Por Luisa Botelho Matte, Marina Hinterholz Lauschner e Bruna Luiza Gama Correia *
A enxurrada que ocorreu na última semana do mês de janeiro em Florianópolis atingiu moradores do bairro da Lagoa da Conceição. Na manhã do dia 25 de janeiro, houve o rompimento de uma lagoa artificial de infiltração que recebe efluente tratado da Estação de Tratamento de Esgotos da região. Segundo a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), responsável pelo serviço, a grande quantidade de água da chuva naqueles dias provocou o rompimento da estrutura.
As consequências foram casas inundadas, carros arrastados e moradores que precisaram ser resgatados por botes do Corpo de Bombeiros. A força e a intensidade da água foram significativas, como mostra a Figura 1. A principal via do bairro, a Avenida das Rendeiras, foi interditada. Com o rompimento, o órgão hoje trabalha na recolocação de tubulações e de bombas danificadas pelas fortes chuvas para normalizar o sistema. Conforme a Casan, não há risco sanitário, já que a água é tratada.
Figura 1 – Carros atingidos por vazamento na Lagoa da Conceição.
Devido ao ocorrido, a Casan foi acusada por crime de poluição ambiental, após o rompimento do lago artificial. Um inquérito foi aberto pela Polícia Civil para investigar os motivos que provocaram o ocorrido, além dos danos ambientais causados na região, como a fauna marinha que foi afetada. De acordo com a delegada Beatriz Ribas Dias dos Reis, que está à frente da Delegacia de Repressão a Crimes Ambientais (DRCA), não restam dúvidas sobre o crime de poluição. O inquérito, além de envolver a esfera municipal – devido aos danos causados no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, que concentra um dos ambientes mais frágeis da Ilha de Santa Catarina, a restinga – envolve ainda a esfera federal, porque também atingiu a água do mar.
Cabe ressaltar que, conforme o art. 54 da Lei nº 9.605 de 1998, a qual dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, caracteriza-se como “crime ambiental causar poluição de qualquer natureza em níveis que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora” (BRASIL, 1998).
Nesse sentido, o crime pode ser doloso, em que há intenção de causar o resultado, e culposo, quando o agente influenciou a causa ao resultado por imprudência ou negligência.
Conforme o § 2º, V, do mesmo artigo, se o crime “ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos”, a pena será reclusão, de um a cinco anos (BRASIL, 1998).
Isso exposto, há indícios que a inundação da Lagoa é fruto da negligência de atuação da Casan frente às inconformidades já citadas, enquadrando-se assim, como crime ambiental. Ademais, conforme os relatos dos moradores da Lagoa da Conceição sobre o cheiro de esgoto após a inundação, nos faz refletir sobre qual o nível de tratamento que a água da estação de evapoinfiltração estava recebendo.
A empresa pública também foi multada pela Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) no valor de R$ 15 milhões. A Casan informou, ainda, que a auditoria interna, aberta para apurar o que provocou o rompimento da lagoa artificial, está em andamento e que “a equipe técnica da Casan está levantando todas as informações possíveis e avaliando todas as hipóteses” (BATTISTELLA, 2021).
O Ministério Público Federal em Santa Catarina (MPF-SC) também instaurou inquérito civil para apurar as responsabilidades pelo rompimento ocorrido. O objetivo é verificar se a manutenção da estação estava em dia, bem como identificar o plano de risco do sistema de esgotamento sanitário, responsabilidades e formas de reparação à sociedade e ao meio ambiente.
Como medida compensatória, a Casan lançou um edital público referente ao processo de indenização. Uma das medidas emergenciais foi um pagamento no valor de R$ 10 mil para os moradores atingidos. No entanto, o Movimento dos Atingidos por Barragens denuncia que esse edital não é legítimo, pois foi elaborado sem participação dos atingidos e prevê apenas o ressarcimento patrimonial, excluindo direitos os danos morais, psicológicos e ambientais, entre outros. A comunidade local, reunida por meio de uma comissão de atingidos, elaborou um documento com uma série de reivindicações que foram apresentadas à Casan e ao Governo do Estado.
Além disso, uma comissão na Câmara de Vereadores foi criada para acompanhar o processo e fazer a negociação entre os moradores e a empresa. A Câmara, que por duas semanas intermediou as negociações com moradores da região atingida, reconheceu os esforços da Casan para recuperar os danos causados com o deslizamento da lagoa de evapoinfiltração (LEI).
Figura 2 – Manifestação realizada por moradores na Lagoa da Conceição, em Florianópolis.
Ainda em março de 2021, a Casan segue apurando o que ocorreu e tem se disponibilizado no atendimento às recomendações e investigações dos órgãos fiscalizadores como o MPF e a Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis (Floram).
Em entrevista à CBN Diário, o presidente da Associação Catarinense de Engenheiros Sanitaristas e Ambientais (ACESA), Vinicius Ragghianti, afirmou que o modelo de estação de tratamento localizado na Lagoa da Conceição deve ser revisto. Ele também disse que, apesar de ter licença ambiental, a estação não é projetada para se comportar como uma barragem. De fato, a região onde está localizada é um local muito próximo às dunas e às residências dos moradores.
As duas unidades de tratamento de esgoto da Casan na Lagoa da Conceição estão em área de preservação permanente, e utilizam tratamento não adequado em relação à lagoa artificial de infiltração que recebe seus efluentes tratados. É preciso pensar modelos de saneamento ecológico que combinem o tratamento secundário com outros mais apropriados para tratar o nitrogênio e o fósforo, que são elementos que contribuem com o processo de eutrofização. Ainda, é constatado que a lagoa de evapoinfiltração que está na região das dunas não possuía uma obra de engenharia, logo não há um projeto técnico daquela obra, e, consequentemente, não há um plano emergencial de rompimento de barragem. Esse fator também é algo que dificulta hoje a negociação do processo de indenização com os moradores atingidos pelo rompimento da barragem.
Figura 3 – Rompimento da lagoa artificial em Florianópolis.
É importante destacar que a própria Casan já identificava em 2017 a necessidade de se estudar alternativas para a disposição final do esgoto tratado na região (CASAN, 2017). Em processo do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE-SC), está registrada a constatação de valores elevados de nutrientes inorgânicos, acima dos valores máximos permitidos pela legislação, ou a eventual presença de patógenos como aqueles relacionados a hepatite no esgoto tratado (SCHLINDWEIN et al., 2010). O que reforça a preocupação sobre as consequências da recente tragédia.
Portanto, é importante que eventos como esse sirvam de alerta para a necessidade urgente de uma gestão eficiente da bacia hidrográfica da Lagoa da Conceição por parte dos governantes, com a participação ativa da comunidade local.
Ainda, indagamos sobre a multa que a Casan – empresa pública do estado de Santa Catarina, que possui concessão do município de Florianópolis para atuar na área de saneamento básico – recebeu, no valor de R$15 milhões pela Prefeitura Municipal de Florianópolis: quem paga essa multa? Tendo em vista que, sendo uma empresa pública, o Estado é o principal acionista, seríamos nós, os contribuintes, que acabaríamos tendo que arcar com esse valor? Para isso ainda não há uma resposta. Nesse sentido, observamos que uma área em que há muito a ampliar transparência e a accountability é a de execução de multas e demais punições/acordos ambientais, pois muitas acabam não sendo aplicadas.
De acordo com dados do Banco de Dados Abertos do Ibama, até 20 de fevereiro de 2020, apenas 25.933 das 59.239 multas aplicadas na Região Sul, composta pelos estados: Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, foram quitadas. Esse número representa 43,7% do total.
Para Clóvis Borges, diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), ao ser questionado pelo (o)eco, defende que a inefetividade de cobrança das multas é histórica. Segundo ele, “(…) os órgãos ambientais recebem historicamente muita pressão política. Mesmo com a emissão de multas, sabe-se que elas não são pagas. As empresas entram com recurso judicial e, por pressão política, os órgãos não fazem o encaminhamento da sequência dos processos, que caducam”.
Outra forma pela qual o Ibama deixa de arrecadar é com as multas que são, posteriormente, canceladas. De modo geral, as penalizações são anuladas pois o órgão estabeleceu que elas não deveriam ter sido aplicadas. Desde 1980, o número chegou perto de 36 mil multas canceladas, somando R$ 1,9 bilhão.
No final das contas, o fator alarmante é: os pequenos infratores são os maiores pagadores de multas. Enquanto isso, as sanções aos grandes crimes ambientais acabam canceladas ou são beneficiadas por longos processos e disputas judiciais, que adiam o pagamento.
Outro ponto para analisarmos a governança pública é que no início de 2019, após ser realizada uma batimetria na lagoa, os profissionais da Casan perceberam grande acúmulo de sedimento no fundo da lagoa artificial, e solicitaram à PMF, via Floram, autorização para lançar o efluente tratado em área vizinha, visando a limpeza e manutenção da lagoa em operação. Porém, a Floram/PMF não concedeu autorização à Casan para realizar esse serviço.
Nesse sentido, a governança pública presente nesse assunto sério, que envolve aspectos ambientais, sociais e econômicos, mostra-se fragilizada em vários aspectos. Entre eles, a falta de clareza sobre responsabilidades e papéis dos vários órgãos envolvidos, falta de coordenação entre os mesmos, baixo grau de participação cidadã e alternativas de saneamento construídas sem perspectiva de longo prazo, baseada em ideologias ou visões políticas nem sempre fundamentadas em informações e conhecimentos técnicos. O que vemos, na prática, são prejuízos incalculáveis que atravessam os meios econômicos, sociais, patrimoniais e ambientais. A incapacidade dos órgãos de controle, comunidade e poder público de chegarem a um consenso e construir uma agenda mínima com convergência em pontos vitais e combinação de modelos de saneamento é que trava a solução para esse tipo de problema crucial como saneamento básico.
Como a governança do saneamento envolve diversos atores, cada um deles teria seus papéis e responsabilidades no “sistema de accountability“. A coordenação entre esses vários envolvidos, e o efetivo exercício de seus papéis, por meio dos diversos instrumentos de regulação, planejamento e monitoramento, é necessária para que a accountability seja também efetiva.
Devemos lembrar que saneamento é garantir o equilíbrio ambiental e, sobretudo, garantir a qualidade de vida. No caso do desastre ambiental sem precedentes ocorrido na Lagoa da Conceição, suas consequências ainda se sucedem, juntamente às aprendizagens e eventuais mudanças sobre a percepção do assunto, que podem ou não se concretizar.
* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Luisa Botelho Matte, Marina Hinterholz Lauschner e Bruna Luiza Gama Correia, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.
REFERÊNCIAS
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