Blockchain e transparência: o Estado brasileiro está pronto para essa inovação?

Por Allan Conradi, Guilherme Setti, Maria Noemia Bez Fontana e  Vitória de M. Bassanezi*

Com a expansão do Bitcoin, a tecnologia blockchain ganhou popularidade, mas o que muitos ainda não sabem é que o seu uso não se limita a transações de criptomoedas. Na verdade, o blockchain é como um protocolo de segurança que pode ser utilizado para enviar e armazenar os mais diversos tipos de informações. O termo surgiu do encontro do mundo tecnológico com o das finanças e vem ganhando a atenção em diversos segmentos e países. Por ser um assunto novo, um pouco complexo e que envolve dinheiro, acaba gerando muitas dúvidas para as pessoas e organizações públicas e privadas. 

A tecnologia blockchain, desenvolvida para ser à prova de fraudes, pode ser  considerada vital para o processo de transformação digital de um país, pois possibilita que todos os indivíduos e organizações mantenham os seus registros auditáveis, transparentes e, principalmente, seguros. Isso porque, para que um documento possa ser registrado no blockchain, faz-se necessário que seja antes auditado pelos demais indivíduos, que irão confirmar a autenticidade de seu conteúdo. Uma vez validado, o seu registro torna-se imutável, garantindo a confiabilidade de seus registros.

O que é blockchain?

Blockchain é um sistema que permite rastrear o envio e recebimento de alguns tipos de informação pela internet, uma forma de enviar um tipo de informação que é rastreada e auditada por todos que estão nessa rede. As bases desses registros são distribuídas e compartilhadas globalmente de forma descentralizada. Tudo ocorre através de uma rede peer-to-peer, com os participantes registrando as informações em blocos, que geram impressões digitais do seu conteúdo chamado de hash (informação verbal)¹, como demonstrado na figura 1:

Figura 1  – Funcionamento genérico de uma blockchain.

Fonte: Comissão Europeia adaptada pelo TCU

Quando aplicado ao setor público,  o blockchain  permite  alcançar um novo patamar  de integridade,  de accountability e de transparência. Nesse caminho, o Tribunal de Contas da União, TCU, desenvolveu em 2020 um estudo sobre como essa tecnologia poderia ser aplicada à Administração Pública Federal, em especial à Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, Banco Central do Brasil – BCB, Banco do Brasil S.A, Banco Nacional do Desenvolvimento econômico e  Social – BNDES, Caixa Econômica Federal – CEF, Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência – DATAPREV, Instituto Nacional e Tecnologia da Informação – INTI, Petróleo Brasileira S.A, Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil – RFB, Secretaria Especial da Desburocratização, Gestão e Governo Digital, e Serviço Federal de Processamento de Dados – SERPRO. 

O estudo, consolidado no Acórdão n. 1613/2020, do Plenário daquele tribunal, visou identificar com  profundidade as funcionalidades da tecnologia blockchain, de modo a compreender o seu potencial disruptivo na melhora dos serviços digitais da administração pública, sob a ótica da desburocratização e combate à corrupção. Como resultado, o TCU entendeu que atualmente a blockchain poderia ser aplicada de forma a ampliar e melhorar a área de tributação, ampliando a  transparência das transações financeiras, que uma vez registradas poderiam ser facilmente monitoradas e auditadas. 

Ainda, a blockchain poderia ser aplicada aos serviços de saúde, permitindo que  dados de prontuários fossem disponibilizados de forma segura, transparente e fácil acesso pelos atores que participam do serviço universal de saúde. Além disso, a tecnologia seria útil à identificação pessoal dos cidadãos, bem como na  gestão de convênios e programas pela Administração Pública, a partir do amplo monitoramento da aplicação dos recursos públicos e contratos celebrados. 

Tais recursos já podem, inclusive, serem vistos em implementação no estado de Santa Catarina. Recentemente, a Secretaria de Estado da Administração, por intermédio da Diretoria de Gestão de Licitações e Contratos, e a Rutgers University, por intermédio da Rutgers Accounting Research Center and Continuous Auditing & Reporting Lab, realizou um acordo de cooperação técnica para o uso da tecnologia nos processos de compras públicas visando garantir mais transparência aos mesmos (CHINAGLIA, 2021). Igualmente, o Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina faz uso de uma solução em blockchain da Receita Federal que permite a consulta da base de Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Brasil.

Para além das áreas citadas no estudo, a Corte de Contas da União pontuou que o potencial da tecnologia estudada é tão significativo que se acredita que a mesma poderá vir a ser útil em áreas que sequer foram cogitadas até o momento. 

A despeito do exposto, o estudo jogou luz também à ausência de regulação do uso da tecnologia no país, enfatizando ser o amadurecimento regulatório da temática um requisito essencial para o aproveitamento de todo o potencial da tecnologia. Além disso, foi pontuado que, ante o caráter inovador da tecnologia, não se têm atualmente muitos profissionais habilitados para o seu uso, sendo necessária a capacitação das equipes de TI dos órgãos públicos, ou recrutamento de novos profissionais.

Diante das inúmeras possibilidades de uso de blockchain, e também das dúvidas, incertezas e possíveis resistências, estaria o Estado brasileiro preparado para envolver os  agentes públicos rumo a essa inovação que pode contribuir para a transparência pública, os serviços públicos e a própria democracia? 

Destaca-se, no mesmo sentido, a iniciativa Rede Nacional de Governo Digital (Portaria n. 23, de 4 de abril de 2019) do Governo Federal, coordenado juntamente aos chefes do Executivo estaduais e municipais, com o intuito de promover a transformação digital do setor público, permitindo a implementação de plataformas digitais de atendimento aos serviços públicos, bem como a formação e desenvolvimento de aptidões do servidor público para esse atendimento. 

A tecnologia blockchain, uma vez que segura e confiável em relação às informações postas permite, uma vez vistas incongruências ou desacordos ao interesse comum e público, a contestação da população frente às tomadas de decisão, estimulando a participação cidadã. A tecnologia blockchain permite que a autoridade centralizadora do governo se descentralize em vários aspectos, tomando seu papel, em certa medida, como administrador dos dados e responsável pela configuração, operação e manutenção das aplicações. Essa autoridade, independente da esfera (federal, estadual ou municipal), apesar de existir um mito de que a descentralização gera riscos à soberania dos estados, é colocada como a responsável pela qualidade e eventuais problemas nos dados e, dessa forma, não isenta o Estado de suas responsabilidades e não fere sua soberania.

¹ Fala do palestrante Luis Roloff em aula da disciplina Sistemas de Accountability, Udesc Esag, em 03 agosto 2021.

* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Allan Conradi, Guilherme Setti, Maria Noemia Bez Fontana e Vitória de M. Bassanezi, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2021.

REFERÊNCIAS

CHINAGLIA, Rafael. Santa Catarina fecha acordo para usar blockchain em contratações públicas. Exame, 2021. Disponível em: https://exame.com/future-of-money/blockchain-e-dlts/santa-catarina-fecha-acordo-para-usar-blockchain-em-contratacoes-publicas/. Acesso em: 23 de agosto de 2021.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. ACÓRDÃO 1613/2020 – PLENÁRIO. TCU, 2020. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/1613%252F2020/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/%2520?uuid=ce034160-bbc6-11ea-ad32-519ab286dea0. Acesso em: 17 de agosto de 2021.

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. PORTARIA Nº 23, DE 4 DE ABRIL DE 2019. DOU, 2019. Disponível em:
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/70491912/do1-2019-04-08-portaria-n-23-de-4-de-abril-de-2019-70491574. Acesso em: 24 de agostos de 2021.