Programas de compliance contribuem para o combate a fraudes?

Por Eddye Maikel Rozar Goulart, Nathália Campos de Souza e Nathália Malty Dias *

Nos últimos anos, algumas legislações têm emergido no Brasil com intuito de coagir ou incentivar órgãos e entidades da administração pública a adotarem mecanismos de integridade, a exemplo dos programas de compliance, como uma alternativa para prevenir e mitigar a corrupção. Nesse texto, sob a perspectiva do Triângulo de Cressey, busca-se analisar se os programas de compliance contribuem para o combate à fraudes.

Fraude

O dicionário Michaelis (1998) define fraude como “ato de má-fé que tem por objetivo fraudar ou ludibriar alguém”. Mais especificamente, Costa e Wood Jr. (2012, p. 465) evidenciam que a fraude corporativa ocorre “quando os agentes fraudadores identificam uma oportunidade, tomam sucessivas decisões visando obter vantagens ilícitas e gerenciam a mise-en-scéne para ocultar tais decisões e seus efeitos”. 

Sob esse entendimento, o Tribunal de Contas da União – TCU (2018, p. 19) considera fraude e corrupção como sinônimos, que expressam “tanto o abuso de poder quanto o falseamento ou ocultação da verdade, com vistas a enganar terceiros, sendo ambos para obter vantagem indevida para si ou para outrem”. Segundo Almeida e Alves (2014), na apuração de fraudes, constantemente, é possível identificar um dos três elementos do Triângulo de Cressey.

Triângulo da Fraude

O Triângulo da Fraude, também conhecido como o Triângulo de Cressey, foi elaborado por Donald Cressey em 1953, quando entrevistou mais de 120 encarcerados por crimes de colarinho branco nos Estados Unidos. Através dessa pesquisa, o sociólogo identificou três elementos como desencadeadores de fraudes: necessidade, oportunidade e racionalização.

A necessidade, gatilho desse processo, constitui-se de um problema que o transgressor considera não-compartilhável, como “medo de perder a ocupação atual, o alcance ou manutenção de um dado padrão de vida e problemas pessoais” (MACHADO; GARTNER, 2017, p. 111). Esse pilar do triângulo considera o contexto em que o fraudador está inserido, dependendo da sua percepção individual do problema (SANTOS, 2011), e tornando-se um estímulo ao delito quando a fraude é percebida como a única possibilidade de resolvê-lo (SCHUCHTER; LEVI, 2013).

Então, o indivíduo analisa a vulnerabilidade do objeto ou recurso cuja obtenção almeja, bem como os meios e capacidade para execução da fraude (SANTOS, 2011). Em seguida, utiliza sua posição de confiança, seu conhecimento e a oportunidade para cometê-la (MACHADO; GARTNER, 2017; SCHUCHTER; LEVI, 2013). O Referencial de Combate à Fraude e Corrupção do TCU (2018) indica que a oportunidade está aliada à percepção do baixo risco de ser pego e define o método que será utilizado pelo fraudador, surgindo em um contexto de controles ineficazes e falhas na governança. 

Por fim, o indivíduo racionaliza seu ato, buscando justificá-lo como aceitável ou neutro, no lugar de criminoso ou impróprio, considerando sua percepção moral do dilema ético enfrentado (SANTOS, 2011; SCHUCHTER; LEVI, 2013). Usualmente, “os transgressores se veem como pessoas comuns e honestas que são pegas em más circunstâncias” (TCU, 2018, p. 20).

Com base no Triângulo da Fraude, Albretch, Howe e Romney desenvolveram, em 1984, o conceito da Escala de Fraude. De acordo com Santos (2011), a escala mensura a potencialidade de fraude utilizando três indicadores: problemas imediatos que o indivíduo está sofrendo no meio em que está inserido, falhas de controle interno e integridade pessoal. Monitorando os riscos de desconformidade com leis e regulamentos (TCU, 2018), o compliance consiste em um instrumento para mitigar e prevenir fraudes.

Compliance

O termo compliance é derivado do verbo inglês to comply, que significa agir de acordo, ou ainda em conformidade com leis e regulamentos internos ou externos (LIRA, 2014). Cabe informar que a literatura não é clara quanto às diferenças entre os termos “compliance”, “integridade” e “conformidade”. Para alguns autores são considerados como alternativas de tradução da nomenclatura estrangeira, e para outros como designações mais específicas do tema. Para esta discussão, o entendimento adotado será o mesmo do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (2018), que os reconhece como sinônimos.

No Brasil, o primeiro avanço legal no sentido de institucionalização do compliance foi a promulgação da Lei 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção Brasileira já que, como apontam Gabardo e Castella (2015), viabilizou a punição de pessoas jurídicas, bem como seus dirigentes, administradores e outras pessoas a ela vinculadas por atos corruptos praticados contra a Administração Pública – ou seja, tornando-as accountable.

Além disso, outro acréscimo da legislação foi considerar como atenuador das sanções cabíveis “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (BRASIL, 2013) – onde entram os programas de compliance.

Programas de compliance

Segundo definição do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE (2016, p. 9), programas de compliance constituem-se de “um conjunto de medidas internas que permitem prevenir ou minimizar os riscos de violação às leis decorrentes de atividade praticada por um agente econômico e de qualquer um de seus sócios ou colaboradores”. 

Em 2019, passou a vigorar a Lei 17.715/2019, que instituiu a obrigatoriedade da adoção de um Programa de Integridade e Compliance em todos os órgãos e entidades governamentais do Estado de Santa Catarina. Sua implementação, no âmbito do Executivo, vem sendo coordenada pela Secretaria Executiva de Integridade e Governança, SIG. Na redação do dispositivo legal, Programa de Integridade e Compliance é definido como “o conjunto de mecanismos e procedimentos internos de prevenção, detecção e correção de práticas de corrupção, fraudes, subornos, irregularidades e desvios éticos e de conduta” (SANTA CATARINA, 2019).

Programas de compliance como mecanismos de controle de fraudes

Nas políticas de combate à fraude, a adoção de programas de compliance tem se mostrado relevante (CUEVA, 2017), fomentando a conformidade da ação organizacional à legislação. Dentre as 70 Novas Medidas Contra a Corrupção estabelecidas pela Transparência Internacional – Brasil, três sugerem a adoção de mecanismos de governança e compliance (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL, 2018).

De acordo com Schramm (2018, p. 205), o compliance:

[…] realiza as suas atividades de forma preventiva, contínua e permanente, sendo responsável por verificar e assegurar, dia após dia, que as diversas áreas e unidades da organização conduzem suas atividades em conformidade com a legislação e regulamentação aplicável ao negócio, observando as normas e procedimentos internos destinados à prevenção e controle de riscos. Além disso, o compliance é responsável pela manutenção de canais de comunicação internos, pela realização de treinamentos periódicos e pela constante conscientização acerca da necessidade de adoção de posturas éticas.

Por sua vez, o TCU (2018, p. 19-20) considera como fatores relacionados com a percepção de oportunidade, aresta do Triângulo da Fraude, “a assunção de que a organização não está ciente; o fato de os servidores não serem verificados periodicamente quanto ao cumprimento das políticas; a crença de que ninguém se importa nem vai considerar a transgressão grave”.

Assim, fica nítido que os programas de compliance tem o potencial de contribuir para o enfrentamento da fraude, levando em conta a convicção de que, mesmo havendo extrema necessidade, sem a oportunidade e com desincentivos à racionalização, a fraude não ocorrerá (TCU, 2018). 

Contudo, para que esse objetivo seja efetivamente alcançado, é necessário que a implementação de programas de compliance seja amparada por esforços sistemáticos que garantam sua aplicação prática. Nesse sentido, cabe ressaltar que a empresa ou entidade não precisa necessariamente designar uma área responsável por essa gestão, já que independentemente disso cada colaborador deve gerir os riscos inerentes às suas atividades e agir em conformidade com os regulamentos no dia a dia.

* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Eddye Maikel Rozar Goulart, Nathália Campos de Souza e Nathália Malty Dias, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.

REFERÊNCIAS

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ARAKAKI, Sabrina Sayuri; ALVES, Lidiana Sagaz Silva. Compliance e o setor público: mais burocracia? Politeia, 2020. Disponível em: http://politeiacoproducao.com.br/compliance-e-o-setor-publico-mais-burocracia/. Acesso em: 14 mar. 2021.

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CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Guia programas de compliance: orientações sobre estruturação e benefícios da adoção dos programas de compliance concorrencial. Brasília: 2016. Disponível em: http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/guias_do_Cade/guia-compliance-versao-oficial.pdf. Acesso em: 13 fev. 2020.

COSTA, Ana Paula Paulino da; WOOD JR., Thomaz. Fraudes corporativas. RAE, São Paulo, v. 52, n. 4, jul./ago 2012. Disponível em: https://rae.fgv.br/sites/rae.fgv.br/files/artigos/10.1590_0034-75902012000400008_0.pdf. Acesso em: 14 mar. 2021.

CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Prefácio. In: MENDES, Francisco Schertel; CARVALHO, Vinicius Marques de. Compliance: concorrência e combate à corrupção. São Paulo: Trevisan Editora, 2017.

GABARDO, Emerson; CASTELLA, Gabriel Morettini e. A nova lei anticorrupção e a importância do compliance para as empresas que se relacionam com a Administração Pública. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, v. 15, n. 60, p. 129-147, abr./jun. 2015. Disponível em: https://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2015/08/lei-anticorrupcao-compliance.pdf. Acesso em: 14 mar. 2021.

LUZ, Suyane Honorato da; JACOMINI, Barbara Victória Balduino; LANGE, Manuela Pereira. Fragilidades na transparência em compras públicas evidenciadas em época de pandemia no estado de Santa Catarina. Politeia, 2021. Disponível em: http://politeiacoproducao.com.br/compliance-e-o-setor-publico-mais-burocracia/. Acesso em: 27 mar. 2021.

LIRA, Michel Pereira de. O que é compliance e como o profissional da área deve atuar? Jusbrasil. 2014. Disponível em: https://michaellira.jusbrasil.com.br/artigos/112396364/o-que-e-compliance-e-como-o-profissional-da-area-deve-atuar. Acesso em: 14 mar. 2021.

MACHADO, Michele Rílany Rodrigues; GARTNER, Ivan Ricardo. Triângulo de fraudes de Cressey (1953) e teoria da agência: estudo aplicado a instituições bancárias brasileiras. Revista Contemporânea de Contabilidade, Florianópolis, v. 14, n. 32, p. 108-140, maio/ago 2017. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6093522. Acesso em: 14 mar. 2021.

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MINISTÉRIO DA TRANSPARÊNCIA; CGU. Manual prático de avaliação de programa de integridade em par. Brasília: [s. n.], 2018. Disponível em: https://www.legiscompliance.com.br/images/pdf/cgu_manual_pratico_integridade_par.pdf. Acesso em: 17 mar. 2020.

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SANTOS, Renato Almeida dos. Compliance como ferramenta de mitigação e prevenção da fraude organizacional. São Paulo, 2011. 100 p. Dissertação (Mestrado em Administração) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/979/1/Renato%20de%20Almeida%20dos%20Santos.pdf. Acesso em: 14 mar. 2021.

SCHRAMM, F. S. O compliance como instrumento de combate à corrupção no âmbito das contratações públicas. 2018. 432 p. Dissertação (Mestrado em Direito), Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/190091/PDPC1368-D.pdf?sequence=-1&isAllowed=y. Acesso em: 14 mar. 2021.

SCHUCHTER, Alexander; LEVI, Michael. The Fraud Triangle revisited. Security Journal, 2013. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/271270579_The_Fraud_Triangle_Revisited. Acesso em: 14 mar. 2021.

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TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Novas medidas contra a corrupção. [S. l.], FGV Direito Rio: 2018. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/themes/Mirage2/pages/pdfjs/web/viewer.html?file=http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/23949/Novas%20Medidas%20Contra%20a%20Corrupc%cc%a7a%cc%83o%20Completo.pdf?sequence=12&isAllowed=y. Acesso em: 31 mar. 2020.

Desastre na Lagoa da Conceição: o que podemos aprender sobre governança e accountability?

Por Luisa Botelho Matte, Marina Hinterholz Lauschner e Bruna Luiza Gama Correia *

A enxurrada que ocorreu na última semana do mês de janeiro em Florianópolis atingiu moradores do bairro da Lagoa da Conceição. Na manhã do dia 25 de janeiro, houve o rompimento de uma lagoa artificial de infiltração que recebe efluente tratado da Estação de Tratamento de Esgotos da região. Segundo a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), responsável pelo serviço, a grande quantidade de água da chuva naqueles dias provocou o rompimento da estrutura. 

As consequências foram casas inundadas, carros arrastados e moradores que precisaram ser resgatados por botes do Corpo de Bombeiros. A força e a intensidade da água foram significativas, como mostra a Figura 1. A principal via do bairro, a Avenida das Rendeiras, foi interditada. Com o rompimento, o órgão hoje trabalha na recolocação de tubulações e de bombas danificadas pelas fortes chuvas para normalizar o sistema. Conforme a Casan, não há risco sanitário, já que a água é tratada

Figura 1 – Carros atingidos por vazamento na Lagoa da Conceição.

Foto: Defesa Civil/Divulgação.

Devido ao ocorrido, a Casan foi acusada por crime de poluição ambiental, após o rompimento do lago artificial. Um inquérito foi aberto pela Polícia Civil para investigar os motivos que provocaram o ocorrido, além dos danos ambientais causados na região, como a fauna marinha que foi afetada. De acordo com a delegada Beatriz Ribas Dias dos Reis, que está à frente da Delegacia de Repressão a Crimes Ambientais (DRCA), não restam dúvidas sobre o crime de poluição. O inquérito, além de envolver a esfera municipal – devido aos danos causados no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, que concentra um dos ambientes mais frágeis da Ilha de Santa Catarina, a restinga – envolve ainda a esfera federal, porque também atingiu a água do mar. 

Cabe ressaltar que, conforme o art. 54 da  Lei nº 9.605 de 1998, a qual dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, caracteriza-se como “crime ambiental causar poluição de qualquer natureza em níveis que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora” (BRASIL, 1998). 

Nesse sentido, o crime pode ser doloso, em que há intenção de causar o resultado, e culposo, quando o agente influenciou a causa ao resultado por imprudência ou negligência. 

Conforme o § 2º, V, do mesmo artigo, se o crime “ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos”, a pena será reclusão, de um a cinco anos (BRASIL, 1998).

Isso exposto, há indícios que a inundação da Lagoa é fruto da negligência de atuação da Casan frente às inconformidades já citadas, enquadrando-se assim, como crime ambiental. Ademais, conforme os relatos dos moradores da Lagoa da Conceição sobre o cheiro de esgoto após a inundação, nos faz refletir sobre qual o nível de tratamento que a  água da estação de evapoinfiltração  estava recebendo.  

A empresa pública também foi multada pela Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) no valor de R$ 15 milhões. A Casan informou, ainda, que a auditoria interna, aberta para apurar o que provocou o rompimento da lagoa artificial, está em andamento e que “a equipe técnica da Casan está levantando todas as informações possíveis e avaliando todas as hipóteses” (BATTISTELLA, 2021). 

O Ministério Público Federal em Santa Catarina (MPF-SC) também instaurou inquérito civil para apurar as responsabilidades pelo rompimento ocorrido. O objetivo é verificar se a manutenção da estação estava em dia, bem como identificar o plano de risco do sistema de esgotamento sanitário, responsabilidades e formas de reparação à sociedade e ao meio ambiente. 

Como medida compensatória, a Casan lançou um edital público referente ao processo de indenização. Uma das medidas emergenciais foi um pagamento no valor de R$ 10 mil para os moradores atingidos. No entanto, o Movimento dos Atingidos por Barragens denuncia que esse edital não é legítimo, pois foi elaborado sem participação dos atingidos e prevê apenas o ressarcimento patrimonial, excluindo direitos os danos morais, psicológicos e ambientais, entre outros. A comunidade local, reunida por meio de uma comissão de atingidos, elaborou um documento com uma série de reivindicações que foram apresentadas à Casan e ao Governo do Estado. 

Além disso, uma comissão na Câmara de Vereadores foi criada para acompanhar o processo e fazer a negociação entre os moradores e a empresa. A Câmara, que por duas semanas intermediou as negociações com moradores da região atingida, reconheceu os esforços da Casan para recuperar os danos causados com o deslizamento da lagoa de evapoinfiltração (LEI). 

Figura 2 – Manifestação realizada por moradores na Lagoa da Conceição, em Florianópolis.

Foto: Graziane Ubiali.

Ainda em março de 2021, a Casan segue apurando o que ocorreu e tem se disponibilizado no atendimento às recomendações e investigações dos órgãos fiscalizadores como o MPF  e a Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis (Floram).

Em entrevista à CBN Diário, o presidente da Associação Catarinense de Engenheiros Sanitaristas e Ambientais (ACESA), Vinicius Ragghianti, afirmou que o modelo de estação de tratamento localizado na Lagoa da Conceição deve ser revisto. Ele também disse que, apesar de ter licença ambiental, a estação não é projetada para se comportar como uma barragem. De fato, a região onde está localizada é um local muito próximo às dunas e às residências dos moradores.

As duas unidades de tratamento de esgoto da Casan na Lagoa da Conceição estão em área de preservação permanente, e utilizam tratamento não adequado em relação à lagoa artificial de infiltração que recebe seus efluentes tratados. É preciso pensar modelos de saneamento ecológico que combinem o tratamento secundário com outros mais apropriados para tratar o nitrogênio e o fósforo, que são elementos que contribuem com o processo de eutrofização. Ainda, é constatado que a lagoa de evapoinfiltração que está na região das dunas não possuía uma obra de engenharia, logo não há um projeto técnico daquela obra, e, consequentemente, não há um plano emergencial de rompimento de barragem. Esse fator também é algo que dificulta hoje a negociação do processo de indenização com os moradores atingidos pelo rompimento da barragem. 

 Figura 3 – Rompimento da lagoa artificial em Florianópolis.

Foto: Corpo de Bombeiros de Florianópolis/Divulgação.

É importante destacar que a própria Casan já identificava em 2017 a necessidade de se estudar alternativas para a disposição final do esgoto tratado na região (CASAN, 2017). Em processo do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE-SC), está registrada a constatação de valores elevados de nutrientes inorgânicos, acima dos valores máximos permitidos pela legislação, ou a eventual presença de patógenos como aqueles relacionados a hepatite no esgoto tratado (SCHLINDWEIN et al., 2010). O que reforça a preocupação sobre as consequências da  recente tragédia. 

Portanto, é importante que eventos como esse sirvam de alerta para a necessidade urgente de uma gestão eficiente da bacia hidrográfica da Lagoa da Conceição por parte dos governantes, com a participação ativa da comunidade local. 

Ainda, indagamos sobre a multa que a Casan – empresa pública do estado de Santa Catarina, que possui concessão do município de Florianópolis para atuar na área de saneamento básico – recebeu, no valor de R$15 milhões pela Prefeitura Municipal de Florianópolis: quem paga essa multa? Tendo em vista que, sendo uma empresa pública, o Estado é o principal acionista, seríamos nós, os contribuintes, que acabaríamos tendo que arcar com esse valor? Para isso ainda não há uma resposta. Nesse sentido, observamos que uma área em que há muito a ampliar transparência e a accountability é a de execução de multas e demais punições/acordos ambientais, pois muitas acabam não sendo aplicadas. 

De acordo com dados do Banco de Dados Abertos do Ibama, até 20 de fevereiro de 2020, apenas 25.933 das 59.239 multas aplicadas na Região Sul, composta pelos estados: Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, foram quitadas. Esse número representa 43,7% do total. 

Para Clóvis Borges, diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), ao ser questionado pelo (o)eco, defende que a inefetividade de cobrança das multas é histórica. Segundo ele, “(…) os órgãos ambientais recebem historicamente muita pressão política. Mesmo com a emissão de multas, sabe-se que elas não são pagas. As empresas entram com recurso judicial e, por pressão política, os órgãos não fazem o encaminhamento da sequência dos processos, que caducam”.

Outra forma pela qual o Ibama deixa de arrecadar é com as multas que são, posteriormente, canceladas. De modo geral, as penalizações são anuladas pois o órgão estabeleceu que elas não deveriam ter sido aplicadas. Desde 1980, o número chegou perto de 36 mil multas canceladas, somando R$ 1,9 bilhão.

No final das contas, o fator alarmante é: os pequenos infratores são os maiores pagadores de multas. Enquanto isso, as sanções aos grandes crimes ambientais acabam canceladas ou são beneficiadas por longos processos e disputas judiciais, que adiam o pagamento.

Outro ponto para analisarmos a governança pública é que no início de 2019, após ser realizada uma batimetria na lagoa, os profissionais da Casan perceberam grande acúmulo de sedimento no fundo da lagoa artificial, e solicitaram à PMF, via Floram, autorização para lançar o efluente tratado em área vizinha, visando a limpeza e manutenção da lagoa em operação. Porém, a Floram/PMF não concedeu autorização à Casan para realizar esse serviço. 

Nesse sentido, a governança pública presente nesse assunto sério, que envolve aspectos ambientais, sociais e econômicos, mostra-se fragilizada em vários aspectos. Entre eles, a falta de clareza sobre responsabilidades e papéis dos vários órgãos envolvidos, falta de coordenação entre os mesmos, baixo grau de participação cidadã e alternativas de saneamento construídas sem perspectiva de longo prazo, baseada em  ideologias ou visões políticas nem sempre fundamentadas em informações e conhecimentos  técnicos. O que vemos, na prática, são prejuízos incalculáveis que atravessam os meios econômicos, sociais, patrimoniais e ambientais. A incapacidade dos órgãos de controle, comunidade e poder público de chegarem a um consenso e construir uma agenda mínima com convergência em pontos vitais e combinação de modelos de saneamento é que trava a solução para esse tipo de problema crucial como saneamento básico. 

Como a governança do saneamento envolve diversos atores, cada um deles teria seus papéis e responsabilidades no “sistema de accountability“. A coordenação entre esses vários envolvidos, e o efetivo exercício de seus papéis, por meio dos diversos instrumentos de regulação, planejamento e monitoramento, é necessária para que a accountability seja também efetiva. 

Devemos lembrar que saneamento é garantir o equilíbrio ambiental e, sobretudo, garantir a qualidade de vida. No caso do desastre ambiental sem precedentes ocorrido na Lagoa da Conceição, suas consequências ainda se sucedem, juntamente às aprendizagens e eventuais mudanças sobre a percepção do assunto, que podem ou não se concretizar. 

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Luisa Botelho Matte, Marina Hinterholz Lauschner e Bruna Luiza Gama Correia, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.

REFERÊNCIAS

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ATINGIDOS por barragem da CASAN, em Florianópolis, afirmam que edital de indenização não é legítimo. SINTESPE, 2021. Disponível em: https://sintespe.org.br/atingidos-por-barragem-da-casan-em-florianopolis-afirmam-que-edital-de-indenizacao-nao-e-legitimo/. Acesso em: 23 de fev. de 2021.

BATTISTELLA, Clarissa. Poluição causada por alagamento na Lagoa da Conceição é inquestionável, diz delegada. NSC Total, Florianópolis, 03 de fev. de 2021. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/noticias/poluicao-causada-por-alagamento-na-lagoa-da-conceicao-e-inquestionavel-diz-delegada. Acesso em: 15 de fev. de 2021.

BORGES, C.; FERNANDES, M.; MARTINS, V. Polícia Civil e MPF vão investigar rompimento de lagoa após enxurrada em Florianópolis. G1 SC, Florianópolis, 25 de jan. de 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/01/25/policia-civil-vai-investigar-rompimento-de-lagoa-apos-enxurrada-em-florianopolis.ghtml. Acesso em: 23 de fev. de 2021.

BOURSCHEIT, Aldem et al. CALOTE BILIONÁRIO: o Ibama tem R$ 59 bi em multas ambientais para receber, mas o governo está abrindo mão desse dinheiro. 21 de out de 2019. Disponível em: https://theintercept.com/2019/10/21/ibama-bilhoes-multas-ambientais/. Acesso em: 27 mar. 2021. 

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CASAN. Comunicado Lagoa da Conceição. 25 de jan de 2021. Disponível em: https://www.casan.com.br/noticia/index/url/comunicado-lagoa-da-conceicao#0. Acesso em: 27 mar. 2021. 

CERVENKA, Lucas. Fauna marinha morre na Lagoa da Conceição após rompimento de lagoa de ETE. Correio SC, Florianópolis, 27 de jan. de 2021. Disponível em: https://www.correiosc.com.br/fauna-marinha-morre-na-lagoa-da-conceicao-apos-rompimento-de-lagoa/. Acesso em: 23 de fev. de 2021.

DESASTRE na lagoa de evapoinfiltração da ETE Lagoa da Conceição. SENGE SC, 2021. Disponível em: https://www.senge-sc.org.br/desastre-na-lagoa-de-evapoinfiltracao-da-ete-lagoa-da-conceicao/. Acesso em: 23 de fev. de 2021.

FAMÍLIAS atingidas por rompimento de lagoa, em Florianópolis, formalizam comissão e fazem reivindicações à Casan. G1 SC, Florianópolis, 09 de fev. de 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/02/09/familias-atingidas-por-rompimento-de-lagoa-em-florianopolis-formalizam-comissao-e-fazem-reivindicacoes-a-casan.ghtml. Acesso em: 23 de fev. de 2021.

GADOTTI, Fabio. MPF pede investigação sobre rompimento de estrutura na Lagoa da Conceição. ND Mais, Florianópolis, 25 de jan. de 2021. Disponível em: https://ndmais.com.br/meio-ambiente/mpf-pede-investigacao-sobre-rompimento-de-estacao-na-lagoa-da-conceicao/. Acesso em: 23 de fev. de 2021.

MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS. Atingidos por barragem da Casan, em Florianópolis, afirmam que edital de indenização não é legítimo. 29 de jan 2021. Disponível em: https://mab.org.br/2021/01/29/atingidos-por-barragem-da-casan-em-florianopolis-afirmam-que-edital-de-indenizacao-nao-e-legitimo/. Acesso em: 27 mar. 2021.

(O)ECO. Em 25 anos, estados do sul somam mais de R$ 3 bilhões de multas ambientais não pagas. (o)eco. 31 de mar de 2020. Disponível em: https://www.oeco.org.br/reportagens/em-25-anos-estados-do-sul-somam-mais-de-r-3-bilhoes-de-multas-ambientais-nao-pagas/. Acesso em: 27 mar. 2021.

SANTOS, Vanessa Sardinha dos. Eutrofização. Mundo Educação. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/biologia/eutrofizacao.htm#:~:text=A%20eutrofiza%C3%A7%C3%A3o%20ocorre%20em%20raz%C3%A3o,o%20f%C3%B3sforo%20e%20o%20nitrog%C3%AAnio. Acesso em: 17 de março de 2021.

A Lei Geral de Proteção de Dados e a normatização das empresas: o exemplo da empresa Statkraft Brasil

Por Fabiane Becker Facco, Julia Locks, Luciano Peters Busarello e Nickolas Andrade de Assis *

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), n° 13.709 de 14 de agosto de 2018, regulamenta os procedimentos de tratamento de dados pessoais, tanto para entes públicos, quanto para entes privados. Entende-se por tratamentos de dados quaisquer atividades relacionadas à coleta, acesso, armazenamento, processamento e compartilhamento de dados pessoais. A lei tem como objetivo garantir direitos em defesa do titular dos dados. O embasamento jurídico se dá na Constituição Federal de 1988 (CF/88), visando afirmar os direitos fundamentais de respeito à privacidade, livre desenvolvimento da personalidade, liberdade de expressão, informação, comunicação, intimidade e imagem. 

Maurício Rotta, advogado especializado  na área de Direito Digital e Doutor em Engenharia e Gestão do Conhecimento, em entrevista ao programa “Nas Entrelinhas”, na Rádio Udesc, afirmou que a LGPD “é uma lei de governança, que estabelece papéis e responsabilidades para todos os atores relacionados aos dados, desde os detentores até os controladores dos dados, cada qual com seus direitos e deveres”. A entrevista discute, também, a relação entre a LGPD e a Lei de Acesso à Informação (LAI), que pode ser vista no texto “Do acesso à informação à proteção de dados: um limiar entre as leis”.

Atualmente, a Lei Geral de Proteção de Dados está em vigor,  com a previsão de as sanções serem aplicadas a partir de agosto de 2021. 

Com a expansão da utilização dos meios digitais causado pela pandemia da Covid-19, como videoconferências e teletrabalho, tornam-se ainda mais urgentes as questões relacionadas ao tratamento dos dados pessoais. Assim, as entidades público-privadas se articulam para aprimorar processos e viabilizar a implementação das normas.

A LGPD no Brasil

Em suma, a Lei Geral de Proteção de Dados institui um regime jurídico voltado aos tratamentos de dados pessoais, sendo estes realizados por entes públicos e privados. Ressalta-se que, devido a diferenças na natureza e no objetivo final de tratamento desses, existem regimes diferenciados aplicados às pessoas jurídicas de direito privado e às pessoas jurídicas de direito público.

O capítulo IV da lei se refere especificamente ao tratamento dos dados realizado pelo Poder Público. Segundo o artigo 23, o tratamento de dados deverá atender a finalidades públicas, com respaldo no interesse público, a fim de que seja possível a execução das atribuições legais do poder público, tais como a execução de políticas públicas, a administração de serviços públicos e a administração da res pública. Porém, ressalta-se que, caso o tratamento dos dados pessoais ocorra tendo como objetivo questões relacionadas à segurança nacional, defesa nacional e defesa do Estado, não se aplicam as normas da LGPD.

No que tange à aplicabilidade da lei aos entes privados, tem-se como objetivo garantir direitos dos cidadãos. Estes podem solicitar que os dados sejam deletados, anular determinado consentimento, transferir dados para outra prestadora de serviços, dentre outras possíveis ações; destarte, assegura que a sociedade não seja prejudicada através da indevida utilização de dados pessoais. Assim, destaca-se que a LGPD está fortemente relacionada com a transparência, pois há a imprescindibilidade de publicização de como e onde os dados dos cidadãos estão sendo utilizados por instituições privadas, além de exigir o consentimento do indivíduo. Em resumo, visa garantir maior segurança para os dois lados – cidadãos e empresas. 

Para regulamentar a coleta, o armazenamento e o tratamento de dados pessoais,  garantir maior responsabilidade e transparência, a norma estipula regras sobre ressarcimento de dados relacionados ao seu tratamento, bem como cria a categoria de “dado sensível”, com informações sobre origem racial ou étnica, convicções religiosas, opiniões políticas, saúde ou vida sexual. Registros como esses passam a ter nível maior de proteção, para evitar formas de discriminação.

Ainda com base na lei, foram estipulados os agentes de tratamento e suas funções, sendo eles: o controlador, aquele que toma as decisões sobre o tratamento; o operador, aquele que realiza o tratamento; e o encarregado, aquele que interage com os cidadãos e com a autoridade nacional. 

A Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD) será a responsável pela regulação, orientação, fiscalização e penalização dos agentes. A instituição também contará com o Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD), órgão consultivo que terá como objetivo garantir a participação da sociedade na formulação das políticas voltadas à segurança de dados. O CNPD terá 23 integrantes, sendo estes representantes da sociedade civil organizada, instituições científicas, tecnológicas e de inovação, setor empresarial, Executivo Federal, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público e Comitê Gestor da Internet no Brasil.

Nesse contexto, as empresas estão realizando algumas ações em busca da adequação à legislação, como a revisão e a adição de cláusulas em contratos novos e vigentes, a atualização de códigos de conduta, a revisão dos sistemas de coleta e armazenamento de dados para garantia de acesso restrito, o bloqueio de furtos ou perda de dados, a revisão da política de segurança de dados e o treinamentos aos funcionários. 

Além disso, elas devem seguir todas as bases legais e os princípios que se enquadram na LGPD, ou seja, precisam atender a todos os requisitos necessários para o tratamento de dados. Essas bases legais são orientações gerais que autorizam a atividade de tratamento de dados por parte de uma organização. 

Os adiamentos e atrasos acerca da aprovação e implementação da nova Lei 

Idealizada durante o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) e aprovada na gestão Michel Temer (PMDB), a LGPD compôs uma disputa no Congresso Nacional. A lei estava prevista para entrar em vigor em agosto de 2020, contudo, o governo tentou editar uma medida provisória, sem sucesso, que visava adiar a vigência para maio de 2021. O objetivo do adiamento era contemplar os pedidos de pequenas e médias empresas que teriam uma maior dificuldade de se adequar às regras em meio à pandemia do coronavírus.

Após tal fato, a Câmara dos Deputados aprovou a letra com prazo ínfero, tendo vigência para o final do ano de 2020, porém, o Senado Federal rejeitou a proposta deste dispositivo legal. Por fim, o então presidente Jair Bolsonaro sancionou o texto da medida provisória após esta sair do Senado, sem adiamento. Isto posto, a lei passou a valer em setembro de 2020. Por consequência disso, cabe às instituições privadas adequarem-se às novas exigências.

Outras discussões são cogitadas acerca da LGPD, pois as punições em caso de desrespeito e descumprimento da lei não estão valendo ainda, além do fato que o órgão responsável por fiscalizar tais ditames não está completamente institucionalizado.

Ainda sim, de modo a amparar as empresas, as punições por desobediência à LGPD só serão aplicadas a partir de agosto deste ano. Até lá, é esperado que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) já esteja em funcionamento.

O presidente da república Jair Bolsonaro editou, em agosto de 2020, o decreto que estipula a disposição e os cargos da agência. Além de indicar cinco conselheiros, que passarão por uma sabatina no Senado, o governo deve apontar qual será a sede da ANPD, seu orçamento, seu expediente, quantos e quais serão seus servidores. 

O exemplo da empresa Statkraft Brasil

Com o objetivo de exemplificar o processo de adequação da LGPD por parte de empresas, traz-se à baila o caso da Statkraft Brasil. As informações a seguir têm como base uma apresentação sobre a implantação da LGPD na empresa, realizada por uma de suas representantes, a convite dos graduandos de administração pública da Udesc Esag, em fevereiro de 2021. 

A Statkraft é uma empresa norueguesa, geradora de energia hidrelétrica, eólica, solar e a gás. Atualmente é a maior geradora de energia renovável da Europa e está presente também no Brasil, onde controla 18 ativos em 6 estados. 

A companhia pode ser vista como uma boa prática no que tange a adaptação à Lei Geral de Proteção de Dados, posto que, ao longo de 2020, realizou uma série de ações tendo como objetivo garantir a adequação à legislação.

Segundo Ivy von Kurrle, especialista na Statkraft em Compliance e Data Protection Officer, devido à origem da empresa ser norueguesa, foi também utilizada como base a General Data Protection Regulation – GDPR (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), regimento do direito europeu sobre a privacidade e proteção de dados pessoais.

O ponto de partida principal para a implementação da LGPD na empresa foi a identificação das bases legais, requisito imprescindível para viabilizar o tratamento de dados nas organizações. Bases legais constituem as hipóteses para o tratamento de dados pessoais. Na lei, essas bases estão especificadas no artigo 7, tendo dez diferentes categorias, como por exemplo, Consentimento e Legítimo Interesse. Ainda, foi essencial o alinhamento aos princípios da LGPD, os quais têm como objetivo delimitar o tratamento de dados, de maneira que apenas as informações essenciais sejam coletadas, além de assegurar proteção aos dados, garantir informações aos titulares destes e salvaguardar a aplicação da lei. 

Ivy aponta que, inicialmente, foi realizado um mapeamento dos processos internos a fim de identificar quais áreas utilizam dados pessoais, de quem são esses dados, quais os sistemas envolvidos na armazenagem, se é feita a transferência dessas informações e, principalmente, visando enquadrar o tratamento dos dados nas bases legais e nos princípios definidos pela legislação. 

Como exemplo de um processo mapeado na Statkraft que requer o tratamento de dados, tem-se o monitoramento realizado por câmeras de segurança no edifício da companhia. Este, por ser caracterizado pela coleta e armazenamento de imagens pessoais, requer enquadramento em alguma das bases legais previstas na lei. Segundo Ivy, este caso é enquadrado na base do Legítimo Interesse, porque a empresa tem o legítimo interesse em garantir a segurança de seus colaboradores.

Assim, a partir dos resultados obtidos no mapeamento realizado, foram implementadas algumas mudanças nos processos, criadas novas cláusulas referentes à LGPD para os contratos vigentes e também para os novos, além da criação de termos de consentimento. Como exemplo, para garantir o consentimento dos indivíduos em relação à coleta e armazenamento dessas informações, foi criado pelas áreas Jurídico e Compliance, uma Declaração de Privacidade de Dados para Terceiros. Esta declaração foi enviada a todas as contratadas da companhia das quais se fazia necessária algum tipo de tratamento de dados pessoais.  

Ainda, devido a expertise da equipe de Compliance da empresa, foram realizados treinamentos, campanhas e workshops para os funcionários da Statkraft e também para terceiros, a fim de conscientizá-los acerca da importância do tema e a necessidade de alteração no modus operandi de alguns processos.

Atualmente, muitas empresas estão buscando se adequar à nova lei de forma ágil e assertiva, como é o caso da Statkraft. Mesmo que as sanções para o não cumprimento da lei ainda não estejam em vigor, os titulares de dados pessoais já podem exigir seu cumprimento, com pedidos de esclarecimentos, correções e exclusões de informações. Assim, quanto mais rápida e efetivamente as organizações se adequarem à lei, menos riscos correrão.

Por fim, a LGPD representa um importante avanço no que tange à garantia de direitos dos cidadãos, numa sociedade cada vez mais conectada, que fornece informações pessoais constantemente e que pode acabar se tornando suscetível à adversidades, a exemplo do vazamento de dados de mais de 200 milhões de brasileiros, ocorrido em janeiro de 2021. Assim, a lei é importante pois viabiliza a proteção da privacidade, intimidade e imagem, direitos fundamentais previstos pela Constituição Federal. 

* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Fabiane Becker Facco, Julia Locks, Luciano Busarello e Nickolas Assis, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.

REFERÊNCIAS

10 bases legais da LGPD: Quais são? Disponível em: https://legalcloud.com.br/bases-legais-lgpd/ Acesso em 25 de fev de 2021

BRASIL. Câmara dos Deputados Federais. PROJETO DE LEI N.º 1.485 e PROJETO DE LEI N.º 1.875 (Apensado) de 2020. Modifica o Decreto 2.484 de 7 de dezembro de 1940. Brasília, 11 de abril de 2020. p. 7. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=D020AA546F28E4A314A757C1A0EDAC9C.proposicoesWebExterno1?codteor=1912861&filename=Avulso+-PL+1485/2020. Acesso em: 11 de mar. de 2021.

LGPD Reforça Proteção de Direitos Individuais. Disponível em: https://www.lgpdbrasil.com.br/lgpd-reforca-os-avancos-na-protecao-de-direitos-individuais/ Acesso em: 25 de mar. de 2021.

LGPD Em vigor: o que muda para a Administração Pública. Disponível em: http://site.serjusmig.org.br/noticia/6122/lgpd-em-vigor-o-que-muda-para-a-administracao-publica#:~:text=Esse%20mesmo%20regime%20jur%C3%ADdico%20de,%2C%20par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico%2C%20LGPD. Acesso em: 25 de fev de 2021.

Quem vai regular a LGPD? Disponível em: https://www.serpro.gov.br/lgpd/governo/quem-vai-regular-e-fiscalizar-lgpd Acesso em 27 de mar de 2021

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Fragilidades na transparência em compras públicas evidenciadas em época de pandemia no estado de Santa Catarina

Por  Suyane Honorato da Luz, Barbara Victória Balduino Jacomini e Manuela Pereira Lange *

No dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS), devido ao aumento de pessoas infectadas pelo vírus Sars-Cov-2, conhecido por Covid-19, declara pandemia, ou seja, a doença que teve seus primeiros casos registrados em Wuhan na China, já estava disseminada mundialmente. 

Em 26 de fevereiro de 2020 foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 no Brasil. Alguns dias depois, registrou-se o primeiro caso de transmissão interna no país. A doença chegou a Santa Catarina em 12 de março de 2020, logo após a OMS declarar situação de pandemia. O estado decretou situação de emergência e medidas de isolamento social, ultrapassando a marca de mil casos confirmados em apenas um mês.

Com a situação se agravando por todo o país, os estados começaram a voltar suas atividades para o combate à doença. Com isso deu-se início a diversas contratações, como a montagem de hospitais de campanha, aumento da capacidade das unidades de tratamento intensivo (UTI) e, no caso de Santa Catarina, a compra de duzentos respiradores, no dia 1º de abril de 2020, que, após a veiculação de uma matéria do  The Intercept Brasil, a qual apontava possíveis irregularidades no processo de contratação, tornou-se polêmica¹.

¹ Em adição à percepção das irregularidades ocorridas nas compras diretas, esse acontecimento contribuiu para a abertura de um processo de impeachment contra o governador Carlos Moisés em agosto de 2020, com a justificativa de que o “governador cometeu crime de responsabilidade na compra dos respiradores […] e que  prestou informações falsas à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos respiradores” (ROSA, 2020). Segundo uma reportagem feita por Borges (2021),  em janeiro de 2021 o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) arquivou o processo contra Carlos Moisés, porém o inquérito permanece em aberto, prosseguindo em julgamento nas esferas legislativa e judiciária.

A compra de 200 respiradores pelo Governo de Santa Catarina

A aquisição dos respiradores foi executada mediante contratação direta, já que se tratava de uma situação de caráter emergencial. É importante frisar que a contratação direta está prevista na Lei  nº 8.666/1993, artigo 24, que regulamenta as contratações em âmbito nacional, isto é, a compra foi balizada por uma possibilidade prevista na legislação. 

Conforme matéria jornalística do portal  The Intercept Brasil, cada respirador custou ao estado R$ 165 mil, um valor acima da média se comparado ao pago por outros estados, resultando no montante de R$ 33 milhões, que foram pagos antecipadamente. Além disso, os modelos de respiradores comprados não são indicados para uso na UTI, uma vez que a empresa alterou os modelos após a contratação. Vale ressaltar que apenas 50 unidades chegaram a Santa Catarina (BISPO; POTTER, 2020).

Em entrevista cedida ao portal G1 SC, em 04 de maio de 2020, o Governo de Santa Catarina, representado pelo Secretário da Administração, pela Secretária Executiva de Integridade e Governança e pelo Controlador-geral, admitiu fragilidades na compra dos respiradores, afirmando que o erro cometido no processo de contratação foi a ausência correta da justificativa para a compra, o que resultou em uma aquisição de respiradores que não são úteis para acometidos pelo vírus da Covid-19 em situações críticas. Também foi afirmado que, para dar celeridade ao rito processual naquele momento, nem  todos os processos de compras relacionados ao combate à pandemia passaram pela análise da Controladoria-Geral do Estado, Órgão Central do Sistema Administrativo de Controle Interno e Ouvidoria do Estado de Santa Catarina. 

Assim, os representantes enfatizaram que, a partir desses acontecimentos, o objetivo  foi o fortalecimento de toda a estrutura estatal para a prevenção de futuros riscos e erros (MARTINS, 2020).

Estrutura Administrativa do Sistema de Controle Interno e Ouvidoria do Estado de Santa Catarina

A Lei Complementar Estadual nº 741, de 12 de junho de 2019, instituiu a Controladoria-Geral do Estado (CGE) de Santa Catarina como órgão central do sistema Administrativo de Controle Interno e Ouvidoria. De acordo com o site institucional do órgão, este é responsável pela transparência e pelo combate efetivo à corrupção em toda a esfera do poder Executivo do Estado, atuando por meio de 3 pilares: Auditoria-Geral, Ouvidoria-Geral e Corregedoria-Geral. A finalidade da CGE é a de assessorar o Governador na defesa do patrimônio, no controle interno, na auditoria pública e no aperfeiçoamento dos mecanismos de prevenção e combate à corrupção, sendo responsável pelo incremento da transparência da gestão (SANTA CATARINA, 2021).

As Secretarias de Estado, por sua vez, possuem em sua estrutura organizacional as Coordenadorias de Controle Interno e Ouvidoria (CIOUV), unidades setoriais do órgão central do sistema administrativo. As coordenadorias são subordinadas a seus respectivos secretários e, tecnicamente, à CGE, visto que devem seguir as diretrizes do sistema central, a fim de assegurar que suas atribuições sejam cumpridas. 

A Secretaria Executiva de Integridade e Governança (SIG), também instituída pela Lei nº 741/2019, responde diretamente ao Governador do Estado  e tem como competência, de acordo com o art. 11 da referida lei, desenvolver o programa de integridade e governança, com a finalidade de proporcionar segurança jurídica e servir de instrumento aos agentes públicos encarregados da consecução das políticas públicas e estratégias governamentais. A Figura 1 ilustra essa estrutura.

Figura 1 – Estrutura Administrativa do Sistema de Controle Interno e Ouvidoria

Fonte: elaboração própria.

Para a defesa dos interesses públicos, o Estado  pauta suas ações no modelo das três linhas do The Institute of Internal Auditors, conforme Figura 2, uma ferramenta simples e direta na explicação dos papéis e atividades que compõem o gerenciamento dos riscos e dos controles. 

Figura 2 – Modelo das 3 linhas

Fonte: The Institute of Internal Auditors, 2020.

Na primeira linha, encontram-se os gerentes operacionais de cada área, responsáveis pela execução das atividades-fim, análise de riscos e controles inerentes às determinações legais relacionadas às ações desenvolvidas. Os gerentes são também responsáveis pelas implementações das ações corretivas e pelas resoluções de déficits nos processos.

A segunda linha oferece uma expertise complementar, apoio e monitoramento quanto ao gerenciamento de riscos, verificando as conformidades com as leis e regulamentos e analisando se o controle da primeira linha está sendo de fato executado. No âmbito da estrutura administrativa do estado de Santa Catarina, a função da segunda linha é desempenhada pelas unidades setoriais de controle interno e ouvidoria. 

Observa-se que pode haver uma fragilidade relativa a esta dimensão, pois atua com os servidores de mesmo nível hierárquico e também é subordinada ao seu respectivo secretário, não tendo um grau de independência para executar suas atividades.

A terceira linha oferece avaliação e assessoramento independentes e objetivos, através da auditoria interna, sendo representada pela Controladoria-Geral do Estado. Nessa linha, por ter independência, a CGE pode conversar com os Secretários “de igual para igual”, pois representam um mesmo nível hierárquico, subordinadas diretamente ao Governador do Estado.

Para entender as ações realizadas para o fortalecimento dessa estrutura estatal, conversamos, em março de 2021, com Juliana Wüst Panceri, servidora pública efetiva do estado de Santa Catarina há 11 anos, dos quais há 6 anos atuando diretamente nas unidades setoriais de controle interno.

Quais foram as medidas tomadas pela CGE perante as contratações em caráter emergencial?

Conforme nota da atuação da CGE na aquisição dos 200 ventiladores mecânicos, esta secretaria informou que, com a publicação da medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020, que flexibilizou as regras de contratações para enfrentar a pandemia, o órgão central do sistema administrativo de controle interno e ouvidoria de Santa Catarina, no dia 31 de março de 2020, reuniu-se com o Centro de Gerenciamento de Riscos e Desastres da Secretaria de Defesa Civil para construção de um plano de trabalho de assessoramento e consultoria para auditar as licitações em caráter emergencial, ou seja, procedimentos de contratação direta. Assim, a Controladoria-Geral do Estado publicou a Orientação Técnica nº 02/2020, na qual orienta os órgãos e entidades a respeito da dispensa de licitação nos casos de enfrentamento à pandemia. A orientação técnica serviu como base para a elaboração do Guia de Procedimentos e de Identificação dos principais riscos em aquisições e contratações diretas destinadas ao enfrentamento da Covid-19.

Como o Órgão Central do Sistema Administrativo de Controle Interno e Ouvidoria teve ciência da compra dos respiradores?

Em comunicado oficial, a CGE informou que a Secretaria de Estado da Saúde (SES), órgão responsável pelas compras dos respiradores, solicitou, via e-mail, a avaliação do processo por parte do órgão estadual de controle interno, no dia 18 de abril de 2020, ou seja, depois de ter realizado o pagamento do valor total de R$ 33 milhões. O pagamento, de acordo com o portal The Intercept Brasil, foi realizado no dia 1º de abril daquele ano, após as publicações da orientação técnica e do guia de procedimentos e de identificação dos principais riscos relacionados às contratações relativas à Covid-19. Assim os auditores da CGE constataram, entre outras coisas, de acordo com a nota de atuação supracitada, que:

  1. o pagamento antecipado não teve a exigência de garantias à entrega dos aparelhos;
  2. a proposta apresentada pela Veigamed, empresa contratada, não possuía data e nem a identificação de seus representantes legais;
  3. houve a substituição do modelo contratado sem a avaliação e aprovação da SES; e
  4. o valor unitário foi superior ao contratado por outros órgãos.

Ainda, conforme a nota de atuação, devido às constatações de irregularidades, a CGE encaminhou uma notificação à SES, recomendando, entre outras coisas, que:

  1. a SES notificasse a empresa Veigamed acerca da necessidade do reequilíbrio   econômico-financeiro do contrato;
  2. houvesse a instauração de Investigação Preliminar, conforme previsto na Lei Anticorrupção e no decreto estadual nº 1.106/17, que regulamenta a referida lei no âmbito estadual; e 
  3. fosse instaurada Sindicância Investigativa no âmbito da SES.

Quais foram as ações tomadas para o fortalecimento da estrutura de controle interno do Estado e seus resultados?

De acordo com a notícia veiculada pelo site oficial da CGE, para a prevenção de riscos relacionadas às contratações emergenciais, a Controladoria-Geral do Estado e a Secretaria de Estado da Administração, conjuntamente, publicaram a Instrução Normativa nº 004/2020, que determina que as compras emergenciais para o enfrentamento do novo coronavírus com valor maior ou igual a R$ 176 mil, realizadas pelos órgãos da Administração Pública Estadual, devem ser submetidas à prévia avaliação da CGE.

A manifestação da Controladoria poderá se dar de duas formas: previamente, por meio de orientação visando à identificação de eventuais riscos que possam ocorrer nas aquisições, oportunidade em que a CGE poderá oferecer ao gestor alternativas de mitigação para os riscos identificados; ou de forma concomitante ou posterior, por meio de auditorias, inspeções, fiscalizações ou monitoramento, sempre de acordo com o Plano Anual de Auditoria (PAA) e a capacidade operacional da CGE (SANTA CATARINA, 2020).

Segundo o site oficial da CGE, de março a dezembro de 2020 foram analisados e assessorados os processos de compras ligados ao enfrentamento da Covid-19, que juntos somaram aproximadamente R$ 350 milhões, derivados de compras com dispensa de licitação, devido ao caráter emergencial. No período, mediante análises prévias, foram 42 processos de compras diretas analisadas, superando R$ 300 milhões. 

De março a abril de 2020, foram avaliados 27 processos de dispensa de licitação, envolvendo quase R$ 42 milhões. Ainda, foram realizadas avaliações para verificação e aperfeiçoamento de controles internos na Secretaria de Estado da Saúde e na Secretaria de Estado da Administração com base nas análise prévias, devido a recorrência de inconsistências verificadas e a constatação de que as análises prévias não estavam sendo capazes de alcançar as causas dos problemas identificados, apenas revelá-los. 

Após o acontecimento relativo aos respiradores, acelerou-se o processo de integração dos sistemas, tornando-se cada vez mais digital. A partir de agora, a CGE realiza o monitoramento da execução da receita e da despesa relacionados ao combate da Covid-19 a partir da classificação destes processos nos sistemas Sistema Integrado de Planejamento e Gestão Fiscal (SIGEF) e Sistema de Gestão de Processos Eletrônicos (SGP-e), o que permite um melhor acompanhamento e ainda auxilia na transparência para a correta geração de informações das despesas no Portal da Transparência (SANTA CATARINA, 2020).

Além disso, estão sendo implementadas mudanças no sistema de licitação. Agora, para não correr o risco de perder informações, registra-se tudo no sistema de pagamento SIGEF, que já está integrado com a plataforma de Transparência, ajudando os órgãos de auditoria a realizarem um acompanhamento online. Isso reforça a atuação dos órgãos de controle interno e externo, bem como o controle que é realizado pela própria sociedade, uma vez que todas as etapas do processo licitatório podem ser acompanhadas pelo cidadão.

Para reforçar os sistemas de controles é fundamental a integração entre o controle interno e o externo. Após os acontecimentos, o Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE/SC), órgão de controle externo, publicou a Instrução Normativa nº TC-28/2021, que visa aprimorar a metodologia de acompanhamento das contratações. Essa normativa definiu algumas responsabilidades e atribuições às setoriais de controle interno que terão que acompanhar o envio das informações ao TCE, bem como amplia o rol de dados a serem obrigatoriamente compartilhados com a Corte de Contas.  

Assim, as licitações passam a ser submetidas ao TCE/SC na fase pré licitatória, a partir de um determinado valor. A submissão irá gerar um número e, ao torná-la pública, será necessário incluir o número de registro na portaria. Ressalta-se que, até 2020, as licitações eram encaminhadas para análise do Tribunal de Contas até o dia seguinte após a primeira publicação no órgão oficial. Além dos documentos serem submetidos antes dos editais se tornarem públicos, em outras fases do processo licitatório os dados e informações também deverão ser encaminhados.

Considerações

A partir da apresentação do escândalo que aconteceu em abril de 2020, envolvendo a compra dos respiradores, ficou explícita a fragilidade do controle em todas as etapas e a necessidade de rever as normativas vigentes até então. Em razão do ocorrido, houve reforço nas ações de acompanhamento da regularidade das licitações no âmbito do Estado de Santa Catarina.

Assim sendo, cabe ressaltar que, diante um cenário desfavorável e que causou o escândalo, foi possível perceber gargalos que aconteciam nas compras públicas e, assim, repará-los, tornando o processo mais eficiente. Logo, em alguns casos, a desordem pode servir para gerar aprendizagem e desenvolvimento. Portanto, apesar do dano ao erário trazido e da instabilidade política reforçada pela compra dos respiradores e que pode ter afetado a resposta à pandemia, essa situação serviu para revisar e aprimorar procedimentos licitatórios e  mecanismos de accountability no estado de Santa Catarina.

Além disso, com a aprovação no Congresso Nacional, da Nova Lei de Licitações (Projeto de Lei nº 4.253, de 2020) será obrigatório que as contratações públicas se submetam a práticas contínuas de gestão de riscos e de controle preventivo, sujeitando-se ao modelo das três linhas de defesa, conforme artigo 168.

Por meio de procedimentos padronizados em todos os órgãos e setores é favorecido o gerenciamento de riscos e controles mais efetivos. Vale destacar que a padronização se refere a situações comuns e também pode ser útil nas emergenciais, sendo importante que se tenha previamente mapeadas atividades para casos de calamidade pública em que é necessário agilidade.

Assim dizendo, uma estrutura de controle interno fortalecida e padronizada, além de favorecer a governança, pode reduzir os riscos dos processos, bem como garantir maior transparência e celeridade nos processos de fiscalização.  

Ainda, é importante considerar que por se tratar de um caso emergencial, é possível que aconteça situações inusitadas e repentinas, que podem colocar em xeque essas ações. Assim dizendo, mesmo que a adoção dessas medidas contribuam para melhorar o controle de risco, deve-se ficar atento às mudanças e à realidade que cada situação exige.

Vale ressaltar que as ações implementadas no âmbito do estado de Santa Catarina promovem o fortalecimento da confiança e a prestação de contas, por meio da apresentação das atividades desempenhadas por cada ator envolvido. Por fim, resulta em compras mais eficientes e, consequentemente, contribui para a redução de gastos e a melhoria da qualidade dos serviços públicos.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Suyane Honorato da Luz, Barbara Victória Balduino Jacomini e Manuela Pereira Lange, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.

REFERÊNCIAS

BORGES, Caroline. MP arquiva investigação civil contra governador de SC, Carlos Moisés, no caso da compra dos 200 respiradores. G1 SC, 21 jan.2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/01/27/mpsc-arquiva-investigacao-civil-contra-governador-de-sc-carlos-moises-no-caso-da-compra-dos-200-respiradores.ghtml. Acesso em: 21 mar. 2021

BISPO, Fábio; POTTER, Hyury. CORONAVÍRUS: SC ACEITA PROPOSTAS FORJADAS E GASTA R$ 33 MILHÕES NA COMPRA DE RESPIRADORES FANTASMAS: governo aceitou orçamentos fraudados e com dados falsos. após o pagamento, a empresa trocou o produto por um modelo inferior e sem aprovação técnica. The Intercept Brasil. 28 abr. 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/04/28/sc-proposta-forjada-respiradores-fantasmas/. Acesso em: 13 mar. 2021.

MARTINS, Valéria. Governo de SC admite ‘fragilidade’ em processo de compra de respiradores que não chegaram. G1 SC. 04 maio 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2020/05/04/governo-de-sc-admite-fragilidade-em-processo-de-compra-de-respiradores-que-nao-chegaram.ghtml. Acesso em: 13 mar. 2021.

ROSA, Karollayne. Comissão da Alesc aprova segundo pedido de impeachment do governador Carlos Moisés e arquiva denúncia contra vice. GI SC, 13 out. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2020/10/13/alesc-aprova-segundo-pedido-de-impeachment-do-governador-carlos-moises-e-arquiva-denuncia-contra-vice.ghtml. Acesso em: 21 mar. 2021.

SANTA CATARINA. CONTROLADORIA-GERAL DO ESTADO DE SANTA CATARINA.  COVID-19: IN CGE/SEA 004/2020 DETERMINA AVALIAÇÃO PRÉVIA DA CONTROLADORIA-GERAL PARA COMPRAS EMERGENCIAIS. 2020. Disponível em: https://cge.sc.gov.br/covid-19-in-cge-sea-004-2020-determina-avaliacao-previa-da-controladoria-geral-para-compras-emergenciais/. Acesso em: 14 mar. 2021.

SANTA CATARINA. CONTROLADORIA-GERAL DO ESTADO DE SANTA CATARINA. BALANÇO 2020: AUDITORIA AVALIA CERCA DE R$ 350 MILHÕES EM COMPRAS LIGADAS À COVID-19. 2020. Disponível em: https://cge.sc.gov.br/balanco-2020-auditoria-avalia-cerca-de-r-350-milhoes-em-compras-ligadas-a-covid-19/. Acesso em: 14 mar. 2021.

SANTA CATARINA.CONTROLADORIA-GERAL DO ESTADO DE SANTA CATARINA. SECRETARIA DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO. INSTRUÇÃO NORMATIVA CONJUNTA CGE/SEA Nº 04, DE 09 DE JULHO DE 2020. Disponível em: http://server03.pge.sc.gov.br/LegislacaoEstadual/2020/000004-009-0-2020-025.htm Acesso em: 21 mar. 2021

SANTA CATARINA. Controladoria-Geral do Estado de Santa Catarina. ORIENTAÇÃO TÉCNICA Nº 002/2020. 7 abr. 2020. Disponível em: https://www.cge.sc.gov.br//wp-content/uploads/2020/04/OT-CGE-002-2020-Dispensas-COVID-19-PDF.pdf. Acesso em: 21 mar. 2021.

SANTA CATARINA. CONTROLADORIA-GERAL DO ESTADO DE SANTA CATARINA. GUIA DE PROCEDIMENTOS e de identificação dos principais riscos em aquisições e contratações diretas destinadas ao enfrentamento da COVID-19. 1 ed. 2020. Disponível em: https://www.cge.sc.gov.br//wp-content/uploads/2020/04/GUIA-DE-PROCEDIMENTOS-CONTRATA%c3%87%c3%95ES-COVID-19.pdf. Acesso em: 21 mar. 2021.

SANTA CATARINA. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SANTA CATARINA. INSTRUÇÃO NORMATIVA TC Nº 28/2021. 2021. Disponível em: https://www.tcesc.tc.br/sites/default/files/leis_normas/INSTRU%C3%87%C3%83O%20NORMATIVA%20N%2028-2021%20CONSOLIDADA.pdf. Acesso em: 22 mar. 2021.

The IIA. THE INSTITUTE OF INTERNAL AUDITORS. MODELO DAS TRÊS LINHAS DO IIA 2020: uma atualização das três linhas de defesa. 2020. Disponível em: https://iiabrasil.org.br/korbilload/upl/editorHTML/uploadDireto/20200758glob-th-editorHTML-00000013-20072020131817.pdf. Acesso em: 13 mar. 2021.

Para saber mais sobre o tema:
3ª Edição – Gestão Pública em Tempos de Crise – Compras Públicas e Controle em Tempos de Crise com os convidados Henrique Ziller, Karen Sabrina Bayestorff Duarte, Marco Antonio Carvalho Teixeira e como mediadora Paula Chies Schommer.

Transparência em Florianópolis: perspectivas e desafios contemporâneos

Por Letícia Martins, Isabela Balza e Cauê Marchionatti *

Já é sabido, principalmente desde a promulgação da Lei de Acesso à Informação (LAI), em 2011, que é dever do Estado brasileiro garantir o direito de acesso à informação de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão. Ainda, que os órgãos públicos devem divulgar amplamente todas as informações de interesse coletivo relativas a sua atuação.

Nesse sentido, foram criados, nos últimos anos, organizações e índices de transparência voltados ao acompanhamento e à cobrança do poder público na aplicação de dispositivos como a LAI, a exemplo da Escala Brasil Transparente (EBT), elaborada pela Controladoria-Geral da União (CGU). Outros índices, que vão além do cumprimento de dispositivos legais,  como o Corruption Perceptions Index (CPI), ou Índice de Percepção da Corrupção, produzido pela Transparência Internacional, ganham espaço e impacto na percepção política dos cidadãos.

Esse movimento de atenção à transparência pública foi acentuado com a pandemia da COVID-19, aumentando o interesse da sociedade acerca das informações sobre contratações emergenciais, doações e medidas de estímulo econômico e proteção social. É o que mostra o exemplo do Ranking de Transparência no combate à COVID-19,  produzido pela Transparência Internacional – Brasil. Cresce a compreensão da população de que, a corrupção e a falta de transparência sobre critérios e processos, além de prejudicar o atendimento básico de saúde, afetam as tentativas dos governos de estimular a economia e proteger as famílias em situação vulnerável.

A descentralização administrativa, ao atribuir responsabilidade para vários níveis de governo na provisão de serviços, amplifica a necessidade e as formas de controle dos atos dos gestores públicos. Não só no que concerne à regularidade e à legalidade desses atos, mas, principalmente, à eficácia e efetividade das ações empreendidas. Assim, é imprescindível que o município disponha de um sistema de controle confiável e bem estruturado que consiga, entre outras atribuições, avaliar o cumprimento das metas estabelecidas, estar aberto ao cidadão, demonstrar a execução dos programas de governo e da execução orçamentária, prestar contas, comprovar a legalidade dos atos e avaliar os resultados quanto à eficiência e à eficácia da gestão orçamentária, financeira, patrimonial e operacional dos órgãos e entidades da administração municipal.

No município de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, que vem alcançando desempenho ruim em transparência, em comparação com outras capitais, alguns fatores recentes podem representar condições para melhorias. No âmbito do Executivo, a Secretaria Municipal da Transparência, Auditoria e Controle, juntamente com a estruturação do Sistema de Controle Interno, tem como objetivos, de acordo com sua apresentação no site, melhorar a organização e o desempenho do governo municipal e dotá-lo de ferramentas indispensáveis para o incremento da efetividade, da eficácia e da transparência das suas ações e de um eficiente instrumento de controle social.

No âmbito do Legislativo,  uma proposta de “Política de Transparência na Administração Pública de Florianópolis” foi elaborada pela  CPE: Comissão Parlamentar Especial pela Transparência na Administração Pública de Florianópolis,  criada através do Requerimento 382/2019 em novembro de 2019.

A CPE foi composta pela Câmara Municipal aliada a membros da área acadêmica, de órgãos de controle e da sociedade civil, sendo eles: o grupo de pesquisa Politeia, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), a Controladoria Geral da União (CGU), o Ministério Público de Contas (MPC/SC), o grupo de pesquisa Nigep, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), o Observatório Social de Florianópolis, o Instituto Politize! e o Tribunal de Contas do Estado (TCE/SC). A comissão reuniu-se entre 2019 e 2020 para diagnosticar as práticas de transparência no Executivo e no Legislativo municipais, estudar, debater e planejar questões acerca de boas práticas, melhorias e estratégias para aumentar a transparência pública no município. 

Foram constituídos três grupos de trabalho na CPE: Legislação e Transparência, Serviços e Compras Públicas e Participação e Controle Social. O primeiro grupo observou o envolvimento do município em relação às obrigações presentes na Lei da Transparência, Lei de Acesso à Informação e Lei de Responsabilidade Fiscal. Como guia para o diagnóstico,  o grupo utilizou um instrumento disponibilizado pelo Ministério Público de Contas de Santa Catarina, o “checklist” da Transparência.

O segundo grupo abordou o desempenho e sugestões no que diz respeito a Carta de Serviços, a observação das diretrizes e leis relativas à transparência nas contratações públicas pela Prefeitura e Câmara Municipal de Florianópolis e, por fim, as indicações de áreas prioritárias candidatas a inovar no quesito transparência em serviços públicos. 

Por fim, o terceiro grupo ficou responsável por verificar e explorar os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo, bem como a atuação pública aliada à sociedade civil no sentido da participação e do controle social.

Um grande fruto do trabalho realizado pela CPE foi a elaboração de um Projeto de Lei (PL) para instituir uma Política Municipal de Transparência. O projeto de lei pode ser conferido na íntegra aqui, bem como o acompanhamento de sua tramitação. 

O projeto traz diversos conceitos vistos como instrumentos fundamentais para a accountability, como também introduz e fomenta um processo de educação e engajamento sobre a importância da transparência. Além disso, o PL visa melhorar o posicionamento do município de Florianópolis em rankings renomados de transparência, fomentar a inovação, a aproximação e a ampliação de acesso a serviços públicos, e a participação e o controle social através de iniciativas do município, órgãos públicos, instituições de ensino e servidores públicos. 

Dentro do contexto da pandemia do novo coronavírus, vale ressaltar também o “Covidômetro” como um fator de inovação na transparência pública, criado como um instrumento para informar diariamente sobre os casos de COVID-19 no município de Florianópolis e suas decorrências, permitindo controlar e avaliar de maneira objetiva a situação de saúde no município. Para conhecer mais sobre esse instrumento e o que representa em termos de valorização da transparência pública, durante a pandemia do novo coronavírus, vale a leitura do seguinte texto: Qual a importância da transparência pública no tempo de pandemia?

Diante do desempenho ainda frágil em transparência no município de Florianópolis, ainda que haja avanços e grande potencial, em debate na disciplina de Sistemas de Accountability da Udesc Esag, em março de 2021, foi feita a seguinte pergunta aos participantes da aula: “Em poucas palavras, qual você considera ser o maior desafio no futuro da transparência em Florianópolis?”. Das respostas, “vontade política” foi a expressão que mais se repetiu, trazendo consigo o questionamento sobre o seu significado.

Sabemos que a participação de diferentes atores na concepção de políticas públicas é essencial para construirmos resultados relevantes para a sociedade. Porém, é na ação política e nas atividades cotidianas no trabalho de servidores públicos, representantes políticos e cidadãos que esses expressam suas  visões de mundo, valores e prioridades e as “materializam” em escolhas, comportamentos e ações. O que se pode chamar de vontade política. Assim, os anseios e  propostas ganham vida, geram eventuais mudanças e produzem efeitos reais.

Entre as barreiras da aplicação plena da transparência pelos gestores e servidores públicos, podemos encontrar um certo receio de como esses dados serão interpretados e utilizados por atores de oposição. É lógico pensar que a transparência amplia o papel de controle da sociedade e de opositores ou críticos, o que pode, não apenas gerar controvérsias, mas, sobretudo, contribuir para melhorias. A demanda por transparência cobra, também do cidadão, o acompanhamento ativo dos atos e omissões do poder público e maior contribuição para o aprimoramento da gestão pública, criando assim uma via de mão dupla de responsabilidade.

Aqui se observa que a transparência nas propostas políticas de candidatos a cargos eletivos ainda é pouco demandada pela população em geral, que coloca esse assunto em segundo plano no momento da definição dos posicionamentos e estratégia de atuação. Como nos mostra a experiência das recentes eleições municipais, a ausência de uma proposta para a transparência no plano de governo não é impeditivo para uma campanha bem sucedida em número de votos.

O que se observa na prática das gestões transparentes é claro: ao envolver os cidadãos no contexto das decisões, abre-se a oportunidade de entender a fundo as motivações de cada posicionamento, aumentando o amparo dos gestores na sua rede de apoio político. Quando o cidadão entende o porquê das decisões e está alinhado com elas, tem-se um aliado na busca por soluções.

Essa oxigenação na rede de pessoas e organizações dedicadas a resolverem os problemas públicos que define o ganho inegável decorrente do investimento em transparência. Nesse tema, o conceito de dados abertos surge como uma das pontes entre os desafios da gestão e a geração de alternativas por parte da sociedade civil.

Uma vez que os dados estejam publicizados de maneira acessível, cidadãos, conselheiros, organizações da sociedade civil e empresas conseguem propor críticas mais construtivas aos assuntos de interesse da sociedade e sugerir soluções mais assertivas ao poder público e à provisão de serviços públicos, que por meio da implementação destas medidas tem um retorno positivo da população, à medida que os efeitos são sentidos com maior precisão.

A disponibilização eficiente dos dados ajuda ainda os gestores públicos a tomarem melhores decisões internas, visto que facilita a análise dos dados gerados no setor público, dependendo de menos intermediários para acessar, tratar e julgar dados relativos ao panorama da gestão.

Na prática, os benefícios da abertura e disponibilização de dados públicos superam o esforço para a mudança cultural necessária. O momento é de evidenciar, por meio de casos de sucesso e experiências bem sucedidas de aplicação da transparência, que a adoção desse princípio, dessa  política e dessa prática cotidiana se torna “um bom negócio” para todos os envolvidos, criando uma comunidade mais engajada e participativa, ampliando  o poder  dos gestores e do coletivo para a entrega de melhores serviços públicos e a realização da democracia. Como por exemplo, no município de Blumenau com o programa “Pavimenta Ação”, que, a partir da transparência, ampliou a confiança, a participação e a capacidade de entrega de serviços. Será que o município de Florianópolis também virá a apresentar exemplos nesse sentido?

* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Letícia Martins, Isabela Balza e Cauê Marchionatti, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, Lucas; VANDRESEN, Luana; ALVES, Thiago. Qual a importância da transparência pública no tempo de pandemia? Grupo de Pesquisa Politeia, Udesc Esag, 2020. Disponível em: http://politeiacoproducao.com.br/qual-a-importancia-da-transparencia-publica-no-tempo-de-pandemia-o-caso-da-prefeitura-de-florianopolis-que-construiu-um-mecanismo-de-transparencia-mas-tomou-decisoes-questionaveis-durante-a-sua-ope/.  Acesso em: 24 mar.2021.

BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.html. Acesso em: 24 mar.2021.

BRASIL. Escala Brasil Transparente. Disponível em: https://mbt.cgu.gov.br/publico/avaliacao/escala_brasil_transparente/66#ranking. Acesso em: 24 mar.2021.

OPEN KNOWLEDGE BRASIL. Open Data Index. Disponível em: https://www.ok.org.br/projetos/open-data-index/. Acesso em: 24.mar.2021.

PREFEITURA DE FLORIANÓPOLIS. Secretaria Municipal de Transparência, Auditoria e Controle. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/smtac/index.php. Acesso em: 24 mar.2021.

PAPERLESS GOV. PL n. 18124-2020. Disponível em: https://paperlessgov-editor.cmf.sc.gov.br/visualizador/publico/anexo/1261. Acesso em: 24 mar.2021.

POLITEIA. Comissão Parlamentar Especial pela Transparência no município de Florianópolis. Disponível em: http://politeiacoproducao.com.br/comissao-parlamentar-especial-pela-transparencia-no-municipio-de-florianopolis/. Acesso em: 24 mar.2021.

POLITEIA. Londrina – Da opacidade à transparência, da corrupção à gestão, da perplexidade à coprodução. Disponível em: https://politeiacoproducao.com.br/londrina-da-opacidade-a-transparencia-da-corrupcao-a-gestao-da-perplexidade-a-coproducao/. Acesso em: 24.mar.2021.

ROCHA, Arlindo Carvalho; SCHOMMER, Paula Chies; DEBETIR, Emiliana; PINHEIRO, Daniel Moraes. Transparência como elemento da coprodução na pavimentação de vias públicas. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 24 (78): 1-22, 2019. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cgpc/article/view/74929. Acesso em: 24.mar.2021.

SOCIAL GOOD BRASIL. Festival 2019 | Dados abertos e transparência no governo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=e5fAvLcbEA0. Acesso em: 24.mar.2021.

TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL. Índice de percepção da corrupção 2020. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ipc/. Acesso: 24 mar.2021.

TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL. Ranking de transparência no combate à COVID-19. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ranking/. Acesso: 24 mar.2021.

Para saber mais:

Canal YouTube do Grupo de Pesquisa POLITEIA – Webinars relativos ao trabalho da Comissão Parlamentar Especial pela Transparência em Florianópolis

Como a transparência e a accountability podem contribuir para tornar a polícia brasileira mais legítima e eficiente?

Por Virgilio Scheithauer e Mateus Callado *

A temática de accountability da força policial é relativamente nova no Brasil. A realização da accountability, que se refere à responsabilização por atos e omissões e ao controle sobre o poder, depende de um conjunto de valores, instrumentos e processos de gestão. 

No que se refere às polícias, esse conjunto inclui a elaboração de leis, que passam por debates e votações no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. Contempla, também, os regulamentos das próprias corporações, considerando que a força policial no Brasil é composta pela Polícia Federal, Polícia Legislativa Federal, Polícias estaduais – militar e civil e, em alguns municípios, as guardas municipais. 

Esse conjunto que compõe a força policial brasileira concentra poder. Em contextos democráticos, o poder está sujeito à accountability, em suas várias dimensões, como transparência, responsabilidade, controlabilidade, imputabilidade (ou  responsabilização por atos e omissões) e responsividade (KOPPELL, 2005). Esta entendida como capacidade de resposta às expectativas dos cidadãos (HEIDEMANN, 2009). 

Os meios pelos quais as corporações podem promover accountability incluem a divulgação de dados, informações e  relatórios, por diversos meios, e respostas às demandas de informações específicas por qualquer interessado de acordo com a Lei de Acesso à Informação (LAI). Entre os dados que se espera estejam disponíveis estão informações  financeiras, administrativas e contábeis, dados relativos à ocorrência de crimes, como furtos, roubos e mortes violentas (intencionais ou não), incluindo mortes ou lesões seguidas de morte causadas por policiais, mortes de jovens e mortes de policiais, além de outros dados e explicações sobre a ação das polícias frente a essas ocorrências, seja na prevenção, na investigação ou na detenção.

Uma tendência verificada nos últimos anos entre algumas polícias é o uso de filmagens em bodycameras (câmeras fixas junto ao corpo, durante a ação policial), que servem como ferramenta para as investigações, podendo ter impacto sobre as condutas dos policiais. Segundo uma pesquisa realizada pela National Criminal Justice Reference Service (NCJRS) com policiais em Las Vegas, foi concluído que os policiais utilizando câmeras corporais geraram um menor número de reclamações e mostraram mais eficiência.

De acordo com a vereadora Maryanne Mattos, Guarda Municipal há 17 anos, que atuou como comandante da corporação e como Secretária de Segurança Pública de Florianópolis, algumas ferramentas de accountability policial, como o uso de câmeras corporais, através da transparência, proporcionam segurança com relação à imagem dos agentes policiais que fazem seu trabalho corretamente. “A transparência na segurança pública também significa segurança para o agente da segurança pública”, já que o mesmo não fica à mercê das diversas percepções ou achismos relacionados a alguma ocorrência ou atitude do policial. 

“A transparência na segurança pública também significa segurança para o agente da segurança pública”

Maryanne Mattos (2021)

Ela também aponta a necessidade de adequação das ferramentas já utilizadas com as tecnologias à disposição, para que sejam mais eficientes e transparentes. Durante sua trajetória como Secretária de Segurança Pública, a vereadora presenciou o quão arcaicas são muitas das ferramentas à disposição dos agentes policiais. A Guarda Municipal, por exemplo,  ao fazer suas autuações na fiscalização de trânsito, utiliza anotações em papel, enquanto outras entidades fiscalizadoras utilizam  talonário eletrônico, o que tende a tornar o registro de dados e o encaminhamento dos processos mais célere e confiável. 

A falta de interesse na temática da transparência por parte dos gestores públicos e, por vezes, de setores dentro das forças policiais, também tende a atrasar a melhoria dos processos. Muitas vezes, não são reconhecidas ou priorizadas essas demandas por ferramentas operacionais mais transparentes em certo órgão, comprometendo sua eficiência ao longo dos anos. 

Esse cenário de atraso no uso de ferramentas que gerem transparência, celeridade e confiança é negativo para as forças policiais. Muitas vezes, o caminho é uma certa improvisação, com os recursos que se tem à mão. Buscando obter uma  percepção mais positiva por parte da população, evitar possíveis reclamações ou denúncias ao Ministério Público, ou posicionamento incorreto pela mídia, muitos policiais tomaram a iniciativa de fazer registros em vídeos de suas ocorrências e ações,  principalmente em situações de tensão, como manifestações ou protestos na rua. Apesar de ser uma boa forma de preservar a integridade dos agentes, como é feita de forma pessoal (utilizando até de celular, como foi relatado pela vereadora), a iniciativa exige do agente policial encarregado pela filmagem mais do que sua função estabelecida, o que pode dificultar seu trabalho. 

A falta de transparência e de políticas mais claras de accountability contribuem para uma percepção negativa da força policial brasileira por parte da população. Como se trata de um país com altos índices de criminalidade e ao mesmo tempo de violência e corrupção policial, as narrativas e pressões sociais geradas em meio a isso são de certa forma imaturas e vão no sentido contrário da transparência como caminho para construção de confiança e bom desempenho.

Muitas das pressões populares sobre o legislativo, geradas a partir dessa mentalidade, reforçam o atraso que vivemos em relação à temática. Atualmente, pode-se supor que ainda não há uma demanda popular significativa por accountability policial. A população de forma geral tende a focar expectativas a respeito do quão ostensivas querem suas polícias, o que pode variar conforme o contexto local e fatores como classe social e criminalidade da região, por exemplo. 

Os impulsos por polícias mais ostensivas vem crescendo no país, como consequência da criminalidade, o que acaba por ajudar a perpetuar, de forma indireta, certos tipos de conduta inadequada por parte dos agentes. Para contrapor esse risco, um dos caminhos cruciais é o treinamento das forças policiais, buscando uma mudança cultural na corporação e agentes, bem como condições para uma atuação mais efetiva.

Outros caminhos são projetos que aproximam policiais e comunidade, o incentivo à participação, a promoção de debate e controle social por meio dos conselhos de segurança pública, diálogo mais aberto e frutífero dos órgãos de segurança com a imprensa, e articulação constante entre as forças policiais e pesquisadores e organizações da sociedade civil dedicados a aprimorar a segurança pública no Brasil. Entre as organizações que vêm se destacando nessa área no Brasil, estão o Instituto IgarapéInstituto Sou da Paz, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a empresa social Viva Rio, como também a  Justiça Global.

A aprendizagem e a troca de experiências com polícias de outros países já mais familiarizados com o conceito de accountability também podem contribuir para uma evolução nessa temática. No caso dos Estados Unidos, há exemplos de iniciativas para promover transparência através da participação popular e ferramentas para investigação e controle. Entre elas: o uso de banco de dados com diversas questões relacionadas à conduta policial, uso de câmeras corporais (citado anteriormente), órgãos do governo responsáveis por informar a população das ferramentas ao seu dispor, plataformas municipais para denunciar condutas inadequadas, entre outras. 

Enfim, há um longo caminho para que a polícia e a sociedade consigam entrar em harmonia e colaborar entre si para enfrentar os desafios do país na segurança pública. Cabe também avançar nos mecanismos legais e na adoção de práticas validadas em polícias internacionais, as quais favoreçam e venham a premiar as práticas de accountability policial no Brasil. Tudo isso tende a contribuir para melhorar a relação de confiança entre sociedade e os órgãos a quem cabe proteger o cidadão, independentemente de cor, credo e status social.

* Texto elaborado pelos acadêmicos Virgilio Scheithauer e Mateus Callado, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.

REFERÊNCIAS:

ADORNO, Luís. Após semestre de violência policial, SP demite 37% mais PMs que em todo o ano. UOL, 26/08/2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/26/apos-semestre-de-violencia-policial-sp-demite-37-mais-pms-que-em-todo-ano.htm

BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm

CUBAS, Viviane de Oliveira. ‘Accountability’ e seus diferentes aspectos no controle da atividade policial no Brasil. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 3 (8): 75-99, 2010. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7171/5750

HEIDEMANN, Francisco G. Ética de responsabilidade: sensibilidade e correspondência a promessas e expectativas contratadas. In: HEIDEMANN, Francisco G. Heidemann e SALM, José F. (Org.). Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise (pp. 301-309). Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2009.

KOPPELL, J.G.S. Pathologies of accountability: ICANN and the challenge of “Multiple Accountabilities Disorder”. Public Administration Review. 65 (1): 94-108, 2005.

POLÍCIA FEDERAL. Demonstrações Contábeis e notas explicativas, 2019. Disponível em:
http://www.pf.gov.br/institucional/acessoainformacao/auditorias/prestacao-de-contas/prestacao-contas-2019/prestacao_contas_2019.pdf/view

SANTA CATARINA. Portal da transparência do poder executivo de Santa Catarina e a remuneração dos servidores. Dados atualizados em 2021. Disponível em:
http://www.transparencia.sc.gov.br/remuneracao-servidores

UGEIRM Sindicato, proposta de Lei da Transparência na Segurança Pública é apresentada na Assembleia em agosto de 2018. Disponível em: https://ugeirmsindicato.com.br/proposta-de-lei-da-transparencia-na-seguranca-publica-e-apresentada-na-assembleia/

USA, Congressional Research Service, CRS. Policy accountability measures, 11 jun 2020. Disponível em: https://crsreports.congress.gov/product/pdf/IF/IF11572

Para saber mais sobre o tema:

Policiamento comunitário e a participação cidadã na prevenção da violência
Jovem detido por filmar abordagem policial
Atuação da PM é questionada pela sociedade e estudiosos
Governo exclui dados sobre violência policial de relatório
Estudo sobre violência policial

Processo eleitoral brasileiro – você confia?

Como a polêmica voto de papel versus urna eletrônica pode minar a confiança na democracia e de que forma contrapor esse risco.

Por Joanna Daudt Prieto Farias, Lorenzo Scheidt Breda e  Thiago Guerra de Gusmão*

A cada dois anos temos eleições no Brasil e, esperançosos ou não com a “festa” da democracia, todos nós precisamos nos dedicar a fazer uma boa escolha ou nos esquivar dela. Se, por um lado, isso não é novidade, o que surpreende é a recorrência da preocupação com esse tema no dia-a-dia dos brasileiros. Mesmo em meio a uma pandemia, com diversos assuntos que têm impacto no curtíssimo prazo, muito já se conversa sobre as eleições de 2022.

As eleições no Brasil vêm sendo realizadas por meio de urnas eletrônicas desde 1996, o que não é uma exclusividade nossa, pois outros 15 países possuem processo informatizado – que é recorrentemente criticado pelo Presidente Jair Bolsonaro. Apesar de ser um ferrenho crítico dessa forma de votação, seja ou não de forma fantasiosa, o Presidente (que afirma ter provas de fraudes nas eleições de 2018, mas nunca as apresentou) não é o primeiro a questionar a confiabilidade das urnas.

Na minirreforma eleitoral de 2015, elaborada pelo Congresso Nacional durante o mandato da ex-presidente da república Dilma Rouseff, foi proposta a impressão do voto para conferência do eleitor – Art. 12 da Lei n. 13.165, de 29 de setembro de 2015. O que é semelhante ao que Jair Bolsonaro propõe ao afirmar que trabalhará junto ao Congresso para aprovação de um novo “sistema eleitoral confiável”, que contaria, além da impressão do comprovante do voto, com uma segunda urna para este ser depositado.

O Supremo Tribunal Federal (STF), entretanto,  decidiu de forma liminar em 2018 e definitiva em 2020 que a impressão do voto para conferência do eleitor seria uma medida que violaria o sigilo do voto, ferindo uma cláusula pétrea e sendo, portanto, inconstitucional.

Para reflexão: até que ponto faz sentido que um princípio constitucional, o sigilo do voto, possa limitar a transparência do processo eleitoral e que o cidadão consiga entender o que ocorre "de fato" com o seu voto?

Seja qual for a resposta, em algumas cidades do Brasil – nas eleições de 2002 e de forma experimental – já houve voto impresso junto com o voto na urna eletrônica. Além de tornar o processo mais caro e demorado, os eleitores que participaram do teste não sentiram que a eleição ficou mais confiável e a classificaram como “confusa”.

Na antiguidade, na Ágora grega, os cidadãos manifestavam seu direito de forma explícita por meio da fala, em um único ambiente. Isso ainda ocorre em alguns tipos de votação de representantes políticos, como no Congresso, em Câmaras de Vereadores e Conselhos. Mas o voto do cidadão passou a ser secreto. Conquista essa que abre margem para questionamentos sobre a apuração.

Um exemplo recente de controvérsia na apuração  ocorreu em nosso País, na eleição para a presidência do Senado Federal de 2019, quando foram contabilizadas 82 cédulas de papel na votação – enquanto possuímos apenas 81 senadores – mesmo sendo acompanhada ao vivo por diversos canais de comunicação. 

A questão central do tema não deveria ser se o voto é eletrônico, de papel, por correio ou por ‘fumaça’ – se assim fosse possível votar. O que de fato interessa é se existe alguma verificação que garanta, não apenas que aquele voto do cidadão foi computado, mas também que foi para o candidato por ele escolhido.

A certeza de que a escolha do eleitor foi computada corretamente estabelece uma relação de confiança entre o cidadão e o sistema eleitoral, que fortalece um dos instrumentos basilares da democracia: o voto. A partir dele também há elo entre o eleitor e o candidato – representante e representado.

Cabe sempre lembrar que o poder é do povo, que delega responsabilidades para que outrem faça valer a sua vontade. Daí a importância de que haja uma relação transparente e de confiança entre as partes, pois se fraudes são passíveis de acontecer em todos os lugares, o importante é que seja possível, se não preveni-las, ao menos minimizá-las e – caso venham a ocorrer – identificá-las, para então remediá-las e puni-las.

Certo nível de erro é inclusive aceitável – um provérbio que sintetiza bem isso é “o ótimo é inimigo do bom”. Como todo sistema é passível de  falhas, sempre há um certo grau de risco e por vezes não vale a pena buscar melhorias por conta do alto custo de oportunidade. 

Vale mencionar uma declaração dada a respeito da última eleição americana, que contou com número recorde de eleitores pelos correios e que ficou conhecida pelos questionamentos dos derrotados sobre a  apuração. Donald Trump, candidato à reeleição vencido por Joe Biden, afirma que houve fraude e moveu uma série de processos questionando o resultado das eleições. Sem provas contundentes, a Suprema Corte rejeitou vários recursos e o Secretário de Justiça dos Estados Unidos declarou em dezembro do último ano que “até a data, não vimos fraudes em uma escala que pudesse ter dado à eleição um resultado diferente”.

Atualmente, no Brasil, o nível de confiança do cidadão no processo eleitoral está mais baseado em uma espécie de ‘confiança na instituição’ – no caso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do que na compreensão ou na transparência do processo de apuração dos votos.

É razoável pensar que a participação mais ativa  de outros atores envolvidos – para além da Justiça Eleitoral, dos partidos políticos e dos eleitores – possa melhorar a transparência do processo eleitoral brasileiro como um todo, o que pode ser feito, por exemplo, por meio de debates abertos sobre riscos e caminhos para minimizá-los, bem como  auditorias. 

O mais importante é que o processo eleitoral seja transparente e a apuração do sistema eleitoral seja a mais fidedigna possível. Entretanto, alegações de fraudes sem provas e críticas desacompanhadas de debates profundos acerca das urnas eletrônicas minam a confiança no sistema como um todo. Enfraquecem, para além da instituição Tribunal Superior Eleitoral, a nós cidadãos, ao debilitar o principal instrumento de nossa recente democracia.

De qualquer forma, a intenção é que as participações e questionamentos, para além de interesses legítimos ou puramente eleitorais, venham somar ao processo e contribuam para  tornar as eleições algo mais fácil de ser compreendido. Por meio de um debate qualificado e responsável, voltado a aprimorar os diversos elementos do processo de votação e apuração, articulando e engajando os atores públicos e a sociedade, poderemos seguir nessa tarefa permanente de construir a confiança necessária para o avanço da democracia, com  mais legitimidade ao processo eleitoral brasileiro.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Joanna Daudt Prieto Farias, Lorenzo Scheidt Breda e  Thiago Guerra de Gusmão, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Presidência da República. Lei n. 13.165, de 29 de setembro de 2015. Para reduzir os custos das campanhas eleitorais, simplificar a administração dos Partidos Políticos e incentivar a participação feminina. Brasília: 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13165.htm. Acesso em: 25 dez 2020.

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PONTES, Felipe. STF declara inconstitucional a impressão do voto pela urna eletrônica. Ebc, 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2020-09/stf-declara-inconstitucional-impressao-do-voto-pela-urna-eletronica. Acesso em: 17 mar 2021. 

SHALDERS, André. Eleição do Senado: como foi a conturbada disputa que deu vitória a Davi Alcolumbre. BBC, 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47098597. Acesso em: 16 fev 2021.

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VALOR. Secretário de Justiça de Trump diz que não há evidência de fraude eleitoral. Valor Econômico, 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/12/01/secretario-de-justica-de-trump-diz-que-nao-ha-evidencia-de-fraude-eleitoral.ghtml. Acesso em: 21 jan 2021.

Para se aprofundar no tema:
Fragilidades do sistema de voto eletrônico
Possibilidades de auditoria da votação eletrônica
Teste Público de Segurança feito pelo TSE