Pessoas autodeclaradas LGBTQIA+ no sistema penitenciário brasileiro: o que dizem (e não dizem) os dados

Por Fernanda Biava Cassettari, Sofia Liz e Luiz Ricardo M. de Carvalho*

Fonte: Foto tirada por Fernanda Biava Cassettari

Ao buscar informações referentes à população carcerária no Brasil, constatam-se que são poucos os dados oficiais referentes a pessoas em privação de liberdade – os que existem são de difícil acesso -, o que é agravado quando a pesquisa trata sobre pessoas autodeclaradas LGBTQIA+ no sistema prisional brasileiro. Este fato acaba por silenciar e dificultar o reconhecimento de demandas específicas dessa população  (InfoPen, 2019).

Considerando que o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de assassinatos de transexuais e travestis, segundo dados divulgados por organizações não-governamentais no país e no mundo, tais como o Grupo Gay da Bahia e a Transgender Europe (TGEU), a situação se mostra também grave quando se detecta a invisibilidade dessa população no sistema carcerário.

Diante de tal cenário, e como forma de orientar e estabelecer procedimentos quanto às pessoas autodeclaradas LGBTQIA+, o Departamento Penitenciário Nacional, DEPEN, instituiu, através da Portaria GABDEPEN n. 10, de 24 de janeiro de 2019,  um grupo de trabalho para a elaboração de um manual de procedimentos para revista e proposta para capacitação de agentes prisionais nesse tema. A nota técnica n. 7/2020 é baseada nos Princípios de Yogyakarta, que compreende que a orientação sexual é “uma referência à capacidade de cada pessoa de experimentar uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero” (Princípios de Yogyakarta, 2006). 

Neste sentido, a orientação sexual se divide em:

HeterossexualCapaz de sentir atração emocional, afetiva e/ou sexual por indivíduos do gênero oposto.
HomossexualCapaz de sentir atração emocional, afetiva e/ou sexual por indivíduos do mesmo gênero, podendo ser gays (gênero masculino) ou lésbicas (gênero feminino).
BissexualPessoas que se relacionam afetiva e sexualmente com ambos os sexos. 
Fonte: Nota Técnica DEPEN 07/2020.


Já a identidade de gênero é entendida como uma “experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo e outras expressões de gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismos” (Princípio de Yogyakarta, 2006). A identidade de gênero contempla:

LésbicaDenominação específica para mulheres que se relacionam afetiva e sexualmente com outras mulheres.
GayDenominação específica para homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens. 
TravestiPessoas que pertencem ao sexo masculino na dimensão fisiológica, mas que socialmente se apresentam no gênero feminino, sem rejeitar o sexo biológico.
TransgêneroPessoas que são psicologicamente de um sexo e anatomicamente de outro, rejeitando o próprio órgão sexual biológico.
TranssexualMulheres trans: pessoas que se identificam como mulheres, mas não foram designadas mulheres no nascimento; Homens trans: pessoas que se identificam como homens, mas não designados homens no nascimento.
IntersexoPessoas que com características físicas ou biológicas, como a anatomia sexual, os órgãos reprodutivos, os padrões hormonais e/ou cromossômicos que não se encaixam nas definições típicas de masculino e feminino.
Fonte: Nota Técnica DEPEN 07/2020.
O caso do sistema prisional brasileiro e as políticas LGBTQIA+

A abordagem ao tema da atenção específica a pessoas LGBTQIA+ no sistema penitenciário requer a produção e disponibilização de dados e informações, o monitoramento e a avaliação das práticas e a participação de diversos envolvidos – servidores públicos, organizações da sociedade civil, pesquisadores e a população carcerária LGBTQIA+, o que remete à  accountability. Para abordar o tema sob essa perspectiva, partiu-se de leis, decretos, portarias e notas técnicas referentes às pessoas declarantes LGBTQIA+ no sistema fechado. As referidas legislações adotam as siglas LGBT e/ou LGBTI.

O DEPEN realizou uma pesquisa, em 2020, que possibilitou o conhecimento do cenário nacional do grupo LGBTI nas unidades prisionais. O estudo identificou, a partir de respostas de 23 estados e no Distrito Federal,  10.457 pessoas em privação de liberdade que se autodeclaram LGBTI, entre elas “3.165  lésbicas, 2.821  gays, 3.487  bissexuais, 181 homens trans, 248 mulheres trans, 561 travestis e 14 intersexuais” (DEPEN, 2020).

Além disso, é necessário analisar a Resolução Conjunta n. 1, de 15 de abril de 2014, que estabelece os parâmetros de acolhimento à população LGBTQIA+ no âmbito das unidades prisionais brasileiras, e a Resolução n. 366, de 20 de janeiro de 2021, que altera a Resolução n. 348, de 13 de outubro de 2020, ambas baseadas na Constituição Federal de 1988, Princípios de Yogyakarta e demais tratados internacionais, e a Lei Federal n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal). Constata-se que as duas normativas consideram a vulnerabilidade a que essas pessoas estão expostas e orientam as(os) profissionais envolvidas(os) nesse sistema acerca do que é a transexualidade; os direitos fundamentais dessa população; e os modos de atuação profissional. Estes devem ser baseados nos direitos humanos, que asseguram a dignidade e o respeito à diversidade, tendo como meta estabelecer um trabalho na reintegração desses indivíduos na sociedade, diminuindo a taxa de reincidência de criminalidade, oportunizando o convívio em sociedade e restabelecendo os laços cidadãos dessas populações em situações de privação de liberdade.

Além de promover medidas para a população carcerária LGBTQIA+, é preciso que ocorra um diálogo com instituições ativas na elaboração de políticas para a população LGBTQIA+ e também instituições como a Academia de Administração Prisional e Socioeducativa (ACAPS), responsável pela capacitação dos policiais penais e agentes penitenciários. Esse tipo de interação pode ser realizada visando elaborar manuais de procedimentos voltados à comunidade carcerária LGBTQIA+, bem como o desenvolvimento de cursos de capacitação para os servidores do sistema penitenciário acerca da temática.

Podemos observar, também, alguns desafios para que a legislação referente à população carcerária autodeclarada LGBTQIA+ seja cumprida da melhor forma. Um dos desafios para a aplicabilidade de leis e normas sobre o tema  é a existência e disponibilização de  dados confiáveis e acessíveis, favorecendo a transparência e a accountability. Atualmente, a falta de dados relacionados ao tema dificulta eventuais acompanhamentos e, principalmente, a responsabilização quanto ao cumprimento ou não da legislação existente, bem como a avaliação e aprimoramento das ações e políticas que buscam lidar com o desafio.

Uma das possibilidades levantadas para promover conhecimento, capacitação e engajamento dos envolvidos diz respeito à proposta de espaços de escuta ativa com acolhimento, individual ou coletivo, podendo ser concretizados por meio de rodas de conversa mensais, conforme abordado por Campos e Rosa (2020). Estas rodas podem ser separadas, ou não, em grupos e devem, preferencialmente, contar com a sensibilização dos profissionais do local, além de  auxílio de profissionais da área de psicologia, direito e assistência social.

Considerações finais

Percebe-se que a temática da população LGBTQIA+ no sistema penitenciário está, gradualmente, sendo mais explorada por países como Estados Unidos, Portugal e França. O estudo de temas como esse faz com que os dados relacionados a essa realidade sejam mais valorizados, demandados e utilizados, da mesma forma com que haja mais  cuidado com sua qualidade e disponibilização. Espera-se que no Brasil o interesse por dados sobre a população LGBTQIA+ no sistema penitenciário brasileiro também aumente e, com isso, possamos fortalecer a accountability e a transparência do tema e das políticas e serviços públicos nessa área, no cenário nacional.

Outra estratégia é a sistematização e publicização dos dados da população carcerária autodeclarada LGBTQIA+, ação relacionada a princípios de accountability, de modo que se possa analisar dados e atribuir responsabilidades. Com a ampla divulgação desses dados, a transparência se torna parte de todo o processo, auxiliando a fiscalização e acompanhamento por parte dos órgãos responsáveis e da população. Por fim, para que se ampliem os caminhos e alternativas para enfrentar esses desafios, é preciso que se construa mecanismos para provocar o Estado e a sociedade a voltarem seu olhar para temas como esses. Abordagens sobre a temática carcerária vêm expandindo seus horizontes de diversas formas como, por exemplo, a criação de museus penitenciários ao redor do mundo. A população, por sua vez, precisa ser estimulada a frequentar esses espaços e, à medida que isso ocorra,  se amplie o  diálogo entre sociedade e  governo, definindo-se novos padrões de expectativas e novas formas de responder a elas, ou seja, novas formas de accountability.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Fernanda Biava Cassettari, Sofia Liz e Luiz Ricardo M. de Carvalho, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2021.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 24 ago. 2021.

BRASIL.  Lei de Execução Penal n. 7.210 de 11 de julho de 1984. Brasília, 1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 24 ago. 2021.

BRASIL. Resolução Conjunta n. 1, de 15 de abril de 2014. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/composicao/cnpcp/resolucoes/2014/resolucao-conjunta-no-1-de-15-de-abril-de-2014.pdf/view. Acesso em 23 ago. 2021.

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BRASIL. Resolução n.º 366, de 20 de janeiro de 2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original19295820210125600f1c369fdc6.pdf. Acesso em 23 ago. 2021.

BRASIL. Nota Técnica n. 7/2020. Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen-publica-nota-tecnica-com-orientacoes-para-populacao-lgbti-encarcerada-1/copy4_of_SEI_MJ11156365NotaTcnica.pdf. Acesso em: 23 ago. 2021.

CAMPO, Aline; ROSA, Camila Simões. Rodas de conversa em prisões. Revista Temas em Educação, João Pessoa, Brasil, v. 29, n.2, p. 249-267, maio/jul., 2020.

CLAM. Princípios de Yogyakarta. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf. Acesso em: 23 ago. 2021.

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