Por Alessandra Gramkow Hammes*
O conceito de Governo Aberto propõe um modelo de governança baseado em transparência, participação cidadã, accountability e integridade, promovendo uma atuação colaborativa entre governo e sociedade. Essa abordagem busca fortalecer a democracia e aprimorar a gestão pública por meio do acesso à informação e do engajamento das partes interessadas (Brasil, 2024; Schommer e Quiñonez, 2024).
A partir dessa perspectiva, desenvolve-se o conceito de Justiça Aberta, que consiste na aplicação dos princípios do Governo Aberto às instituições do sistema de justiça, visando tornar a atuação judicial mais transparente, acessível e participativa, permitindo aos cidadãos conhecerem e atuarem na construção da justiça (Bleme e Campos, 2023).
Em levantamento realizado em sites institucionais da justiça brasileira, verificou-se que o termo Justiça Aberta tem sido utilizado para designar um sistema, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disponibiliza dados sobre a produtividade e a arrecadação das serventias extrajudiciais — como cartórios, ofícios de notas, registros e protestos (Conselho Nacional de Justiça, 2024). Essa concepção, no entanto, limita-se à transparência de dados operacionais, sem incorporar outros princípios de Governo Aberto, tais como a participação cidadã e a responsabilização pública.
Em contraponto a essa abordagem restrita, o relatório “Taking Action for Justice” propõe uma perspectiva ampliada de Justiça Aberta. Elaborado pelo Pathfinders for Peaceful, Just and Inclusive Societies**, em colaboração com a Open Government Partnership (OGP), ou Parceria para Governo Aberto, o relatório destaca a inserção da justiça na agenda da OGP, especialmente após a inclusão do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 16 da Agenda 2030 das Nações Unidas, que prevê o acesso igualitário à justiça. O documento descreve como a articulação entre governos e sociedade civil, no âmbito da OGP, tem ampliado os compromissos com a justiça centrada nas pessoas, com foco na superação de barreiras de acesso e no fortalecimento de mecanismos institucionais de transparência e accountability (Jweied, 2021).
O relatório apresenta estratégias e ações implementadas por membros da OGP e outros atores para promover uma justiça aberta e centrada nas pessoas. Entre as iniciativas estão a realização de pesquisas para identificação de demandas jurídicas, a ampliação da disponibilidade de dados sobre o sistema de justiça e o incentivo a métodos alternativos de resolução de conflitos. O documento também aponta ações voltadas à participação cidadã, como a criação de espaços para formulação de políticas públicas e o acesso aberto à informação.
Além disso, o relatório aponta obstáculos à adoção de abordagens de Justiça Aberta, como a percepção limitada sobre problemas jurídicos – frequentemente atribuídos ao acaso –, a falta de transparência nos processos, a assistência jurídica limitada ou inacessível, práticas discriminatórias e a complexidade dos procedimentos legais, que comprometem o acesso igualitário à justiça.
No Brasil, Bleme e Campos (2023) apontam que, embora o acesso à justiça seja um direito garantido pela Constituição, sua efetivação ainda enfrenta entraves como morosidade processual, complexidade dos procedimentos, formalismo e limitada participação cidadã no Judiciário.
As autoras destacam o caso de Contagem (MG), que, ao aderir à OGP em 2022, comprometeu-se com a promoção da Justiça Aberta por meio da criação da Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos de Contagem (CPRAC-C). A iniciativa visa ampliar o acesso à justiça ao oferecer mecanismos alternativos ao Judiciário e estabeleceu um canal direto de diálogo entre a administração pública e a população.
Segundo as autoras, a implementação da CPRAC-C orienta-se por práticas compatíveis com a Justiça Aberta, como a independência, ao atuar no âmbito do Executivo local, ainda que com atuação do Judiciário; e a abertura, ao ampliar o acesso por meio da prevenção da judicialização; a participação social e a colaboração, ao envolver os munícipes na resolução de demandas; e uso de dados, ao orientar políticas públicas e simplificar procedimentos.
No âmbito do Poder Judiciário de Santa Catarina (PJSC), o “Programa Lar Legal” pode ser compreendido como uma iniciativa alinhada aos princípios da Justiça Aberta. Criado em 1999, por meio do Provimento n. 37 da Corregedoria-Geral da Justiça, e institucionalizado como programa permanente em 2019, tem como finalidade a regularização fundiária de imóveis urbanos ocupados por famílias de baixa renda em áreas consolidadas e irregulares. A iniciativa busca enfrentar a ausência de escritura pública por meio de procedimento judicial coletivo, simplificado e mais célere que as ações tradicionais de usucapião, com o objetivo de garantir o direito à moradia e o acesso ao registro de propriedade (Franco Junior e Hickel, 2024).
O programa adota um modelo de cooperação entre o Poder Judiciário, os municípios e os moradores, com enfoque na resolução coletiva de demandas fundiárias. Conforme Franco Junior e Hickel (2024), a atuação é estruturada a partir de um regime específico de jurisdição voluntária, no qual o juiz pode buscar soluções consensuais para reconhecimento do domínio, inclusive com flexibilização de critérios legais estritos. As decisões resultantes geram títulos registrais, viabilizando o acesso formal à moradia e à infraestrutura pública básica.
A partir da análise do “Programa Lar Legal”, o artigo evidencia que práticas de regularização fundiária promovidas pelo Judiciário podem ser compreendidas como expressão de Justiça Aberta, quando associadas à cooperação interinstitucional, à atuação voltada à coletividade e à efetivação de direitos sociais.
Conclui-se que a abordagem de Justiça Aberta representa uma mudança de paradigma necessária ao incorporar participação cidadã, responsabilização pública e acesso equitativo à justiça. Essa perspectiva demanda práticas colaborativas, utilização de dados e diálogo com a sociedade na formulação de políticas, além de adaptações institucionais que ampliem o acesso e superem barreiras estruturais.
Referências
BLEME, N. F.; CAMPOS, S. Justiça Aberta: experiências e desafios no poder executivo municipal. Brazilian Journal of Business, v. 5, n. 4, p. 2053–2064, 2023. DOI: 10.34140/bjbv5n4-015. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJB/article/view/65150. Acesso em: maio. 2025.
BRASIL. O que é Governo Aberto. Controladoria-Geral da União, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/governo-aberto/governo-aberto-no-brasil/principios. Acesso em: maio. 2025.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça Aberta. Corregedoria Nacional, 2024. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/justica-aberta/. Acesso em: maio. 2025.
FRANCO JUNIOR, Abelardo; HICKEL, Fernando Seara. O Programa Lar Legal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: uma análise sob a perspectiva da sustentabilidade social. Revista de Direito Sociais e Políticas Públicas, v. 10, n. 1, p. 45-66, Jan./Jul. 2024.
JWEIED, Maha. Taking Action for Justice: the justice for all movement and the Open Government Partnership. Nova York: Center on International Cooperation, 2021. Disponível em: https://cic.nyu.edu/resources/taking-action-for-justice/.Acesso em: maio. 2025.
SCHOMMER, P. C.; QUIÑONEZ, A. H. Accountability, equidade em serviços públicos e governo aberto no Brasil e na Colômbia. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 58, n. 5, p. e2024–0008, 2024. DOI: 10.1590/0034-761220240008. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/92260 . Acesso em: maio. 2025.
*Texto elaborado por Alessandra Gramkow Hammes, no contexto da disciplina Accountability, Controle e Coprodução do Bem Público, ministrada pela professora Paula Chies Schommer no primeiro semestre de 2025, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc Esag, curso de mestrado profissional em parceria com o Poder Judiciário de Santa Catarina.
** Pathfinders for Peaceful, Just and Inclusive Societies: plataforma multissetorial que reúne governos, organizações internacionais, parceiros globais e outros atores para trabalhar em conjunto na promoção de sociedades pacíficas, justas e inclusivas, visando acelerar o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável relacionados à paz, justiça e inclusão (ODS16+).