A Accountability na Política Externa Brasileira

Por Rodrigo de Souza Pereira*

Em artigo publicado nos maiores jornais do País em 08 de maio de 2020, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso e ex-Ministros das Relações Exteriores  manifestaram sua insatisfação com os rumos da política externa brasileira, a qual se caracterizaria pela sistemática violação dos princípios orientadores das relações internacionais do Brasil, definidos no art. 4º da Constituição de 19881. A diversidade de atores antecipa o tom da nota, que proclama a reconstrução da política externa brasileira, anseio que dá nome ao texto, por meio da defesa da Constituição Federal, da manutenção de princípios-chave à tradição diplomática brasileira e devida adequação da política externa à opinião pública nacional. 

Desse modo, em face da crescente insatisfação com a atuação brasileira recente na esfera das relações internacionais, este texto apresenta elementos do que seria a tradição da política externa brasileira e aponta mudanças que vêm acontecendo nas últimas décadas, discutindo possíveis vantagens e riscos da abertura a diversos atores e interesses. Assim, almeja compreender as possibilidades de accountability na política externa, com vistas a reforçar sua legitimidade, transparência e responsividade.

Do ponto de vista histórico, a política externa brasileira é reconhecida por sua tradição insular, simbolizada pelo papel centralizador desempenhado pelo Itamaraty na sua condução. Em meados dos anos 1990, entretanto, verificou-se um processo de descontinuidade desse encapsulamento, em decorrência de uma abertura que permitiu mais permeabilidade nas articulações, interesses e demandas em política externa. À época, novos grupos de pressão, formados por variados atores estatais e não-estatais, passaram a influenciar ativamente o processo de formulação da política externa, cujo formato inicial top-down passou a se assemelhar a um arranjo bottom-up (PIMENTA DE FARIA, 2011). 

As alterações se justificam pelas mudanças ocorridas no padrão de inserção internacional do País, que intensificou sua participação nas instâncias multilaterais, e pelos processos de globalização, liberalização econômica e revolução nos meios de comunicação. O aumento no grau de autonomia dos governos subnacionais, conferido com o advento da Constituição de 1988, é igualmente um fator responsável pela mudança de paradigma, tendo em vista que possibilitou a esses governantes defenderem seus interesses particulares de maneira mais veemente (PIMENTA DE FARIA, 2021).  A título de exemplo, tem-se a atuação proativa dos estados e municípios no âmbito da pandemia de COVID-19 no País, cuja atuação paradiplomática serviu de contraponto às controversas diretrizes adotadas pelo Governo Federal no suprimento de determinadas demandas sanitárias, tal como a aquisição de vacinas (CORREA, 2021).

No processo de elaboração da política externa, como nas demais políticas públicas, incidem demandas e conflitos de variados grupos domésticos (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013).  Se por um lado essa multiplicidade de atores envolvidos é capaz de ampliar perspectivas e fomentar a legitimidade da atuação governamental, por outro, adiciona complexidade às funções de accountability, uma vez que dificulta a identificação de atores e agendas, inseridos no contexto de negociação política. Como uma forma de justificar o objetivo comum a ser perseguido pelo Estado no âmbito internacional, muito se empregou a noção simbólica de “interesse nacional”. Atualmente, contudo, muitas críticas têm sido conferidas a essa definição, dado que ela tende a simplificar a dialética das relações sociais e das negociações entre interesses públicos e privados no âmbito da política externa (PINHEIRO; MILANI, 2013). Em sociedades democráticas e complexas, é difícil imaginar a existência de um interesse ou uma política específica que contemple todas ou quase todas as forças políticas do Estado e da sociedade (JUNIOR; FARIAS, 2021).

No momento contemporâneo, é possível inclusive conferir à política externa brasileira a alcunha de “pós-diplomática”, visto que caracterizada por uma tendência de declínio do papel do Itamaraty em detrimento da atuação de outros órgãos burocráticos, partidos políticos e atores individuais (BELÉM LOPES, 2020). Na medida em que os temas de política externa se inserem no debate público, a tendência é que forças políticas em disputa apresentem diferentes projetos para o país e, uma vez no governo, procurem imprimir ações específicas e novas interpretações do que seja o interesse nacional (JUNIOR; FARIAS, 2021).

No que se refere à análise da política externa enquanto política pública, ressalta-se a necessidade primária de que haja transparência para que se possa avaliar os fundamentos políticos, a dimensão institucional, o desenho e os resultados dessas políticas (GONÇALVES; PINHEIRO, 2020). É nesse contexto  que se insere a importância de aplicação da accountability, cuja definição, para além da noção de transparência, reivindica o exercício do poder de agência com base em normas e valores democráticos que assegurem a legitimidade e a publicidade da ação (FILGUEIRAS, 2018). A accountability, além de estar atrelada às obrigações governamentais de prestação de contas, é um instrumento de controle social, por meio do qual pode a sociedade civil exigir informações, efeitos e  consequências das ações governamentais, com fins de realizar controle e construir confiança mútua entre governantes e cidadãos (TAVARES; ROMÃO, 2020).

Uma vez que a política externa vem incorporando novos atores, ideias e agendas, torna-se difícil entendê-la e explicá-la apontando apenas os seus resultados. É igualmente necessário analisar seu processo de formulação e implementação, bem como compreender seus princípios e valores fundamentais. Rompendo com princípios tradicionais da política externa brasileira, outrora reconhecida por sua moderação, equilíbrio e pela busca de consensos2, a política externa de Bolsonaro teve como base ideológica outros critérios, tais como o antiglobalismo, o anticomunismo e o nacionalismo religioso. A prática acompanhou o discurso, de modo que importantes mudanças estruturais foram realizadas na estrutura da corporação diplomática brasileira, destacando-se sobretudo a modificação de regras do Ministério das Relações Exteriores em relação à hierarquia, permitindo a ascensão de diplomatas ainda em meio de carreira para cargos-chave, e uma maior abertura à atuação de não-diplomatas no âmbito do Itamaraty (SARAIVA; ALBUQUERQUE, 2022).

O processo decisório em política externa passou a ser influenciado diretamente pelas disputas internas de grupos que formam a base de sustentação do governo3. Em artigo intitulado “Ideologia e Pragmatismo na Política Externa de Jair Bolsonaro”, Miriam Gomes Saraiva e Álvaro Vicente Costa Silva classificam o embate como uma tensão entre as duas alas, ideológica e pragmática, pelo comando da agenda. Esse processo de fragmentação, por sua vez, culminou no crescente afastamento de algumas bases de apoio do governo e levou à substituição de quadros da ala ideológica do Ministério. Após embate com o Senado4, o chanceler Ernesto Araújo foi substituído pelo embaixador Carlos Alberto Franco França, nomeado com fins de reduzir os pontos de atrito com parceiros externos, previsibilidade no comportamento internacional do país e resgatar a centralidade do corpo diplomático (SARAIVA; ALBUQUERQUE, 2022).

Diante do cenário atual, a adoção de mecanismos de accountability se apresenta como uma possibilidade para sublimar a crise de legitimidade, transparência e responsividade que nos assola. O processo de desencapsulamento em curso não pode se limitar à abertura da política externa aos atores afeitos às agendas do Executivo. É este o momento de pôr em prática a antiga demanda pela efetiva democratização da política externa, materializada na adoção de canais permanentes de diálogo e consulta com a sociedade civil organizada. Ainda que implique desafios à accountability, a pluralidade é fator essencial para a legitimação da política externa brasileira, temática de crescente relevância no debate político nacional5.

No âmbito da transparência, ressalta-se a importância da promoção do controle social e institucional, sobretudo por intermédio de uma atuação mais proativa do Senado Federal, a quem recai legalmente o papel de desempenhar o regime de freios e contrapesos no exercício da atividade pública internacional por parte do Poder Executivo (KALOUT, 2020). 

Por fim, é por meio da responsividade, dimensão-chave da accountability, que será feita a defesa dos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do País, tão duramente atacados. Afinal, ainda que sujeita à dinâmica política, uma vez que é formulada e executada pelo representante do Executivo democraticamente eleito, a política externa não é um salvo-conduto concedido à Presidência, devendo seu processo de construção se adequar aos ditames legais existentes. Não há dúvida: carece de legitimidade uma atuação internacional que se contrapõe à Constituição. 

*Texto elaborado pelo acadêmico de administração pública Rodrigo de Souza Pereira, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no segundo semestre de 2021.

Notas

  1.  “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.” BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
  1. “Afasta-se, ademais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses”. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-reconstrucao-da-politica-externa-brasileira,7000329612>
  1. “O governo aglutinou setores muito diferentes e com visões diversas, que buscavam influenciar segmentos da política externa (olavistas, evangélicos, liberais na economia, militares e ruralistas exportadores de commodities) e eram conectados por intermédio de um líder predominante. A articulação entre eles, no entanto, era instável e deu-se apenas em torno da figura presidencial e das expectativas com a nova administração.” (SARAIVA; ALBUQUERQUE, 2022).
  1. CNN Brasil. 29/03/2021: Ernesto Araujo pede demissão do cargo de Ministro das Relações Exteriores: Disponível em <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ernesto-araujo-pede-demissao-do-cargo-de-ministro-de-relacoes-exteriores/>
  1.  Isto é – Dinheiro. 17/04/2021: Para ex-chanceleres, política externa vai pautar eleição. Disponível em: <https://www.istoedinheiro.com.br/para-ex-chanceleres-politica-externa-vai-pautar-eleicao/>

Referências

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CORREA, Silvia. A internacionalização dos governos locais na pandemia. Jornal Nexo. 16/12/2021. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/academico/2021/12/16/A-internacionaliza%C3%A7%C3%A3o-dos-governos-locais-na-pandemia>

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