Emancipação de municípios: uma questão de accountability?

Por Lucas Garcez e Thiago Duarte*

O Brasil adota o sistema federativo. Isto significa que o país está dividido em unidades federativas. Cada unidade, com exceção do Distrito Federal, é composta por municípios. Cada município (ou cidade) possui a autonomia de se organizar por lei orgânica, eleger seus governantes, estabelecer os serviços públicos e a estrutura necessária para administrá-los, bem como a forma de captar recursos (Meirelles, 2017).

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no início do século XX, eram 1.121 o número de municípios brasileiros. Em 2010, o número se multiplicou por 5. É claro que ocorreu uma evolução econômica, política e cultural no país e este crescimento numérico é, em parte, reflexo desta evolução. Contudo, há grande discrepância entre unidades territoriais de mesma característica legal. Cidades com poucos milhares de habitantes possuem as mesmas atribuições, mas nem sempre as mesmas capacidades que os dezessete municípios com mais de 1 milhão de habitantes.  

A diferença também é territorial. Há municípios no Brasil, como Altamira, no Pará, com território maior que alguns estados brasileiros e outros com menos de 30 km². Isso afeta na prestação de serviços públicos. A população de distritos distantes das áreas centrais de municípios com grande extensão territorial acaba prejudicada.  Ao longo dos últimos 40 anos, a dinâmica populacional teve consequências distintas nas diferentes regiões do país. Enquanto que, nas grandes unidades da federação, como o Pará, houve a manutenção das unidades municipais já consolidadas, de grandes extensões territoriais, de tamanho similar ao de outras nações. Já nos estados meridionais do Sul e Sudeste, houve um crescimento significativo da emancipação de distritos e, assim, grande crescimento do número de municípios, não necessariamente de grandes extensões territoriais, como no Norte do país.

A criação e desmembramento de novos municípios é um fenômeno que acompanha o desenvolvimento democrático do Brasil, por conta de que mais de 20% dos novos municípios foram criados na distensão democrática que culminou na Constituição de 1988. As motivações principais para a emancipação de municípios são a autonomia e independência política e administrativa. Regiões que muitas vezes são esquecidas ou deixadas de lado em relação a outras regiões do município “principal”. A impressão que se tem é que não é dada a devida atenção e transparência, tanto administrativa, quanto financeira de dispêndio de recursos.

A busca por emancipação muitas vezes expressa a vontade de demonstrar uma identidade cultural que reflita os hábitos e a história de cada localidade. Além da busca por desenvolvimento refletido em índices socioeconômicos, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em localidades do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, muitos municípios recém emancipados possuem índices de desenvolvimento baixo. Por outro lado, a maioria desses municípios têm apresentado uma evolução no IDH maior que as cidades das quais se desmembraram, de acordo com nossa análise. Neste ponto de vista, a emancipação significa, ao mesmo tempo, uma afirmação cultural e uma busca por evolução econômica e social.

Em municípios pequenos, é grande o desafio de obter receitas próprias suficientes para a prestação de serviços públicos. Conforme demonstram relatórios dos tribunais de contas, muitas vezes a principal fonte de receita não é a dos tributos locais e sim os repasses de transferências dos estados e da União. Em pequenos municípios, é grande o desafio de prestar os serviços e manter o custeio da máquina pública. Nos maiores, principalmente aqueles com grande densidade populacional, o desafio é a construção de arranjos institucionais que permitam o compartilhamento de soluções para problemas que ultrapassam os limites territoriais. Um exemplo são os consórcios municipais para a prestação de serviços, como nas áreas de saúde, educação e saneamento.

No que tange à transparência dos critérios e do processo, a legislação, Artigo 18 § 4o da Constituição Federal, institui regras para criação de novo município. Inicialmente, o texto mencionava que “far-se-ão por lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em lei complementar estadual, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas”, dando aos estados federados a prerrogativa de definir critérios para a emancipação, o que se interpunha à própria Constituição no que se refere à independência dos entes federados. Em um segundo momento, com a Emenda Constitucional nº 15 de 1996, apesar de também aguardar uma lei complementar para detalhar a questão, havendo a necessidade de se ter a mesma lei estadual prevista anteriormente, porém à partir de uma lei complementar federal, definiu: “far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei”.

Entende-se que tanto a União, Estados e Municípios são entes federados, autônomos, sem relação de hierarquia e subordinação. O procedimento de plebiscito, um instrumento de accountability democrática, estava presente desde o início, mas a Emenda passa a exigir a divulgação de Estudos de Viabilidade Municipal, para esclarecer os impactos dessa emancipação. O Estudo de Viabilidade se insere no âmbito da Prestação de Contas e Transparência, contribuindo para a qualidade do debate e da decisão sobre emancipar ou não.

Outro ponto importante nesse debate é o Fundo de Participação dos Municípios, que é distribuído pelo governo federal e estadual, a partir de impostos desses entes federados, para os municípios. O cálculo é feito pelo Tribunal de Contas da União, que considera o tamanho da população e renda, com um mínimo para municípios de até 10.188 habitantes, e máximo para aqueles acima 156 mil. Sabe-se que grande parte dos pequenos municípios acaba sendo dependente desses repasses. Município maiores também possuem dependência, a exemplo da capital catarinense, Florianópolis, na qual mais de 35% do seu orçamento é composto de repasses. Isso nos faz repensar que mesmo com a previsão legal de entes federados, autônomos, com responsabilidades bem definidas, ainda assim o Estado brasileiro não conseguiu colocar em prática essa autonomia, havendo uma desproporcionalidade entre a responsabilidade dos municípios perante sua capacidade financeira própria de cumprir com essas responsabilidades, sendo dependentes de repasses para cumprirem seus papéis definidos na Constituição de 1988.

Respondendo ao questionamento título deste texto, podemos considerar que a emancipação de municípios se relaciona à accountability no que tange a transparência e à qualidade do debate público nos seguintes aspectos:

– A motivação, considerando que cada município possui dinâmica própria e a missão da accountability em relação ao tema da emancipação é proporcionar a transparência na divulgação de dados em relação a fatores históricos, culturais, econômicos e políticos.

– As regras e critérios para emancipação, em que percebemos que houve uma evolução no que tange à legislação, buscando reequilibrar a independência dos entes federados, não deixando os municípios “reféns” dos critérios estabelecidos pelas unidades federativas, mas também sob os auspícios de lei complementar (ainda não estabelecida) da União. Há previsão de um Estudo de Viabilidade Municipal, porém uma falta de garantia de qualidade das informações, que permitam que cada situação seja avaliada em sua necessária profundidade, de modo que se possa determinar a necessidade ou não de uma eventual divisão territorial. A accountability aqui vai desde a divisão de poderes legal até a transparência no que tange à informação para tomada de decisão.

– A capacidade administrativa e prestação de serviços, que ainda é muito discutível, sob diversas ponderações no que tange às especificidades de cada município, desde sua extensão territorial à sua relação com a parte central do município a se emancipar. Cabe aqui a accountability para obter as informações necessárias para saber o real motivo do porquê os municípios se emancipam.

– Por fim, a distribuição de recursos e responsabilidades dos entes federados, que perpassa a discussão do Fundo de Participação dos Municípios, como são distribuídos e a dependência a esse fundo, que não permite que os municípios tenham autonomia de acordo com suas responsabilidades estabelecidas na Constituição Federal (1988). Esse seria um último ponto que envolveria os demais, mostrando que a questão é complexa e envolve a accountability como um todo, desde a questão legal, de desenho institucional, à prestação de contas e a responsividade ao interesse das populações afetadas.

Referências

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades IBGE. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/>. Acesso em: 11 jun. 2019.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Evolução da Divisão Territorial do Brasil. Disponível em: <https://ww2.ibge.gov.br/home/geociencias/geografia/default_evolucao.shtm>. Acesso em: 10 jun. 2019.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. 886 p.

Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Portal do Cidadão. Disponível em: <http://portaldocidadao.tce.sc.gov.br/homesic.php>. Acesso em: 11 jun. 2019.

Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Indicadores. Disponível em: <http://www1.tce.rs.gov.br/portal/page/portal/tcers/consultas/indicadores>. Acesso em: 11 jun. 2019.

Transferências Florianópolis <https://meumunicipio.org.br/perfil-municipio/4205407-Florianopolis-SC>

Artigo 18  § 4 <https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_14.12.2017/art_18_.asp>

Texto para discussão

FERNANDES, André Luiz et al. Estudo de Viabilidade Municipal. Curitiba: Tribunal de Contas do Estado do Paraná, 2015. Disponível em: <https://www1.tce.pr.gov.br/multimidia/2017/1/pdf/00308470.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2019.

Links de notícias sobre o tema

https://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2019/05/22/centenas-de-municipios-naoconseguem-se-manter-com-recursos-proprios.ghtml ( Reportagem Jornal da Globo sobre município piauiense)

https://globoplay.globo.com/v/7314292/ ( Reportagem Fantástico discutindo a criação de municípios)

https://www.youtube.com/watch?v=Th7Cqhv7qV4 e https://www.youtube.com/watch?v=pJNI7pU5xRs ( Seminário TCE/SC sobre o Federalismo e o Papel dos municípios , abril 2019.

Link Apresentação sobre o tema

https://docs.google.com/presentation/d/19zKJWvqdSQToN34e9qh3v-umgccOb6J-yAFaWRfqo0E/edit?usp=sharing

*Texto elaborado pelos acadêmicos Lucas Garcez (lucascgarcez@gmail.com) e Thiago Duarte (thiagosduarte@gmail.com), no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2019.