Programas de compliance contribuem para o combate a fraudes?

Por Eddye Maikel Rozar Goulart, Nathália Campos de Souza e Nathália Malty Dias *

Nos últimos anos, algumas legislações têm emergido no Brasil com intuito de coagir ou incentivar órgãos e entidades da administração pública a adotarem mecanismos de integridade, a exemplo dos programas de compliance, como uma alternativa para prevenir e mitigar a corrupção. Nesse texto, sob a perspectiva do Triângulo de Cressey, busca-se analisar se os programas de compliance contribuem para o combate à fraudes.

Fraude

O dicionário Michaelis (1998) define fraude como “ato de má-fé que tem por objetivo fraudar ou ludibriar alguém”. Mais especificamente, Costa e Wood Jr. (2012, p. 465) evidenciam que a fraude corporativa ocorre “quando os agentes fraudadores identificam uma oportunidade, tomam sucessivas decisões visando obter vantagens ilícitas e gerenciam a mise-en-scéne para ocultar tais decisões e seus efeitos”. 

Sob esse entendimento, o Tribunal de Contas da União – TCU (2018, p. 19) considera fraude e corrupção como sinônimos, que expressam “tanto o abuso de poder quanto o falseamento ou ocultação da verdade, com vistas a enganar terceiros, sendo ambos para obter vantagem indevida para si ou para outrem”. Segundo Almeida e Alves (2014), na apuração de fraudes, constantemente, é possível identificar um dos três elementos do Triângulo de Cressey.

Triângulo da Fraude

O Triângulo da Fraude, também conhecido como o Triângulo de Cressey, foi elaborado por Donald Cressey em 1953, quando entrevistou mais de 120 encarcerados por crimes de colarinho branco nos Estados Unidos. Através dessa pesquisa, o sociólogo identificou três elementos como desencadeadores de fraudes: necessidade, oportunidade e racionalização.

A necessidade, gatilho desse processo, constitui-se de um problema que o transgressor considera não-compartilhável, como “medo de perder a ocupação atual, o alcance ou manutenção de um dado padrão de vida e problemas pessoais” (MACHADO; GARTNER, 2017, p. 111). Esse pilar do triângulo considera o contexto em que o fraudador está inserido, dependendo da sua percepção individual do problema (SANTOS, 2011), e tornando-se um estímulo ao delito quando a fraude é percebida como a única possibilidade de resolvê-lo (SCHUCHTER; LEVI, 2013).

Então, o indivíduo analisa a vulnerabilidade do objeto ou recurso cuja obtenção almeja, bem como os meios e capacidade para execução da fraude (SANTOS, 2011). Em seguida, utiliza sua posição de confiança, seu conhecimento e a oportunidade para cometê-la (MACHADO; GARTNER, 2017; SCHUCHTER; LEVI, 2013). O Referencial de Combate à Fraude e Corrupção do TCU (2018) indica que a oportunidade está aliada à percepção do baixo risco de ser pego e define o método que será utilizado pelo fraudador, surgindo em um contexto de controles ineficazes e falhas na governança. 

Por fim, o indivíduo racionaliza seu ato, buscando justificá-lo como aceitável ou neutro, no lugar de criminoso ou impróprio, considerando sua percepção moral do dilema ético enfrentado (SANTOS, 2011; SCHUCHTER; LEVI, 2013). Usualmente, “os transgressores se veem como pessoas comuns e honestas que são pegas em más circunstâncias” (TCU, 2018, p. 20).

Com base no Triângulo da Fraude, Albretch, Howe e Romney desenvolveram, em 1984, o conceito da Escala de Fraude. De acordo com Santos (2011), a escala mensura a potencialidade de fraude utilizando três indicadores: problemas imediatos que o indivíduo está sofrendo no meio em que está inserido, falhas de controle interno e integridade pessoal. Monitorando os riscos de desconformidade com leis e regulamentos (TCU, 2018), o compliance consiste em um instrumento para mitigar e prevenir fraudes.

Compliance

O termo compliance é derivado do verbo inglês to comply, que significa agir de acordo, ou ainda em conformidade com leis e regulamentos internos ou externos (LIRA, 2014). Cabe informar que a literatura não é clara quanto às diferenças entre os termos “compliance”, “integridade” e “conformidade”. Para alguns autores são considerados como alternativas de tradução da nomenclatura estrangeira, e para outros como designações mais específicas do tema. Para esta discussão, o entendimento adotado será o mesmo do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (2018), que os reconhece como sinônimos.

No Brasil, o primeiro avanço legal no sentido de institucionalização do compliance foi a promulgação da Lei 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção Brasileira já que, como apontam Gabardo e Castella (2015), viabilizou a punição de pessoas jurídicas, bem como seus dirigentes, administradores e outras pessoas a ela vinculadas por atos corruptos praticados contra a Administração Pública – ou seja, tornando-as accountable.

Além disso, outro acréscimo da legislação foi considerar como atenuador das sanções cabíveis “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (BRASIL, 2013) – onde entram os programas de compliance.

Programas de compliance

Segundo definição do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE (2016, p. 9), programas de compliance constituem-se de “um conjunto de medidas internas que permitem prevenir ou minimizar os riscos de violação às leis decorrentes de atividade praticada por um agente econômico e de qualquer um de seus sócios ou colaboradores”. 

Em 2019, passou a vigorar a Lei 17.715/2019, que instituiu a obrigatoriedade da adoção de um Programa de Integridade e Compliance em todos os órgãos e entidades governamentais do Estado de Santa Catarina. Sua implementação, no âmbito do Executivo, vem sendo coordenada pela Secretaria Executiva de Integridade e Governança, SIG. Na redação do dispositivo legal, Programa de Integridade e Compliance é definido como “o conjunto de mecanismos e procedimentos internos de prevenção, detecção e correção de práticas de corrupção, fraudes, subornos, irregularidades e desvios éticos e de conduta” (SANTA CATARINA, 2019).

Programas de compliance como mecanismos de controle de fraudes

Nas políticas de combate à fraude, a adoção de programas de compliance tem se mostrado relevante (CUEVA, 2017), fomentando a conformidade da ação organizacional à legislação. Dentre as 70 Novas Medidas Contra a Corrupção estabelecidas pela Transparência Internacional – Brasil, três sugerem a adoção de mecanismos de governança e compliance (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL, 2018).

De acordo com Schramm (2018, p. 205), o compliance:

[…] realiza as suas atividades de forma preventiva, contínua e permanente, sendo responsável por verificar e assegurar, dia após dia, que as diversas áreas e unidades da organização conduzem suas atividades em conformidade com a legislação e regulamentação aplicável ao negócio, observando as normas e procedimentos internos destinados à prevenção e controle de riscos. Além disso, o compliance é responsável pela manutenção de canais de comunicação internos, pela realização de treinamentos periódicos e pela constante conscientização acerca da necessidade de adoção de posturas éticas.

Por sua vez, o TCU (2018, p. 19-20) considera como fatores relacionados com a percepção de oportunidade, aresta do Triângulo da Fraude, “a assunção de que a organização não está ciente; o fato de os servidores não serem verificados periodicamente quanto ao cumprimento das políticas; a crença de que ninguém se importa nem vai considerar a transgressão grave”.

Assim, fica nítido que os programas de compliance tem o potencial de contribuir para o enfrentamento da fraude, levando em conta a convicção de que, mesmo havendo extrema necessidade, sem a oportunidade e com desincentivos à racionalização, a fraude não ocorrerá (TCU, 2018). 

Contudo, para que esse objetivo seja efetivamente alcançado, é necessário que a implementação de programas de compliance seja amparada por esforços sistemáticos que garantam sua aplicação prática. Nesse sentido, cabe ressaltar que a empresa ou entidade não precisa necessariamente designar uma área responsável por essa gestão, já que independentemente disso cada colaborador deve gerir os riscos inerentes às suas atividades e agir em conformidade com os regulamentos no dia a dia.

* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Eddye Maikel Rozar Goulart, Nathália Campos de Souza e Nathália Malty Dias, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.

REFERÊNCIAS

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