Por João Vitor de Goes Fontes, Matheus Adir dos Santos e Vitória Maria Hartmann Caitano*
Em um contexto em que as exigências por transparência e legitimidade na atuação do Estado são maiores, o conceito de accountability se torna relevante para entender como o poder público deve responder à sociedade. Essa ideia envolve diferentes dimensões, como responsabilidade, responsabilização ou imputabilidade e responsividade, como explicam autores como Francisco Heidemann (2021) e Jonathan Koppell (2005). Este texto propõe uma reflexão sobre como essas dimensões se manifestam não apenas nas instituições formais, mas também nas redes sociais, por meio das quais cidadãos cobram ações e posicionamentos. Nesses espaços, práticas como o “cancelamento” revelam novas formas de pressão social, que podem tanto promover justiça quanto levantar questões sobre excessos e julgamentos precipitados.
O que é responsabilização pública?
Responsabilização pública, aqui considerada como uma das dimensões e também como sinônimo de accountability (embora esta contemple outras dimensões abordadas no texto), significa o dever que servidores e instituições têm de explicar o que fazem ou deixam de fazer, especialmente quando usam dinheiro público, e enfrentar consequências por isso. O que envolve apresentar resultados, justificar decisões, seguir condutas consideradas corretas (ou éticas) em seu contexto e permitir que a sociedade cobre respostas a suas expectativas, aplicando premiações ou punições, quando algo está errado. No Brasil, essa cobrança e controle podem acontecer de três formas principais: entre instituições do próprio Estado (controles mútuos entre os três Poderes e tribunais e ministérios públicos fiscalizando outros órgãos), por meio da participação cidadã nas eleições e, também, por formas mais diretas de vigilância e participação da sociedade, que ocorrem fora das urnas. Todas essas formas ajudam a manter o governo mais transparente e próximo das necessidades e expectativas do povo.
Responsabilização feita pela sociedade
A população pode cobrar diretamente os gestores públicos, mesmo sem estar dentro do governo ou envolvida em eleições. Isso acontece por meio de conselhos de políticas públicas, como os de saúde e educação, nos quais representantes de usuários e prestadores de serviços discutem políticas com o governo e tomam decisões; por meio de organizações da sociedade civil e movimentos sociais que denunciam abusos e promovem boas práticas. Entre essas organizações, estão os observatórios sociais, que analisam como o dinheiro público está sendo usado e buscam colaborar para aprimorar a gestão e os serviços públicos. Essas formas de participação permitem que as pessoas influenciam decisões públicas, a partir de denúncias dentro de ouvidorias, cobrando cada vez mais acesso a informação, o que acaba fortalecendo a democracia.
E as redes sociais: uma nova forma de cobrança?
Com a popularização da internet, as redes sociais se tornaram um espaço para cobrar atitudes de políticos e instituições públicas. Muitas vezes, as pessoas se unem espontaneamente para denunciar casos de injustiça, corrupção ou descaso. Essa forma de cobrança pode ter efeitos positivos, chamando atenção para problemas e exigindo respostas. No entanto, também apresenta riscos: como não há um processo claro de apuração, muitas vezes surgem julgamentos apressados, injustiças, ataques pessoais e até desinformação. Sem filtros ou regras, essa cobrança pode virar perseguição, em vez de uma crítica construtiva ou uma responsabilização justa.
Cultura do cancelamento: cobrança ou perseguição?
O chamado “cancelamento” acontece quando alguém é publicamente boicotado ou rejeitado por ter feito algo considerado errado. Às vezes, esse movimento pode funcionar como forma de exigir mudanças ou apontar erros graves. Porém, muitas vezes, essa cobrança vira linchamento virtual. As pessoas envolvidas são atacadas sem direito à defesa, sua imagem é destruída e sua saúde mental fica abalada. Isso vai contra o que a Constituição Federal brasileira garante: que toda pessoa tem direito a um processo justo antes de ser punida. A Constituição adota esse princípio em várias formas, especialmente no art. 5º, inciso 54: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” Logo, se uma pessoa é acusada de corrupção, ela não pode ser condenada diretamente nas redes sociais ou por uma autoridade pública sem ter direito à defesa formal, provas legais, contraditório e julgamento, pois isso seria uma violação do devido processo legal. Acusar alguém sem provas ou condenar publicamente sem dar chance de explicação é perigoso e injusto.
Casos reais no Brasil
Dois casos no setor público mostram como as redes sociais podem funcionar como forma de cobrança pública, com efeitos diferentes. O primeiro é o caso da Covaxin, em 2021. Durante a pandemia, servidores denunciaram uma tentativa de compra de vacinas por um valor muito acima do normal. A denúncia foi divulgada em redes sociais e ganhou força com hashtags e mobilização de influenciadores. Isso pressionou o Senado a abrir uma investigação, a CPI da Covid, que expôs problemas graves na gestão da crise sanitária. O contrato foi cancelado. A pergunta que fica é: isso teria acontecido sem a mobilização digital?
O segundo é o caso Miguel, em 2020. Um menino de 5 anos morreu após cair de um prédio enquanto a mãe trabalhava para a esposa do então prefeito de Tamandaré (PE). Descobriu-se que a mãe era registrada como funcionária da prefeitura, mas atuava como empregada doméstica. Ou seja, dinheiro público estava sendo usado indevidamente. A comoção nas redes foi enorme e gerou mobilização contra o prefeito e sua esposa. O prefeito não foi reeleito, e a esposa foi condenada. O caso só teve visibilidade nacional por causa das redes sociais.
Há também casos fora do setor público que mostram os perigos do cancelamento. Como a situação da influenciadora Jéssica Canedo, em 2023, que chamou atenção para os efeitos devastadores dos ataques virtuais injustos fazendo com que ela tirasse a própria vida após ser alvo de fake news.
Conclusão: como cobrar com responsabilidade?
Dessa forma, podemos entender que accountability vai além de simplesmente cobrar ou punir alguém. Como explicam Heidemann (2021) e Koppell (2005), ela envolve três partes importantes: a responsabilidade, que é agir com ética e compromisso a responsabilização (ou imputabilidade), que é poder ser cobrado e prestar contas; e a responsividade, que é saber ouvir e responder às necessidades da sociedade. Mas é importante lembrar que, para responsabilizar alguém, também é preciso agir com responsabilidade. Isso vale tanto para as instituições quanto para as pessoas nas redes sociais. Cobranças feitas de forma apressada ou sem cuidado podem ser injustas e acabar prejudicando mais do que ajudando. Por isso, fortalecer a accountability significa também promover uma cultura de respeito, diálogo e equilíbrio entre cobrança e justiça.
As redes sociais se tornaram ferramentas poderosas para que a população cobre explicações, exija respeito às leis e pressione por mudanças na gestão pública. Casos como o da Covaxin e o de Miguel mostram que, quando bem direcionada, essa cobrança pode ter efeitos positivos e gerar investigações e correções. Por outro lado, quando essa pressão se transforma em ataques, julgamentos sem defesa e punições públicas fora das regras legais, ela deixa de ser uma ferramenta democrática e passa a ser uma forma de violência.
Cobrar gestores públicos é um direito de todo cidadão, mas essa cobrança precisa ser feita com responsabilidade. A verdadeira cobrança pública é aquela que gera mudança e melhora a vida das pessoas não a que destrói reputações sem chance de explicação. Assim, compreender e praticar a accountability de forma equilibrada é essencial para fortalecer a democracia e promover relações mais justas entre Estado e sociedade.
*Texto elaborado por João Vitor de Goes Fontes, Matheus Adir dos Santos e Vitória Maria Hartmann Caitano, estudantes de graduação em administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2025.
Referências
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