O valor adicionado na coprodução de serviços públicos: o processo de construção da Lei Aldir Blanc 

Por Bianca Kaizer de Oliveira e Maryane Cristina de Souza Crestani*

Durante o ano de 2020, a sociedade viveu em estado de emergência de saúde pública com o aumento de casos de Covid-19. O fechamento e limitação de circulação, comércios e atividades gerais, com o propósito de evitar a propagação do vírus, incluiu as atividades do setor cultural, que foi um dos setores mais prejudicados pela pandemia. Com o fechamento de espaços em que costumam ocorrer  atividades culturais, muitas organizações e movimentos informais perderam sua principal fonte de renda. Nesse cenário, nasce a Lei Aldir Blanc (LAB), que parte da mobilização de diversos atores culturais com a finalidade de buscar recursos para conter o prejuízo da pandemia e garantir a sobrevivência dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura. 

Fonte: Prefeitura Municipal de Arapongas.

Devido à dimensão e à urgência da  problemática, a Lei Aldir Blanc (Lei 14.017, de 2020) teve seu projeto inicial (PL 1075/20) rapidamente proposto pela Deputada Federal Benedita da Silva em meados de março de 2020 (LOPES; GARCIA, 2020). Mesmo com o desprezo do governo federal perante o setor cultural, foi possível verificar uma rede de agentes, entre entidades do poder público e representantes da sociedade civil, que logrou se articular em prol da emergência cultural e, com pressão e negociações políticas, alcançou a aprovação da lei e a sanção do presidente. 

Após a aprovação, como resultado, a lei destinou três bilhões de reais ao setor cultural no período da crise, inicialmente até dezembro de 2020. O valor foi repassado para os estados, municípios e ao Distrito Federal, com o propósito de aplicar o recurso para trabalhadores do setor, manutenção de espaços e outros (BRASIL, 2020). Após o vencimento, a LAB recebeu ampliação dos prazos para utilização de recursos por mais um ano, concluído em dezembro de 2021 (BRASIL, 2021). Por consequência dos resultados gerados pela LAB, foi promulgada no dia 08 de julho de 2022 a “Lei Aldir Blanc 2” (Lei 14.399, de 2022), que prevê repasses anuais de três bilhões de reais ao setor cultural com vigência de cinco anos (BRASIL, 2022).

A criação da lei e seu processo de construção são muito significativas para o setor cultural, que tem sofrido com a falta de orçamento público e sucessivos desmontes das políticas públicas voltadas para esse setor (SILVEIRA et. al., 2022). Tal feito não seria efetivado sem a articulação dos atores envolvidos: organizações da sociedade civil, deputados federais e estaduais e senadores de diversos partidos, movimentos sociais, entidades do poder público, entre outros. O envolvimento desses atores foi fundamental para o processo de criação da lei, pois integrou diversos grupos sociais e abarcou  diferentes campos culturais, como cultura indígenas, LGBTQ+, regionais, circenses, entre outras.

A mobilização gerada mostra bem como é possível articular de forma rápida e efetiva diversos segmentos da sociedade para produzir um bem comum. Por meio dessa mobilização, se cria uma conexão entre a participação do cidadão e a produção dos serviços públicos, dispondo de novas perspectivas para a administração pública (SALM; MENEGASSO, 2010). Eis que se evidencia um exemplo de coprodução do bem público, que une Estado e cidadão para fomentar a democracia e produzir bens e serviços públicos (DE MATTIA, 2014, p. 104). “As pessoas se engajam em processos participativos quando são motivadas pela certeza de que sua contribuição específica poderá alterar o rumo e a formulação de políticas e normas que as afetam diretamente” (ROCHA; SCHOMMER; DEBETIR; PINHEIRO, 2021). 

Tão importante quanto a motivação é ter os canais e a capacidade coletiva de coproduzir: os cidadãos podem estar interessados em colaborar, mas ter dificuldade em executar a coprodução, seja pela dificuldade e complexidade das tarefas envolvidas, da falta de orientação e abertura das demais partes, ou por lhes faltar competências necessárias. A coprodução nasce de uma relação recíproca entre os profissionais  e os cidadãos, entre o governo e a cidadania (ALFORD; YATES, 2016). 

A construção coletiva da Lei Aldir Blanc incluiu a realização de diversos web seminários, lives e debates em grupos em mídias sociais. A diversidade dos indivíduos envolvidos ampliou  capacidades para o desenvolvimento da coprodução. Tanto profissionais técnicos da área cultural, como pessoas que não tinham tanto conhecimento acerca de formulação de políticas públicas puderam participar do processo de construção da lei. Ou seja, “por meio de seu engajamento, atores leigos podem construir coalizões organizacionais, aprender a apreciar o valor da liderança pluralista que incorpora diversos interesses e desenvolver habilidades participativas mais fortes” (JO; NABATCHI, 2018, p.234). 

Fonte: Vermelho

Segundo Stott (2018), o valor adicionado é um dos princípios de coprodução. Por meio do valor adicionado, são discutidas a importância da tangibilidade de resultados, a geração de capital individual e social e a valorização da diversidade. A mobilização gerada pela Lei Aldir Blanc é um grande exemplo do valor adicionado na prática e do impacto positivo da coprodução. Criaram-se novas redes de relações e foram fortalecidos contatos que já existiam antes da pandemia. Além disso, adquiriu-se habilidades como negociação e mediação, pautadas em uma construção de confiança e colaboração, haja vista que a confiança é reconhecida como uma das condições-chave para a colaboração (FLEDDERUS, 2018). 

O distanciamento social, ocorrido em 2020, abriu novas portas para a coprodução, mostrou que mesmo sem encontros físicos, é possível gerar interação social. A construção da lei é um grande legado para o Brasil. Não se construiu apenas uma política cultural, foi construída uma nova perspectiva para a cultura política (TURINO, 2020).

* Texto elaborado por Bianca Kaizer de Oliveira  e Maryane Cristina de Souza Crestani, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

REFERÊNCIAS

ALFORD, J.; YATES, S. Co-Production of Public Services in Australia: The Roles of Government Organizations and Co-Producers. Australian Journal of Public Administration. v. 75. n. 2, p. 159–175. 2016. 

ARAPONGAS, Prefeitura Municipal. [Imagem ilustrando o compositor Aldir Blanc.]. 2020. Disponível em: <https://www.arapongas.pr.gov.br/8332_noticia_lei-aldir-blanc—resumo>

BRASIL, Câmara dos Deputados. Câmara aprova ajuda emergencial de R$ 3 bilhões para o setor cultural durante pandemia. 2020. Disponível em: 

<https://www.camara.leg.br/noticias/664543-camara-aprova-ajuda-emergencial-de-r-3-bilhoe s-para-o-setor-cultural-durante-pandemia>. Acesso em: 11/07/2022. 

BRASIL, Câmara dos Deputados. Sancionada prorrogação da Lei Aldir Blanc até dezembro. 2021. Disponível em: 

<https://www.camara.leg.br/noticias/758811-sancionada-prorrogacao-da-lei-aldir-blanc-ate-dezembro>. Acesso em: 21/07/2022. 

BRASIL, Senado Federal. Após o Congresso derrubar o veto, a Lei Aldir Blanc 2 é promulgada. 2022. Disponível em: 

<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/07/11/apos-congresso-derrubar-veto-lei-aldir-blanc-2-e-promulgada>. Acesso em: 21/07/2022. 

DE MATTIA, C.. A metodologia de elaboração dos Planos Estaduais de Cultura fomenta a coprodução do bem público?. POLÍTICAS CULTURAIS EM REVISTA, v. 17, p. 100-118, 2014. 

FLEDDERUS, Joost. The Effects of Co-Production on Trust. In: Brandsen, T., Steen, T., & Verschuere, B. (Eds.). (2018). Co-Production and Co-Creation: Engaging Citizens in Public Services (1st ed.). Routledge. p. 258 – 265. 

JO, Suyeon; NABATCHI, Tina. Co-Production, Co-Creation, and Citizen Empowerment. In: Brandsen, T., Steen, T., & Verschuere, B. (Eds.). (2018). Co-Production and Co-Creation: Engaging Citizens in Public Services (1st ed.). Routledge. p. 231 – 239. 

LOPES, M. F. A.; GARCIA, R. O. G. Lei Aldir Blanc: formulação e aplicação no município de Franca. Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. LAP – Laboratório de Análise de Política. N. 4. 2020. 

ROCHA, A. C.; SCHOMMER, P. C.; DEBETIR, E.; PINHEIRO, D. M. Elementos estruturantes para a realização da coprodução do bem público: uma visão integrativa. Cadernos EBAPE.BR. 19(3), p. 538–551. 2021. Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/83371>

SALM, José. F.; MENEGASSO, Maria Ester. Os modelos de administração pública como estratégias complementares para a coprodução do bem público. Revista de Ciências da Administração, v.11. n. 25. p. 97-120. set/dez 2009. Disponível em: <http://goo.gl/7S7W>. 

SILVEIRA, L. B.; WIVALDO, J. N. S.; ZANOTTI, L. A. Z.; PEREIRA NETO, A. J. A operacionalização da lei Aldir Blanc por meio do comitê internacional de emergência cultural de lavras e região. v. 27. n. 2. 2022. 

STOTT, L. Co-production: Enhancing the role of citizens in governance and service delivery. European Union. Technical Dossier. n. 4. 2018. 

TURINO, C. Lei Aldir Blanc: modos de usar. 2020. Disponível em: 

<https://revista.ibict.br/p2p/article/view/5432/5082>. Acesso em: 11/07/2022.
VERMELHO. [Imagem ilustrando a diversidade cultural brasileira.]. 2020. Disponível em: <https://vermelho.org.br/coluna/desafios-da-gestao-da-cultura-no-crato/> Acesso em: 21/07/2022.