apoio comunitário para ensinar jovens sobre os riscos das drogas (Figura 1). Outro exemplo é o dos Bombeiros Comunitários, que capacita para atuação de voluntários em conjunto com o corpo de bombeiros. Há, ainda, as estratégias de polícia comunitária, que se inserem na filosofia de policiamento comunitário com foco na prevenção dos problemas e proximidade entre policiais e cidadãos.
Agora que conhecemos alguns exemplos de coprodução em segurança pública, nos diga, você já participou de alguma iniciativa de coprodução e não sabia?
Qual a sinergia?
A busca pela diminuição da violência no Brasil vem sendo desde sempre um dos assuntos mais preocupantes para a Nação. No momento, não há uma solução definitiva, mas quando a população trabalha junto com o Estado, temos o potencial de gerar sinergia, alcançando resultados que nenhuma das partes conseguiria se atuasse isolada.
Se a população e os profissionais atuarem em conjunto para aprimorar o sistema de segurança pública, podemos construir soluções, ao menos parciais, para os problemas que enfrentamos. Se ambos apresentam disponibilidade para aprender, colaborar e ensinar, pode-se ampliar perspectivas e o leque de alternativas possíveis, promover ações efetivas e evitar supostas soluções que ferem direitos e geram ainda mais violência.
Isso pode acarretar em problemas ao invés de soluções?
A coprodução em segurança pública implica questionamentos e dilemas sobre os limites entre a ação especializada, profissional e legal, por um lado, e desvios como o de “fazer justiça com as próprias mãos”, por outro. Ou a ilusão de que é possível garantir sua própria segurança, sem considerar o desafio coletivo. Há também os espaços de poder ocupados pelo crime organizado e as milícias, oferecendo “segurança comunitária” sob coerção, fora do regime do Estado Democrático de Direito.
Hoje, no Brasil, a prática de milícia (Figura 2) é uma grande preocupação. Essa prática ocorre quando agentes da segurança pública, ativos ou não, e algumas pessoas de determinado território se juntam para manter certa ordem, se aproveitando de práticas criminosas e extorquindo a população.
Figura 3 Charge do artista Junião sobre as milícias. Disponível em: https://bemblogado.com.br/site/o-assassinato-de-marielle-franco-e-o-avanco-das-milicias-no-rio/charge-milicia/
Há também casos em que a população local adota procedimentos exagerados e ilegais para promover segurança pública, como limitar a circulação em local público de pessoas que considera suspeitas, muitas vezes apenas baseados em preconceitos ou informações falsas.
Aí vem mais uma pergunta: isso é diferente da coprodução? A resposta é sim! A coprodução tem de ocorrer de acordo com princípios da legalidade, razoabilidade e proteção de direitos fundamentais. Além do mais, deve sempre ter um profissional e órgão responsável como orientador das ações. A partir do momento que a comunidade age sozinha, sem orientação de um especialista e sem responsabilidades claras, há o risco de afastamento da coprodução, da segurança e da democracia.
* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Emilly Rosa, Felipe Serpa, João Gabriel Almança e Pabola Maffisoni, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no segundo semestre de 2021.
Referências
AJNZYLBER, Pablo; ARAUJO JUNIOR, Ary de. Violência e criminalidade. Curso de Ciências Econômicas, Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Ufmg, Belo Horizonte, 20012001. 50 f. Dissertação (Mestrado) Cap. 1. Disponível em: http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20167.pdf. Acesso em: 11 fev. 2022.
BORGES JÚNIOR, José Martins. A coprodução de serviços públicos na perspectiva do cidadão: um estudo no Distrito Federal brasileiro. 2016. 73 f., il. Monografia (Bacharelado em Administração)—Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
COMO SER BOMBEIRO COMUNITÁRIO. 2022. Disponível em: https://www.cbm.sc.gov.br/index.php/cidadao/como-ser-bombeiro-comunitario. Acesso em: 24 fev. 2022.
MARTINS, Isabela Miranda; FARIAS, Josivania Silva; JUNIOR, Lucio Alves Angelo. Segurança cidadã: Formas de envolvimento e propensão do cidadão à coprodução de segurança pública no Distrito Federal. Contextus–Revista Contemporânea de Economia e Gestão, v. 17, n. 2, p. 160-189, 2019.
MOÇÃO apela pela volta das atividades do Proerd. 2021. Disponível em: https://www.jaraguadosul.sc.leg.br/destaques/mocao-apela-pela-volta-das-atividades-do-proerd/. Acesso em: 24 fev. 2022.
REDAÇÃO ÉPOCA (Brasil) (ed.). ONU: Mais de mil homicídios por dia no mundo: segundo relatório baseado em números de 2012, 11% das 437 mil mortes por homicídios intencionais daquele ano aconteceram no Brasil. 2014. Disponível em: https://epoca.oglobo.globo.com/tempo/noticia/2014/04/mais-de-mil-pessoas-morreram-bassassinadas-por-diab-em-2012-segundo-onu.html. Acesso em: 15 fev. 2022.