O controle interno no processo licitatório: uma análise a partir dos exemplos do Tribunal de Contas da União e do município de Itajaí

Por Thiago Pedroso, Thamiris Pereira, Larissa Santos e Sara Stelzenberger*

Até 1808, existia no Brasil uma administração colonial relativamente aparelhada. Entretanto, o marco da construção do Estado nacional brasileiro se deu a partir do desembarque da Coroa portuguesa no Rio de Janeiro e a posterior elevação de Brasil a parte integrante do Reino Unido de Portugal, de modo a gerar um aparato governamental necessário à afirmação da soberania e ao funcionamento do autogoverno (LUSTOSA, 2008).

Tal período, da elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, Brasil Império e até 1930, a chamada Primeira República (1889-1930), ficou marcado pela gestão patrimonialista, centralização de poder e alternância de oligarquias no poder. Após a revolução varguista em 1930, apesar da manutenção de vícios de outrora, buscou-se mitigar o patrimonialismo existente, isto é, a incapacidade ou relutância do governante em distinguir seus bens privados do patrimônio público, por meio de um modelo administrativo pautado na burocratização weberiana do Estado (LUSTOSA DA COSTA, 2008).

Desde então, diferentes mecanismos que visam garantir o bom uso dos recursos públicos foram instaurados. Entre eles, a obrigatoriedade do processo licitatório para firmar contratos acerca de obras, serviços e aquisição de bens no âmbito da administração pública (AMORIM, 2019). Trata-se de procedimento administrativo pelo qual o poder público analisa e seleciona a proposta mais vantajosa para o interesse público, respeitando os princípios da impessoalidade, isonomia, eficiência e publicidade dos atos. Apesar de introduzida no direito público brasileiro há mais de 140 anos, a licitação somente recebeu status constitucional com o advento da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988),  posteriormente regulamentada pelas Leis 8.666/93 e 14.133/21 (POSSIDÔNIO, TORRES, 2019; AMORIM, 2019). 

Ademais, a CF de 88 constituiu o município como um dos entes da federação, atribuindo-lhe auto-organização, autogoverno, autolegislação e autoadministração (HARAGUCHI, 2009). Entretanto, dada a sua heterogeneidade, Haraguchi (2009) questiona a adequabilidade da Lei de Licitações aos municípios, sobretudo os pequenos. Segundo Haraguchi (2009), o principal problema é a complexidade da lei e a falta de conhecimento de quem tem a incumbência de aplicá-la. Destaca também que os órgãos de controle acabam por se ater demasiadamente à lei e ignorar que os gestores públicos e licitantes mal intencionados são a exceção. Em consonância, França et. al (2022), em um estudo quanto à institucionalização da nova lei de licitações, salientam que as principais dificuldades são a falta de conhecimentos específicos sobre a legislação por parte do quadro de pessoal para colocar a lei em prática; a quantidade de pessoas que trabalham no setor, insuficiente para atender as demandas; e as resistências culturais por parte de outros setores envolvidos no que diz respeito aos documentos e procedimentos na fase de planejamento da licitação.

Faccioni (2009, p. 138) comentava que as principais irregularidades encontradas nas licitações monitoradas pelo TCE/RS são “realizar modalidade imprópria de licitação; diferenças entre o objeto contratado e a realização da obra, resultando em pagamento de serviços não realizados; desdobramento de despesas visando evitar o procedimento licitatório; não aplicação de sanções por descumprimento de cláusulas contratuais; obras e serviços de engenharia com preços acima dos de mercado ou com quantitativos superestimados, quando não, obras e serviços incompletos ou mal executados”. 

Órgãos de diferentes níveis da administração pública brasileira, mesmo os de controle, possuem dificuldades na gestão e monitoramento de compras e contratações públicas, denotando a complexidade do processo licitatório.

Faccioni (2009) cita que tais irregularidades exigem cuidados tanto prévios, como concomitantes e, igualmente, após a prestação respectiva. Ainda, Haraguchi (2009) salienta que esses empecilhos ensejam ações no sentido de melhorar a capacitação dos responsáveis pelos procedimentos licitatórios e de aperfeiçoar os mecanismos de controle exercidos pelos órgãos fiscalizadores, pela própria administração interna e pela sociedade. 

De tal modo, haja vista a importância do processo licitatório para garantir os princípios da administração pública, bem como as dificuldades dos municípios na aplicação da Lei de Licitações, o presente texto apresenta como a accountability está presente na gestão interna do Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do acompanhamento de processos licitatórios desenvolvido durante o estágio de uma das autoras. Além disso,  busca realizar um paralelo com a Prefeitura Municipal de Itajaí, por meio de entrevista com uma servidora sobre o  controle interno acerca do processo licitatório. Na sequência, há uma breve descrição do TCU, o detalhamento do controle dos processos licitatórios, seguida de apresentação da Prefeitura e das respostas da entrevista.

Conforme site oficial do TCU (2022), “o TCU é o órgão de controle externo do governo federal e auxilia o Congresso Nacional na missão de acompanhar a execução orçamentária e financeira do país e contribuir com o aperfeiçoamento da Administração Pública em benefício da sociedade”. 

No âmbito da Secretaria de Licitações, Contratos e Patrimônio (SELIP) do TCU, foi realizado em 2021 um mapeamento dos processos de trabalho, que deu origem ao acompanhamento semanal das etapas em que se encontram os processos de aquisições de bens e serviços por licitação. Esse mapeamento e o acompanhamento continuado foram identificados como necessários, uma vez que constava atraso nos processos de compras e não era possível  detectar quem eram os  responsáveis  e em qual etapa os atrasos aconteciam.

O acompanhamento dos processos licitatórios é feito para verificar se os prazos de cada etapa estão sendo cumpridos e agir para sanar dificuldades ou rever processos. Por exemplo, para estimar preço e elaborar termo de referência, o tempo de execução é de 15 dias úteis. Caso contrário, haverá atraso em outras partes, prejudicando o tempo ideal definido previamente. O tempo médio esperado em cada tipo de compra foi estipulado por meio de reuniões com as diretorias e com todos os envolvidos no trâmite processual, trazendo mais transparência sobre as etapas dos processos, bem como mais possibilidades de responsabilização aos servidores envolvidos, em caso de falhas ou omissões.

Esse acompanhamento se cumpre por meio de planilhas, cuja atualização é feita regularmente todas as segundas-feiras. Para conferir as etapas e os prazos estabelecidos, é utilizado o mapeamento do processo de trabalho “Aquisição de bens e serviços por licitação”, conforme Figura 1, a seguir.

Figura 1: Mapeamento do processo “Aquisição de bens e serviços por licitação” no âmbito do TCU

 Fonte: Documento interno Selip (2021).

Tratamos, agora, do município de Itajaí e seu controle interno. A escolha de Itajaí se deu porque um dos autores desenvolveu sua pesquisa para o Trabalho de Conclusão de Curso, TCC, em administração pública nesse município, de modo que a comunicação foi facilitada. Além disso, em 2017, a Prefeitura de Itajaí instituiu um modelo de gestão pública pautado no planejamento estratégico participativo. 

O município de Itajaí localiza-se no litoral norte de Santa Catarina (SC), possui área territorial de 289,215 km2, estimados 223.112 habitantes, densidade demográfica de 636,11 hab./km2, escolarização de 97,9% e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de 0.795 (IBGE, 2020). Para o exercício de 2021, a receita orçamentária foi de 1.801.675.237,00 (um bilhão, oitocentos e um milhões, seiscentos e setenta e cinco mil e duzentos e trinta e sete reais) e os contratos totalizaram o montante de 575.842.133,03 (quinhentos e setenta e cinco milhões, oitocentos e quarenta e dois mil, cento e trinta e três reais e três centavos) (PREFEITURA MUNICIPAL DE ITAJAÍ, 2021; TRIBUNAL DE CONTAS DE SANTA CATARINA, 2021).

Focalizamos a Diretoria Executiva de Licitações e Contratos do município, por meio de questionário com a servidora Fernanda Feller, diretora executiva do setor e especialista em licitações e contratos. A partir das respostas do questionário identificamos que Itajaí utiliza o Sistema Integrado de Processo Eletrônico (SIPE) para acompanhar as compras e contratações no município, assim como o TCU também faz uso do Sistema de Gestão Processual do TCU (e-TCU). Ambos possuem uma variedade de recursos, como expor o trâmite dos processos, as modificações e movimentações que ocorrem, disponibilizar diferentes relatórios, documentos e informações diversas acerca do processo. 

Assim sendo, constata-se que, a partir da implementação do SIPE, os processos de compras e contratações no município de Itajaí foram aperfeiçoados, uma vez que o sistema permite o acompanhamento e controle do processo licitatório eletronicamente, bem como favorece a interação entre os setores responsáveis, de modo a evitar atrasos e garantir a responsabilização por equívocos. 

Acerca do acompanhamento, Fernanda destaca que: 

O acompanhamento é imensamente importante para garantir o interesse público através das aquisições e prestações de serviço, garantindo a eficiência da Administração para a realização das demandas acompanhadas pelas respectivas Secretarias/Fundos/Fundação. Assim, com a utilização do novo sistema ficou demonstrado a todos servidores envolvidos como viabilizou o acompanhamento dos seus respectivos processos.

Consoantemente, Francismary Souza, Secretária da SELIP, em vídeo sobre o acompanhamento do TCU, salienta também quanto à iniciativa de mapear e acompanhar os processos licitatórios e destaca que: 

Quando começamos a fazer esse acompanhamento e os dados começaram a ser divulgados, preparando semanalmente um relatório e enviando para as caixas postais de todos, a gente percebeu que não só os gargalos diminuíram como ganhamos transparência no processo inteiro. Todos sabem o que todo mundo faz e o tempo que faz. Essa transparência gerou um senso de responsabilização nas equipes, e o resultado foi além do que estávamos esperando. As pessoas se adonaram dos processos de um jeito que todos ficaram responsáveis, sendo um ganho de accountability muito relevante.

Logo, é possível constatar que o SIPE proporcionou à prefeitura de Itajaí o acompanhamento e controle dos processos de compras e contratações, além de mais transparência aos servidores quanto às informações processuais e senso de responsabilidade para com a coisa pública, apresentando-se como um bom exemplo na gestão do processo licitatório.

Entretanto, conforme salientamos durante o texto, os municípios brasileiros, principalmente os pequenos, e até mesmo grandes órgãos, como os Tribunais de Contas, possuem dificuldades na aplicação da Lei de Licitações. De tal modo, destacamos a importância do controle interno do processo licitatório e a implementação de inovações, uma vez que Mafra et al. (2020) citam, a partir de entrevistas com especialistas em gestão de processos, que o mapeamento de processos, identificação de gargalos e proposição de soluções trazem ganhos substanciais para a gestão pública e tornam-se essenciais para favorecer o bom desempenho e a boa aplicação de recursos públicos.

* Texto elaborado pela(o)s acadêmica(o)s de administração pública Thiago Pedroso, Thamiris Pereira, Larissa Santos e Sara Stelzenberger, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências

AMORIM, Michele. A importância da licitação na administração pública: preceitos fundamentais. preceitos fundamentais. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74882/a-importancia-da-licitacao-na-administracao-publica-preceitos-fundamentais. Acesso em: 22 nov. 2022.

CATARINA, Tribunal de Contas de Santa. CONTRATOS – MUNICÍPIO DE ITAJAÍ – 2021. 2021. Disponível em: http://servicos.tce.sc.gov.br/sic/home.php?idmenu=municipio&menu=governocontrato&nu_ano=2021SFI&id=420820&id_modalidade=0. Acesso em: 05 dez. 2022.

COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 829-974, out. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rap/a/DxgBXcJLnFHVxsqPbgCWCkQ/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 nov. 2022.

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HARAGUCHI, Paulo Roberto Ossami. Legislação sobre licitações e os municípios brasileiros. In: Responsabilidade na gestão pública: os desafios dos municípios. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2008. 328 p. – (Série avaliação de políticas públicas ; n. 2).

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MAFRA, Ayla; VIANA, Icleusa; BERNARDES, Rosana; CUNHA, Tatiane. Gestão de processos no setor público: uma ferramenta de accountability. uma ferramenta de accountability. 2020. Disponível em: https://politeiacoproducao.com.br/gestao-de-processos-no-setor-publico-uma-ferramenta-de-accountability/. Acesso em: 06 dez. 2022.

POSSIDÔNIO, Abel Felix; TORRES, Valesca Leão Jacinto. Gestão Pública: a importância das licitações para a administração pública. Revista Multidisciplinar e de Psicologia, Pernambuco, v. 13, n. 45, p. 183-190, jan. 2019.