Por Alana Santiago, Alessandra Córdova e Yasmin Zin Vaucher*
As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) ocupam um papel relevante na dinâmica de controle político e institucional do Estado brasileiro. Previstas no artigo 58, §3º da Constituição Federal, essas comissões são dotadas de poderes como os de convocar autoridades, requisitar documentos e realizar diligências para investigar possíveis irregularidades em órgãos públicos. Embora sejam instrumentos formais de fiscalização, sua atuação nem sempre resulta em responsabilização, o que levanta um questionamento recorrente na opinião pública: afinal, as CPIs acabam em pizza?
A CPI da Pandemia, instaurada em 27 de abril de 2021 pelo Senado Federal, é um exemplo emblemático do potencial e das contradições desse mecanismo de accountability. A comissão teve como objetivo investigar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da COVID-19 no Brasil. Em seis meses de atuação, realizou audiências públicas transmitidas ao vivo, colheu depoimentos de autoridades e reuniu milhares de documentos que embasaram um extenso relatório final aprovado em outubro daquele mesmo ano. O documento recomendou o indiciamento de 78 pessoas e duas empresas, incluindo o então presidente Jair Bolsonaro, por crimes como epidemia com resultado de morte, infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, prevaricação e crimes contra a humanidade.
Figura 1 – Senadores durante sessão da CPI da Covid no Senado Federal (2022)
Fonte: RODRIGUES, Edison. Senadores em reunião na CPI da Covid. [fotografia]. UOL Notícias, 2022.
O relatório apontou falhas graves na condução da política sanitária nacional. Entre os destaques estão a negligência na aquisição de vacinas, mesmo diante de ofertas antecipadas de laboratórios como a Pfizer; a promoção de tratamentos ineficazes, como a cloroquina, por meio de um “gabinete paralelo” que influenciava decisões do Ministério da Saúde; a omissão diante da crise do oxigênio em Manaus; suspeitas de corrupção na negociação da vacina Covaxin; e a propagação deliberada de desinformação por parte de autoridades. Esses fatos foram amplamente divulgados e discutidos pela população, o que contribuiu para o fortalecimento de uma cultura de escrutínio público e participação cidadã.
Entretanto, a CPI também escancarou os limites institucionais e culturais da accountability no Brasil. Mesmo com a contundência das denúncias, o andamento das responsabilizações esbarrou em obstáculos estruturais como a politização do processo, a lentidão do sistema judicial e a ausência de mecanismos que garantam a implementação das recomendações feitas pela comissão. Além disso, a percepção social de que “tudo acaba em pizza” segue alimentada por casos anteriores em que as CPIs terminaram sem consequências efetivas, comprometendo a confiança da sociedade nesses instrumentos.
Esse cenário reforça a tese de que o impacto de uma CPI não está garantido apenas por sua formalização, mas pelas condições políticas e institucionais que a sustentam. No caso da CPI da Pandemia, a visibilidade e a mobilização social criaram um ambiente propício à responsabilização política, administrativa e criminal, mas a efetividade depende da atuação coordenada de órgãos como o Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal e, sobretudo, da vigilância contínua da sociedade civil.
De acordo com Abrucio e Loureiro (2005), a accountability em regimes democráticos pode ser classificada em três dimensões: eleitoral, institucional e intertemporal. A CPI da Pandemia se insere na categoria da accountability institucional horizontal, uma vez que representou o Legislativo fiscalizando diretamente o Executivo. A experiência também dialoga com a ideia de coprodução do controle, pois a participação da sociedade, por meio da divulgação de informações, envio de denúncias e acompanhamento dos trabalhos, foi essencial para instruir e legitimar o processo. A transparência e a deliberação pública não apenas fortaleceram a investigação, como também ampliaram sua função pedagógica para a democracia brasileira.
Ainda assim, é válido refletir se as CPIs, de fato, geram transformações concretas ou se apenas mudam as páginas sem alterar o conteúdo do livro. A existência de denúncias contundentes e de um relatório robusto, como no caso da pandemia, não garante automaticamente justiça ou mudança. É necessário compreender sob quais condições uma CPI gera crédito ou descrédito para as instituições políticas, e isso passa por estudos mais profundos sobre a taxa de reeleição dos investigados, os efeitos eleitorais e judiciais das denúncias, e a capacidade do sistema político de responder às demandas da sociedade.
Figura 2 – Integrantes da CPI da Covid-19 pedem providências ao MP e MPF no Rio
Fonte: FRAZÃO, Fernando (2021)
A CPI da Pandemia, embora marcada por controvérsias, tensões políticas e incertezas quanto à responsabilização dos envolvidos, também pode ser interpretada como um esforço concreto de produção de um bem público: a própria democracia. Ao tornar visíveis as falhas na gestão da pandemia, exigir explicações do poder Executivo e promover o debate público, a Comissão contribuiu para reforçar pilares como a transparência, o controle institucional e a participação cidadã.
Ainda que seus efeitos práticos, como indiciamentos e mudanças legislativas, dependam de outros atores e da pressão contínua da sociedade, o legado simbólico e institucional da CPI deve ser reconhecido. Ela mobilizou a sociedade, expôs os bastidores da administração pública e colocou a saúde coletiva como pauta central de fiscalização.
Se é verdade que muitas CPIs no Brasil terminam frustrando expectativas, também é possível afirmar que, neste caso, houve a entrega de algo mais do que apenas pizza: houve, ainda que com gosto agridoce, a entrega de uma sobremesa democrática. Essa sobremesa é representada pelo fortalecimento da consciência coletiva de que o Estado deve prestar contas de seus atos, especialmente quando vidas estão em jogo. Produzir esse tipo de bem público, intangível, mas essencial, é um resultado que, por si só, merece ser valorizado.
*Texto elaborado por Alana Santiago, Alessandra Córdova e Yasmin Zin, estudantes de graduação em administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2025.
Referências
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