Por Eduarda Bez Gouveia, Elisa Régis de Souza e Ana Carolina de Souza*
O foco deste trabalho está na ligação entre dados abertos e prevenção de desastres, guiada pelo desastre ocorrido na Lagoa da Conceição, no município de Florianópolis, em 2021. Para elaborar esta reflexão, foram relembradas algumas tragédias ocorridas no Brasil e apresentados dados sobre o estado de Santa Catarina. O texto perpassa pela discussão sobre o uso da nomenclatura “desastres naturais” e caracteriza o ocorrido na Lagoa. Por fim, evidenciou-se o conceito de dados abertos, a responsabilidade governamental de produzi-los, bem como exemplos de dados e organizações que são utilizadas para a prevenção, a diminuição do risco e impacto de desastres e o aumento da resiliência da população atingida por tragédias.
Desastres no Brasil: do passado ao presente
Ao longo da história, no período medieval e na Idade Moderna, o adensamento populacional das urbes expôs ainda mais o homem a situações de riscos (MACIEL, G. F.; TONIATI, A. L.; FERREIRA, F. O.; 2021). Os desastres, de diferentes naturezas e magnitudes, faz parte da história do brasileiro com o passar dos anos: em 1987, Goiás vivenciou um dos maiores desastres por contaminação de substância radioativa do mundo; em 2000, o ecossistema da Baía de Guanabara ficou imerso no óleo devido a um vazamento em uma das tubulações de uma refinaria de petróleo; em 2011, a região serrana do Rio de Janeiro foi atingida por uma enchente e deslizamentos que deixaram mais de mil pessoas mortas ou desabrigadas – situação que se repetiu em 2022; em 2015 e 2019, tivemos o rompimentos as barragens de Mariana e Brumadinho, no estado de Minas Gerais, com efeitos devastadores sobre as pessoas e o ambiente. Já em Santa Catarina, os maiores desastres registrados na região foram devido a chuvas que causaram enxurradas, deslizamentos e enchentes, conforme visto na tabela 1.
Tabela 1: Soma de desastres naturais climatológico, geológico, hidrológico, meteorológico mensais no período de 1998 a 2019 em Santa Catarina. Fonte: RAIMUNDO; MEDEIROS; COSTA; MAGNAGO, 2021, pg.405).
Apesar da chuva, fenômeno meteorológico natural que resulta na precipitação de água, ser mencionada na maioria destes desastres, ela não é a protagonista vilã desses momentos. A ideia de desastres causados somente pelas forças da natureza não é coerente com a realidade e, por isso, não utilizaremos o termo “desastre natural” durante nossas reflexões. Conforme o professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra João Arriscado, não existe propriamente um desastre natural. Em diferentes momentos, existem sempre intervenções humanas, ou de organizações ou de fatores sociais que levam a uma catástrofe. Nesse mesmo sentido, Maciel; Toniati e Ferreira (2021, pg. 677) afirmam que,
O termo desastre ‘natural’ resulta de uma combinação de fatores, sendo eles a ocorrência de um fenômeno (evento natural); um sistema social (população exposta); condições de vulnerabilidade; e resiliência. Assim, os desastres ‘naturais’ envolvem processos naturais e sociais que comumente alteram a dinâmica social local, causando sérias depreciações e/ou danos irreversíveis, tais como perda de moradias, mortes, perda de suprimentos básicos, dentre outros tantos efeitos que permeiam, até mesmo, o psíquico dos indivíduos.
O município de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, foi palco em 2021 de uma tragédia devido ao rompimento de uma lagoa artificial de infiltração que recebe efluente tratado da Estação de Tratamento de Esgotos da região. Segundo a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), responsável pelo serviço, a grande quantidade de água da chuva nos dias que antecederam o desastre provocou o rompimento da estrutura.
O desastre na Lagoa da Conceição
No dia 25 de janeiro de 2021, aconteceu o rompimento de uma lagoa artificial de evapoinfiltração que recebe efluentes tratados da Estação de Tratamento de Esgotos da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN), onde os mais de 130 milhões de litros de matéria orgânica acabaram invadindo mais de 50 residências localizadas na servidão Manoel Luiz Duarte e adjacentes, e fluiu até a Lagoa da Conceição. Diante disso, o ocorrido acabou deixando diversas famílias desabrigadas, com danos materiais e emocionais, além de deixar às águas da tradicional Lagoa da Conceição com níveis de oxigênio perto de zero – conforme o monitoramento do Laboratório de Ficologia, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Conforme a entrevistada, moradora da região, “Foi um susto, muita água barrenta vindo, muita sujeita, fomos esperar a defesa civil e bombeiros em cima do telhado, vizinhos mergulhando na água para buscar cachorro, vizinhos que não tinham condições de sair, me senti incapaz, com medo, mas também indignada.”
Segundo a Casan, o rompimento da estrutura foi um acidente ocasionado pelo excesso de chuvas naqueles dias, porém, segundo os moradores, dias antes do ocorrido, ocorreram denúncias de que algo poderia estar errado. Técnicos da empresa visitaram o local, porém, nenhuma providência foi tomada para que a tragédia fosse evitada. Ainda segundo a morada, “Descaso, isso que foi, até hoje me sinto abandonada de ajuda pela Casan, principalmente no pós, sentimento de humilhação”. Devido ao acontecimento, a Casan foi acusada por crime de poluição ambiental e multada pela Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) no valor de R$15 milhões de reais, segundo dados da reportagem de Borges (2021) publicada no G1 SC.
A Figura 1, a seguir, mostra o estrago e destruição que o rompimento causou aos moradores locais e a própria Lagoa da Conceição.
Figura 1: Desastre da Lagoa da Conceição. Fonte: Reprodução de ND+ (2021)
Entre os atores envolvidos no ocorrido ou responsáveis por algum aspecto relativo ao acontecimento, podemos destacar onze, que seriam: a Casan, que é a principal envolvida, sendo uma empresa pública do estado de Santa Catarina responsável pelo tratamento de esgoto que também foi a responsável pelo rompimento da Lagoa; os moradores locais, que foram as principais vítimas, os quais se mobilizaram e conscientizaram o Ministério Público sobre o risco de alagamento na região; o Ministério Público de Santa Catarina, que abriu um inquérito civil para apurar as causas e responsabilidades do rompimento da Lagoa; a mídia, que repercutiu os fatos e exigiu esclarecimentos por parte da Casan; o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), responsável pela mobilização dos atingidos por barragens, antes, durante e depois de desastres como esse; a Comissão da Câmara dos Vereadores de Florianópolis, criada para acompanhar o processo e fazer a negociação entre os moradores e a empresa; a Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente), o principal órgão fiscalizador das questões ambientais causadas pelo rompimento; a UFSC, com laboratórios especializados para elaborar um plano de diagnóstico e recuperação dos danos ambientais; o IMA – Instituto do Meio Ambiente, órgão estadual que realizarou sobrevoo com drones para identificar a abrangência e buscaram avaliar os impactos ambientais realizando diversas vistoria na região; a Defesa Civil, responsável por toda assistência e socorro, principalmente na parte do cadastramento para oferecer apoio aos atingidos; e por fim, o Corpo de Bombeiros, equipe operacional acionada para estancar a ruptura e outra equipe de salvamento que atendeu as vítimas que tiveram seus imóveis alagados.
Dados abertos e accountability em desastres
Os dados abertos consistem em dados digitais brutos que são disponibilizados com características técnicas e legais necessárias, sobretudo pelo poder público, para que sejam livremente usados, reutilizados e redistribuídos por qualquer pessoa, a qualquer hora, em qualquer lugar (Murnane et al., 2019). No âmbito público,
os dados abertos promovem transparência ao possibilitar ao cidadão ver o que o governo faz, permitindo a responsabilização dos agentes públicos e dos representantes eleitos por suas ações e decisões tomadas, além de divulgar informações governamentais capazes de ser reutilizadas e proporcionar valor social ou econômico (KLEIN; KLEIN; LUCIANO, 2019, pg. 09).
O acesso adequado às informações possibilita a fiscalização de prestação de serviços e da atuação do poder público, que muitas vezes é omisso. A transparência favorece a cidadania e permite que o cidadão acompanhe a gestão pública, analise os procedimentos de seus representantes e controle o poder público. Sendo assim, podemos considerar que uma das funções de um governo é produzir dados sobre riscos de desastres relevantes para o seu território, o que pode ser realizado em sinergia com os demais atores urbanos, como o setor privado, universidades, organizações não-governamentais e sociedade (FERRENTZ; GARCIAS; NOLI, 2020).
Historicamente, no Brasil e no resto do mundo, a ocorrência de desastres abre portas para os poderes e instituições públicas repensarem suas ações e políticas nesses âmbitos, podendo os desastres ser considerados como laboratórios sociológicos, permitindo aos cientistas aprimorarem suas análises e compreensão sobre a resiliência, os fatores que podem contribuir ou dificultar a adoção de estratégias para fazer frente às situações adversas (MARCHEZIN et al., 2012). Essa afirmação foi reforçada por Fábio Castagna da Silva, Diretor do IMA, durante entrevista às autoras, que afirmou “a gente acaba aprendendo com os erros, infelizmente é assim que se faz no brasil, se tornou um case negativo para os olhos para situações similares”. Sendo assim, os dados abertos podem também facilitar no processo de aprendizagem e melhoramento desses atores no que tange ações e políticas para prevenção, gestão e recuperação da resiliência de áreas suscetíveis a desastres.
Existe uma série de dados que podem ser utilizados como fonte e base para a criação de estratégias de redução de riscos e danos de desastres, como por exemplo, implementação dos parâmetros de zoneamento e de uso e ocupação do solo; caracterização da região quanto os tipos de solo, bacias hidrográficas e vegetação; monitoramento das infraestruturas críticas; identificação das cotas de inundação; mapeamento das áreas de risco e vulnerabilidade social; dentre outros (FERRENTZ; GARCIAS; NOLI, 2020).
Nesse sentido, instituições e organizações vêm fazendo um trabalho significativo em prol da transparência e promoção de dados abertos. Uma destas ações é desenvolvida pela Secretaria de Estado da Defesa Civil de Santa Catarina, que criou o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), que tem o objetivo de qualificar e dar transparência à gestão de riscos e desastres no Brasil, por meio da informatização de processos e disponibilização de informações sistematizadas dessa gestão. Você pode ler mais sobre o tema aqui.
Além disso, as organizações da sociedade civil têm atuado no engajamento e visibilidade da importância dos dados abertos relacionados a desastres, como é o caso do projeto “Dados à Prova D’Água”. O projeto foi idealizado pela Maria Alexandra Viegas Cortez da Cunha, professora da FGV em São Paulo, envolvendo a FGV, a Heidelberg University, o Institute of Global Sustainable Development e o National Disaster Monitoring and Early-Warning Centre in Brazil. A imagem 2, a seguir, mostra o uso do aplicativo.
Imagem 2: Alunas catarinenses fazendo o uso do aplicativo Dados à Prova D’Água. Fonte: Reprodução Fapesp, 2022.
A visão geral do projeto consiste em:
“Engajando as partes interessadas na governança sustentável do risco de inundação para a resiliência urbana. O projeto Dados à Prova D’água investiga a governança dos riscos relacionados à água, com foco nos aspectos sociais e culturais das práticas de dados. Normalmente, os dados fluem dos níveis locais para os “centros de especialização” científicos e, em seguida, alertas e intervenções relacionados a inundações retornam para os governos locais e para as comunidades. Repensar como os dados relacionados às inundações são produzidos e como eles fluem pode ajudar a construir comunidades sustentáveis e resilientes às inundações”.
Conforme explanado pela professora, a ideia era simplificar o uso dos dados para comunidade, colocando eles mesmos como atores principais do compartilhamento, tornando de fato parte da cultura.
Existem também os mapeamentos colaborativos, que consistem em mapas elaborados pelos próprios usuários das informações inseridas, um conteúdo gerado pelos usuários de forma simples e voluntária. O projeto Dados à Prova D’água, em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Global Sustentável da Universidade de Warwick, desenvolveram um tutorial de mapeamento colaborativo com a OpenStreetMap:
“a OpenStreetMap é uma ferramenta livre e colaborativa de mapeamento digital com dados abertos fundado em 2004, em que qualquer pessoa pode fornecer informações geográficas sobre elementos presentes na superfície terrestre, tais como edifícios comerciais, escolas, hospitais, rodovias, áreas residenciais, ferrovias, etc. Todos esses componentes geográficos que são adicionados ao OSM são de conhecimento do próprio colaborador ou de fontes livres de direitos autorais.”
Os mapeamentos colaborativos mostram-se relevantes quando falamos em desastres, já que eles podem ser essenciais na fase de resposta. Por meio do mapeamento colaborativo comunidades, governos e organizações, podem ter um conhecimento mais detalhado da área e, assim, prevenir e responder a desastres de maneira mais eficaz.
O que aprendemos com o desastre
Com isso, é possível concluir que os dados abertos são uma ferramenta para a prevenção desastres, pois, por meio da disponibilização de dados, a população pode ter mais acesso à informação e assim entender mais sobre as características do meio em que vive (FERRENTZ; GARCIAS; NOLI, 2020). Os dados abertos podem contribuir também para o aprimoramento e a compreensão sobre fatores e estratégias para fazer frente às situações adversas por parte do governo. Para atingir tal objetivo, os dados devem cumprir com requisitos importantes, como: precisam existir; precisam ser completos e sem restrições; o usuário precisa ter conhecimento da existência; e o usuário precisa ter conhecimento de como analisar e aplicar.
Dessa forma, os dados abertos podem contribuir para a criação ou fortalecimento da resiliência de uma população, além do conhecimento dos cidadãos sobre o local onde os mesmo vivem, trazendo mais autonomia e segurança para a população local, aumentam a governabilidade, pois a transparência é uma das ferramentas essenciais para o desenvolvimento da confiança das pessoas com os representantes do Estado.
O desastre ocorrido na Lagoa da Conceição poderia ter sido evitado através do uso de dados do limite da lagoa de evapotranspiração e do monitoramento da mesma pelos órgãos responsáveis e pelos moradores vizinhos, principalmente em períodos de chuvas, quando o ambiente está mais propício para a sobrecarga dessa e de outras barragens.
Desastres como o experienciado pelos moradores da região leste de Florianópolis não são naturais e devem ser evitados. Dessa forma, se faz necessário o amadurecimento do uso de dados para a prevenção destes ocorridos e a responsabilização dos entes envolvidos para que, além da transparência, a accountability também seja praticada.
*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública, Eduarda Bez Gouveia, Elisa Régis de Souza e Ana Carolina de Souza, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.
Referências
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