Por Sophia Myron e Thalia Farinon*
Diariamente, estamos expostos a situações que podem impactar de alguma maneira nossos planos. Sabemos que a probabilidade de imprevistos acontecerem é infinita. Nas organizações, essa realidade não é diferente, o que faz surgir o que chamamos de Gestão de riscos. A necessidade de manter-se atento às chances de um risco se tornar um problema real fez com que órgãos de controle interno e externo se interessassem pelas práticas adotadas na gestão de riscos como um meio coordenado e estratégico de se prevenir ocorrências que possam causar efeitos negativos à prestação de serviços.
Entende-se por risco as possíveis ameaças ao cumprimento dos objetivos estratégicos de uma organização. A gestão de riscos, por sua vez, seria um mapeamento dessas ameaças e a tomada de ações coordenadas, de forma a mitigar os impactos e possibilitar a concretização dos objetivos organizacionais. Esse processo deve envolver todas as partes interessadas, ou os chamados stakeholders, que podem ser afetados pelas atitudes e decisões definidas. Essa visão de gestão foi difundida no âmbito estatal a partir da chamada nova gestão pública, passando-se a fazer parte do repertório da governança corporativa para órgãos, entidades e empresas públicas
Em paralelo ao desenvolvimento da gestão de riscos, é possível fazer uma análise de sua aplicação como meio de fortalecimento dos processos de accountability. De acordo com Hood (2007), para que seja possível gerir riscos, é necessário que os órgãos de controle possam redefinir parâmetros de culpabilidade e os limites da responsabilidade de seus agentes públicos. No momento em que se sentem contrários à publicação dos problemas institucionais, é preciso que haja ações para que agentes públicos sejam capazes de “atuar dentro de um regime de visibilidade e escrutínio público” (BLACK, 2005, apud KLEIN JR., 2020, p. 3).
Levando em consideração o exposto, podemos analisar dois aspectos da accountability. São eles a answerability, em outras palavras, a capacidade de informar e justificar ações, e o enforcement, que pode ser entendido na forma em que o agente público é cobrado e responsabilizado pela sua ação ou omissão em determinada situação (SCHEDLER, 1999). De acordo com Klein Junior (2020), caso a gestão de riscos não alinhe parâmetros para responsabilização e culpabilização dos agentes públicos, pode-se ter uma inversão no seu propósito, passando a responsabilidade para os processos mapeados e não para as ações tomadas pelos gestores.
Outro aspecto relevante é o das práticas de accountability aplicadas ao controle interno. Se fizermos um recorte nas auditorias internas nos órgãos públicos, percebemos que há uma grande preocupação com os limites formais ou legalistas e a prestação de contas costuma limitar-se a aspectos financeiros e contábeis. Essas ênfases podem ser entendidas como resistência à geração de informações mais transparentes, inclusive sobre critérios, resultados, ações e omissões, que visem de fato a visibilidade do órgão e o diálogo com a sociedade, o que sujeitaria a entidade à opinião popular.
É diante disso que se considera a importância da transparência no processo de criação e implementação da gestão de riscos nas instituições. A partir dos pontos levantados por Klein Junior (2020), gerir riscos significa que agentes públicos devem não apenas antecipar informações a respeito de ameaças a objetivos organizacionais, mas também tornar essas informações passíveis de auditoria e responsabilização. Para Black (2005), isso implica em uma mudança radical, uma vez que órgãos de controle devem ser capazes de definir os limites da ação e responsabilização de agentes públicos, isto é, definir como devem informar e justificar ações com base no risco (answerability) e como devem ser cobrados por essas ações (enforcement).
Sob esse prisma, pode-se analisar o formulário disponibilizado pela Controladoria Geral do Estado de Santa Catarina – CGE, que faz parte do Programa de Integridade e Compliance do governo do estado de Santa Catarina. No Programa, há uma etapa de mapeamento dos riscos nas instituições do estado, incluindo empresas públicas, para servir de subsídio à criação de um conjunto de medidas de mitigação para o tratamento dos riscos, com definição de prazos e responsáveis por sua implantação em cada um dos órgãos e entidades.
Além disso, ao analisarmos os guias metodológicos de gestão de riscos produzidos pelo órgão, percebe-se a preocupação voltada à publicização, tanto em relação ao processo do mapeamento de riscos, quanto dos resultados obtidos por ele, sendo adotada uma perspectiva de longo prazo pela Controladoria. Ademais, o interesse de trazer essas informações a público, envolvendo a sociedade ativamente no processo, é expressa no manual, conforme observado no seguinte trecho extraído do E-book 05 – Parte Interessadas:
“O engajamento de todas as partes interessadas, sejam públicas ou privadas, fortalece a democracia, aumenta a confiança nas instituições e ajuda a promover a consciência social sobre os limites de atuação do Estado, contribuindo para o compartilhamento das responsabilidades relacionadas aos riscos.” (p. 11)
Em entrevista realizada com uma funcionária de uma empresa pública do estado de Santa Catarina, observou-se que, na sua visão, a gestão de riscos têm ocorrido mais como resposta às demandas de regulamentação em prol do compliance do que propriamente como sinal de mudança estrutural e de adoção de ações efetivas em relação aos riscos mapeados. Questionada a respeito do quão transparente são os problemas estruturais sofridos pela empresa, a colaboradora pontuou que são pouco transparentes e que, dependendo de como é realizado o estudo da estrutura, esses problemas sequer são identificados. Além disso, foi mencionado que muitas vezes os colaboradores que realizam os controles nem questionam a sua real necessidade.
O descompasso entre a alta administração de muitas empresas e os seus colaboradores, na gestão de riscos, é um entrave para o seu sucesso e eficiência. Isso, atrelado à falta de disclosure, ou seja, da divulgação das informações dos problemas mapeados ao respectivo público, muitas vezes explicado pela preocupação da reputação organizacional ou até mesmo preservação de capital político, surge como um dos motivos para a falha dos mecanismos de accountability. Assim, a gestão de riscos pode reduzir-se a mais um processo organizacional que visa o cumprimento de normas legais, com o enfoque para a prestação de contas financeira e de processos e não para a resposta a problemas sociais e demandas dos cidadãos e usuários dos serviços.
REFERÊNCIAS
Black, J. (2005). The emergence of risk-based regulation and the new public risk management in the United Kingdom. Public Law, Autumn, 510-549.
Hood, C. (2007). What happens when transparency meets blame-avoidance? Public Management Review, 9(2), 191-210. DOI: https://doi.org/10.1080/14719030701340275.
Klein Junior, V. H. (2020). Gestão de riscos no setor público brasileiro: uma nova lógica de accountability?. Revista De Contabilidade E Organizações, 14, e163964. https://doi.org/10.11606/issn.1982-6486.rco.2020.163964. Acesso em:
SANTA CATARINA. Governo do Estado de Santa Catarina. SIG, CGE. Disponível em: SIG-E-book-05-Partes-Interessadas.pdf (cge.sc.gov.br). Acesso em: 02 jul. 2022.
SCHEDLER, Andreas. “Conceptualizing Accountability” Boulder e London The Self-Restraining State: Power and Accountability in New Democracies (1999). Disponível em: http://works.bepress.com/andreas_schedler/22/. Acesso em: 21 jul. 2022.
TCU, TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Gestão de riscos no TCU: o que é e para que serve? Disponível em: O que é e para que serve | Portal TCU. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/planejamento-governanca-e-gestao/gestao-de-riscos/gestao-de-riscos/. Acesso em: 02 jul. 2022.TORMES, Diego. Politize!. Accountability: o que significa?. 16 maio 2017. Disponível em: https://www.politize.com.br/accountability-o-que-significa/. Acesso em: 10 jul. 2022.
* Texto elaborado pelas acadêmicas de Administração Pública Sophia Myron e Thalia Farinon, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.