Coprodução da informação em saúde: os exemplos da ACBG Brasil e da Wigtownshire Women and Cancer

Por Mariana Amorim, Débora Baldissera e Ingrid Marques*

A coprodução de informações em saúde pública, ou seja, o engajamento mútuo de profissionais e cidadãos na produção de informações relevantes a respeito de uma doença, sua prevenção e tratamento, pode contribuir para prevenir o adoecimento, facilitar o acesso a tratamento e a direitos, bem como aprimorar a relação entre profissionais da saúde, pacientes e familiares.

Vejamos como isso acontece, com base na experiência de duas organizações que atuam na área de câncer, no Brasil e na Escócia.

A Associação Brasileira de Câncer de Cabeça e Pescoço (ACBG) é uma organização da sociedade civil, de direito privado e sem fins lucrativos que trabalha em prol das pessoas portadoras do câncer de cabeça e pescoço e seus familiares em todo o Brasil. Foi criada em 2015 por pacientes  portadores do câncer, seus familiares e profissionais da saúde. A missão da ACBG Brasil é “mobilizar a sociedade para que pacientes e portadores da doença tenham acesso a um tratamento integral e de qualidade e conscientizá-los para que tenham acesso aos seus direitos.”

Para alcançar sua missão, a organização definiu três  eixos de ação: Advocacy, Inclusão e Informação. O eixo Advocacy trabalha em defesa de pautas de interesse aos pacientes, portadores e profissionais da saúde, garantindo a atenção integral à saúde dos portadores, com a criação de políticas públicas. Em uma das suas conquistas, a ACBG, depois de anos de luta, conseguiu junto ao Ministério da Saúde a inclusão da laringe eletrônica e o reajuste do valor da prótese traqueosofágica na tabela do SUS. Sem essa conquista, os pacientes teriam que desembolsar, no mínimo, 2.000 reais para cada aparelho.

No eixo Inclusão, são trabalhados projetos que visam o acolhimento e a integração dos pacientes na sociedade e trabalham com a implementação de projetos que devolvem a dignidade àqueles que precisam de reabilitação. A associação dá suporte a sete Grupos de Acolhimento a Pacientes, GAL’s, e dois corais, com o programa Cantarolar.

O eixo Informação trabalha na execução e no apoio de campanhas de conscientização, organização de eventos, palestras de prevenção em organizações e escolas e na geração de conteúdos para mídias sociais.

Dentro do eixo Informação, a ACBG participa de diversas ações, envolvendo variados parceiros, como a Campanha Nacional da Prevenção do Câncer de Cabeça e Pescoço, a Campanha do Dia Mundial da Voz, e a Campanha MakeSense.

A Campanha Nacional da Prevenção do Câncer de Cabeça e Pescoço é também conhecida como Julho Verde (Figura 1), e tem o objetivo de conscientizar a população sobre a importância do autocuidado e dos primeiros sinais da doença. Na Campanha de 2021, com a pandemia de COVID-19, a associação teve que priorizar o on-line, então fez a distribuição de diversos cards informativos, vídeos com depoimentos de pacientes e informações compartilhadas por profissionais da saúde, realizou 7 audiências públicas com o núcleo de Advocacy e 8 lives informativas. A ACBG também fez a distribuição de sorvetes com propriedades nutricionais aos pacientes em quimioterapia, tornou 31 iluminações públicas da cor verde, lançou e distribuiu carteirinhas de identificação de pacientes com câncer de cabeça e pescoço e mais de 200 envios de materiais de campanha.

Figura 1- Campanha Julho Verde ACBG

Gabriel Marmentini, cofundador e diretor executivo da ACBG e filho de uma sobrevivente do câncer de laringe, explica que a motivação para o engajamento inicial da Associação veio da dificuldade de encontrar informações e do sentimento de desamparo quando sua mãe foi diagnosticada com a doença:

 “Fiquei me perguntando o quão mais difícil seria uma situação como essa para pessoas que convivem diariamente com diversas vulnerabilidades. Por isso a ideia de criar uma organização para incidir diretamente no tema, atuando para melhorar as políticas públicas no campo do câncer de cabeça e pescoço – grupo de cânceres onde está classificado o câncer de laringe -, incluir nossos pacientes e portadores na sociedade e disseminar informações para o maior número de pessoas, aumentando as taxas de diagnóstico precoce e, consequentemente, diminuindo as taxas de óbito e as sequelas que prejudicam a qualidade de vida após o câncer”.

A coprodução de informação está presente na ACBG desde o começo de sua história, e é possível destacar que o envolvimento de usuários e da comunidade mudam os modos como os profissionais da saúde atuam.

“Para os profissionais que preferem o caminho do amor – com mais empatia e conexão com os pacientes -, cabe dizer que também acabam aprendendo muito, pois a troca com o público-alvo em questão é extremamente rica”, destaca Gabriel.

“Há um conhecimento profundo sobre várias questões de vida, não apenas sobre a doença, que muitas vezes um determinado profissional não teve acesso anteriormente. Essa é a beleza da coprodução, pois valoriza qualquer tipo de conhecimento e dá voz para todos e todas”, complementa o diretor executivo da ACBG.

Wigtownshire Women and Cancer é um grupo voluntário sem fins lucrativos formado por 9 mulheres capacitadas da cidade de Wigtownshire na Escócia, que fornecem informações, sinalizações e dão voz a mulheres com câncer.

Figura 2 – Wigtownshire Women and Cancer

Por meio de um grupo fechado no Facebook com mais de 195 membros, ocorre uma troca de informações e esclarecimento de dúvidas. Wigtownshire Women and Cancer tem o objetivo de melhorar o bem-estar das pessoas acometidas pela doença, antes ou depois do tratamento, para preencher lacunas em relação ao compartilhamento de informações e disponibilidade de serviços disponíveis. O grupo faz encontros presenciais com a presença de um palestrante do National Health Service para tirar dúvidas sobre assuntos mais técnicos.

O último grande evento do WWAC foi o The Big Fashion Show, que ocorreu um desfile de roupas de lojas apoiadoras com modelos acometidos pelo câncer. Esse evento ocorreu por conta da parceria entre população e empresas, mais de 6.500 Libras foram arrecadadas.

Essas duas organizações são bastante diferentes, mas têm o mesmo objetivo: contribuir na produção e difusão de informações que muitas vezes não são fornecidas pelo poder público às pessoas que precisam delas. É necessário que haja cada vez mais informações qualificadas e conscientização sobre o câncer disponível para a população e, nesse cenário, a coprodução da informação tem um papel importante.

A ACBG Brasil e a Wigtownshire Women and Cancer são exemplos de associações que cumprem seu papel junto à sociedade, buscando fazer a diferença nas políticas públicas e na sociedade em geral. A coprodução, em casos como esses, não só contribui para o serviço de prestar informação à população, como contribui para salvar vidas e melhorar a qualidade de vida a tantos sobreviventes de câncer.

É importante que administradores públicos e profissionais da saúde entendam a importância dessas organizações e atuem para que elas continuamente possam se desenvolver e seguir fazendo diferença, para melhor, na sociedade.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Mariana Amorim, Débora Baldissera e Ingrid Marques no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no segundo semestre de 2021.

Referências

ACBG. Associação Brasileira de Câncer de Cabeça e Pescoço. 2020. Disponível em: https://acbgbrasil.org/ . Acesso em: 22 fev. 2022.

HALLIDAY, Penny. Wigtownshire Women and Cancer: A new Governance International Co-Production Star Initiative powered by Courage, Compassion and Tea Parties! 2019. Disponível em: https://www.govint.org/good-practice/case-studies/wigtownshire-women-and-cancer/ . Acesso em: 22 fev. 2022.

SCHOMMER, P. C., ROCHA, A. C., SPANIOL, E. L., DAHMER, J., & SOUSA, A. D. de. (2015). Accountability, coprodução da informação e do controle: observatórios sociais e suas relações com órgãos governamentais. Revista de Administração Pública, 49(6), 1375-1400. Recuperado de https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/56590

Campanha Conexão e Suporte de Vidas em Tempos de Pandemia

Conheça e participe conosco.

O Projeto “Conexão e Suporte de Vidas em Tempos de Pandemia” tem por objetivo promover colaboração no sentido de minimizar alguns dos efeitos da pandemia de Covid-19, juntamente com hospitais públicos na Grande Florianópolis. 

A proposta da Campanha consiste em organizar a arrecadação de fundos para aquisição de tablets e roteadores de wifi para doação aos hospitais parceiros do projeto.

A iniciativa partiu de um grupo de estudantes da disciplina Governança e Redes de Coprodução, do Mestrado em Administração da Udesc Esag – Sueli Farias Kieling, André Luiz Caneparo Machado, Maxiliano de Oliveira  e  Luana Casagrande – ministrada no primeiro semestre de 2021 pela professora Paula Chies Schommer. A partir do contato com assistentes sociais e gestores de hospitais da Grande Florianópolis e da compreensão de alguns dos desafios trazidos pela pandemia, foram desenhadas e realizadas ações (mais detalhes aqui).

Os recursos arrecadados serão totalmente utilizados para a aquisição de dispositivos tecnológicos (tablets, roteadores e chips) aos hospitais. 

As doações de qualquer valor podem ser realizadas clicando no link da Vakinha. São várias as opções para pagamento, é fácil e rápido.

A prestação de contas acontecerá por este blog do Grupo de Pesquisa Politeia Udesc Esag e no site Vakinha online. 

Participe desta iniciativa conosco e faça parte dessa corrente de afeto, carinho, ação e conexão!! 

Campanha Conexão e Suporte de Vidas em Tempos de Pandemia 

Apoie essa ideia!!!

Os desafios da coprodução no período de pandemia: um relato sobre a experiência de trabalho com hospitais da Grande Florianópolis

Por Sueli Farias Kieling, André Luiz Caneparo Machado, Maxiliano de Oliveira e Luana Casagrande*

A pandemia do Covid-19 se apresenta como uma das maiores catástrofes sanitárias deste século, em que a humanidade se depara com desafios, problemas e sofrimentos extremamente complexos. As infecções e os agravamentos decorrentes da doença destroçaram milhares de famílias ao redor do mundo, e mesmo com o avanço da vacinação, passados um ano e 4 meses do início da pandemia no Brasil, os registros são de 555.512 óbitos no país até o início de agosto de 2021, sendo quase 18 mil no estado catarinense. Expressões como intubação, falta de oxigenação, lockdown, isolamento social e comorbidade tonaram-se corriqueiras nos telejornais e dentro das residências.

A alta transmissibilidade e a letalidade do vírus Covid-19 ocasionaram altos índices de hospitalização, culminando em colapso nos hospitais com falta de vagas, de materiais para o tratamento da doença, e levando os profissionais da saúde ao esgotamento físico e psicológico. 

Muita coisa mudou em ritmo acelerado: a ciência deu um passo gigante em pouco tempo, pois o mundo viu uma corrida pelo desenvolvimento de medicamentos que atenuassem os sintomas, tratassem os doentes, e pela tão necessária vacina, tudo em tempo recorde, conforme o zelo pela vida se mostrava urgente. Milhares de pessoas aprenderam a usar a tecnologia e de um dia para o outro passaram a trabalhar de suas próprias casas, quando possível. 

Por outro lado, diversas organizações, como escolas e comércios classificados como não essenciais precisaram fechar suas portas por semanas, de forma esporádica ou imprevista, seguindo dados de contaminação, óbitos e difíceis notícias diárias. Em meio a diversos dilemas, o desemprego e a fome alcançam patamares elevados, aumentando ainda mais o abismo social no país e no mundo. 

Diante das emergências decorrentes da pandemia e da piora nas estatísticas sociais, tornou-se mais evidente o trabalho de organizações da sociedade civil que trabalham com iniciativas de cunho social, realizando um trabalho de atendimento à populações mais vulneráveis, como o feito pelo Instituto Comunitário Grande Florianópolis (ICOM). Esta Instituição atua junto às comunidades de maneira a fortalecê-las, por meio de investimento social e atuação em rede com outras organizações comunitárias. 

Os reflexos negativos da pandemia, como os elevados números de hospitalizados, de complicações e óbitos, o medo do contágio e das possibilidades de agravamento decorrentes da doença se transformaram em sentimento comum a milhares de cidadãos. As empresas e instituições que retornaram ao trabalho/atendimento presencial, precisaram se adequar à nova realidade, com o uso de máscaras e outras medidas sanitárias necessárias, para proteção da própria saúde e dos demais. 

Nesse contexto, o isolamento social se apresentou, e ainda se mostra, como uma das medidas necessárias mais eficientes no combate à disseminação do vírus – as pessoas precisam manter o distanciamento ao máximo que for possível para evitar a disseminação. Isso trouxe reflexo imediato também para os pacientes hospitalizados, seja pela Covid-19 ou outras doenças, que necessitam se manter isolados, sem poder contar com o apoio e cuidado próximo de amigos e familiares nas unidades hospitalares, fragilizando-os ainda mais nesse momento tão difícil. Além disso, por conta dos reflexos da pandemia, muitos hospitalizados e/ou familiares perdiam sua fonte de renda, por vezes a única, fragilizando-os quanto a questões básicas de alimentação e higiene, segundo o relato de profissionais da assistência social de vários hospitais da Grande Florianópolis. 

Assim, o único meio de contato dos hospitalizados e seus familiares se dá por meio de dispositivos de tecnologia como tablets e aparelhos celulares dos hospitais, muitas vezes obsoletos e precários. É triste imaginar que esta é a forma que um paciente, acometido pela doença, pelo medo, pelas complicações de saúde, pode utilizar para se comunicar com um familiar antes de um procedimento de intubação, por exemplo; e, mais estarrecedor ainda, é pensar que talvez nem assim seja possível. 

Ter ciência dessa situação dentro dos hospitais da Grande Florianópolis, em contato direto, debate e levantamento de dados entre assistentes sociais e gestores hospitalares, e alunos e professora da disciplina Governança e Redes de Coprodução, do Mestrado Profissional em Administração da Udesc Esag, motivou o desenvolvimento de um projeto colaborativo que pudesse, de alguma forma, amenizar esses problemas de alimentação, higiene e comunicação. 

O Projeto denominado “Conexão e Suporte de Vidas em Tempos de Pandemia” foi idealizado pensando em trabalhar em algumas vertentes. Por intermédio das servidoras, assistentes sociais de grandes hospitais da Grande Florianópolis foi possível construir um canal de comunicação entre o ICOM e as associações sem fins lucrativos vinculadas aos hospitais; e nesse trabalho, o ICOM, por meio do Fundo de Impacto para a Justiça Social, Linha Emergencial Coronavírus, viabilizou a doação de alimentos e produtos de higiene como fraldas geriátricas a essas associações voluntárias, como ocorrido, por exemplo, com o Hospital Governador Celso Ramos. O projeto contempla também uma Campanha para arrecadar fundos para a aquisição e doação de dispositivos tecnológicos como tablets e roteadores de wifi para facilitação da comunicação entre pacientes hospitalizados e seus familiares

Esse projeto se apresentou no sentido de formar uma construção colaborativa de coprodução de serviços públicos, uma vez que se identifica essa necessidade de atendimento ao cidadão. Entretanto, aprende-se na prática que há diversos desafios na tentativa de construção de um trabalho de coprodução, de colaboração. Dificuldades como à maneira de mencionar o nome dos hospitais junto à Campanha, o que ratifica a credibilidade da ação e é fator relevante para a coprodução (por mais que tenha sido bem aceita pela gestão das instituições hospitalares, há impedimentos legais quanto à participação em unidades hospitalares na divulgação); no entendimento do fluxo operacional e legal quanto à doação para estes hospitais (pois há regramentos a serem seguidos, critérios que por vezes dificultam a concretização das ações). Também pode ser evidenciado a necessidade de controle social, em pensar o modo correto de acompanhamento e prestação de contas aos envolvidos quando da arrecadação, suscitando a governança pública. Diante de cada desafio, se buscou uma alternativa, e a Campanha foi lançada, esperando-se alcançar um bom volume de doações, cumprir seus objetivos e apresentar os resultados, neste mesmo canal( blog), nas próximas semanas.

Enfim, a pandemia, que ainda no início do segundo semestre de 2021 parece longe do fim, deixará um legado de tristeza, de sofrimento; mas também de aprendizados. E coproduzir, trabalhar em colaboração pode ser bastante desafiador, e mesmo que extremamente importante e necessária, exige credibilidade nas instituições, engajamento e participação das pessoas, e por fim, a devida prestação de contas.

Saiba mais sobre a Campanha e participe fazendo sua doação via Vakinha online.

*Texto elaborado por Sueli Farias Kieling, André Luiz Caneparo Machado, Maxiliano de Oliveira e Luana Casagrande, no âmbito da disciplina de mestrado Governança e Redes de Coprodução, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, na Udesc Esag, no primeiro semestre de 2021.

Coprodução do controle: a necessidade e a possibilidade de os Tribunais de Contas irem além na abertura de suas portas

Por Anna Clara Leite Pestana, Fabiano Domingos Bernardo e Renato Costa*

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública deve ser exercida pelo Poder Legislativo com o auxílio dos Tribunais de Contas, órgãos técnicos especializados, com autonomia orçamentária, administrativa e financeira e independência funcional em relação aos três Poderes da República. Dessa forma, fica a cargo do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, das Câmaras de Vereadores e do Sistema de Tribunais de Contas brasileiro, formado por 32 (trinta e dois) órgãos colegiados no país, o controle externo – de despesas e de receitas – do Estado e demais recursos a ele vinculados, mesmo que delegados a terceiros.

Embora com suas atribuições bem definidas no ordenamento jurídico brasileiro, as Cortes de Contas ainda são estruturas pouco conhecidas da República e têm sido questionadas por diversos setores da sociedade. Dentre os questionamentos, destaca-se a baixíssima abertura desses órgãos à participação dos cidadãos no planejamento e no exercício de suas atividades, fragilidade ainda mais evidente durante a pandemia da Covid-19.

Em vista disso, os Tribunais de Contas devem buscar novas formas de atuação, fundadas na comunicação e na articulação com o cidadão e demais atores que compõem a esfera pública, com vistas a proporcionar o exercício de um controle que, para além do caráter punitivo, privilegie a colaboração para o pleno e célere atendimento das demandas sociais.

Essa atuação conjunta entre o cidadão (usuário do serviço público), agentes privados e o poder público é denominada coprodução. A coprodução de bens e serviços públicos baseia-se em um engajamento mútuo e ativo entre governantes e cidadãos, individualmente ou por meio de organizações associativas ou econômicas, organizadas em parcerias ou redes, e com compartilhamento de responsabilidades e poder (SALM, 2014, p. 42). A coprodução tende a contribuir tanto para reduzir custos, gerar eficiência econômica na produção de bens e serviços públicos e permitir atendimento a diversos tipos de necessidades, dificilmente passíveis de serem contemplados por estratégias mais centralizadas ou orquestradas (perspectiva econômica), como para gerar participação cidadã, emancipação política, aprendizagem social e desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas (perspectiva política) (SCHOMMER et al., 2011).

A coprodução é uma forma de gerar sinergia a partir da atuação do poder público com o engajamento cidadão (OSTROM, 1996). Essa sinergia pode ser um estímulo para impulsionar a atuação do sistema de controle externo brasileiro, num contexto em que sinergia é considerada a ação coletiva de diversos agentes que buscam obter um desempenho melhor do que aquele demonstrado isoladamente.

Com relação à motivação do cidadão, a coprodução tem como fundamento a ideia de que o ser humano se realiza plenamente quando desenvolve suas múltiplas naturezas. Guerreiro Ramos (1989), quando tratava da multidimensionalidade do ser humano, observava que o cidadão sente a necessidade de participar da vida pública, fazer parte da sociedade, fazer valer o seu caráter político, algo favorecido em contextos democráticos. 

Nesse contexto, a abertura dos Tribunais de Contas aos cidadãos, aos agentes públicos e à iniciativa privada é capaz de trazer ganhos a todos os envolvidos. De início, mencione-se que a efetiva colaboração entre esses atores possibilitaria a coprodução de soluções para os desafios enfrentados pelos gestores públicos, resultando no fortalecimento do papel orientador, pedagógico e preventivo das Cortes de Contas, em mais segurança ao administrador público na tomada de decisão e no aprimoramento da prestação dos serviços à sociedade. Além disso, quando do exercício da função fiscalizadora, os Tribunais de Contas teriam o auxílio do cidadão, que, por estar mais próximo da prestação do serviço público, é capaz de identificar de imediato falhas ou irregularidades que demandariam uma atuação coercitiva.

Na busca de uma atuação mais efetiva, envolvendo o cidadão no controle público, alguns Tribunais de Contas têm fomentado iniciativas em que se podem perceber elementos de coprodução. Exemplo disso foi a Auditoria Operacional do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE/SC) – processo n. RLA-15/00519054 – que visou analisar os investimentos em educação do Município de Anita Garibaldi: educação infantil e ensino fundamental, que além dos procedimentos legais e rotineiros da fiscalização em questão, realizou Audiência Pública em Anita Garibaldi com a participação de 164 munícipes (professores, pais de alunos, alunos, servidores, outros integrantes da comunidade e autoridades locais), debatendo a infraestrutura, transporte escolar, merenda escolar, valorização dos profissionais do magistério e gestão democrática da educação municipal.

Elementos que favorecem a coprodução também podem ser observados no Acordo de Cooperação Técnica nº 007/2019, relacionado ao projeto “TCE Educação” do TCE/SC, com o desenvolvimento de painéis eletrônicos de acompanhamento da execução dos planos estadual e municipais de educação a partir de uma base comum de dados para fins de gestão, controle e incentivo ao controle social. Participam do referido acordo, além da Corte de Contas catarinense, o Ministério Público estadual (MPSC), o Ministério Público de Contas (MPC/SC), a Assembleia Legislativa (Alesc), o Governo do Estado por meio da Secretaria da Educação, a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), a Federação Catarinense dos Municípios (Fecam), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação de Santa Catarina (Undime/SC), o Conselho Estadual de Educação (CEE/SC) e a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação em Santa Catarina (Uncme/SC).

Clique para ver detalhes do Concurso de Redação
http://servicos.tce.sc.gov.br/concurso/index.php

Ainda, cita-se o projeto “TCE/SC na Escola”, um concurso de redação/crônica, em parceria com a Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED/SC), aberto, desde 2010, aos estudantes do ensino médio da rede pública estadual, para aproximar os participantes à missão do TCE/SC.

Elementos de coprodução também podem ser observados na participação do TCE/SC em um projeto envolvendo o Fundo para Infância e Adolescência (FIA), denominado “Campanha Unificada FIA”, no qual diversos atores da sociedade civil e do setor público se uniram com o objetivo de impulsionar a captação de recursos para o fundo e de promover a concentração de esforços na execução da política pública voltada para a garantia dos direitos da criança e do adolescente. A sinergia resultante da participação entre cidadãos e poder público neste projeto proporcionou: aumentos consideráveis no volume de recursos captados de doações de pessoas físicas e jurídicas; alterações normativas para melhor operacionalização do fundo; e maior atenção dos gestores estaduais e municipais nos benefícios que a gestão proativa do FIA pode proporcionar para a sociedade.

Engenheiros do TCE-PR e funcionários da empresa Da ...
https://www1.tce.pr.gov.br/noticias/fiscalizacao-do-tce-pr-em-2019-dara-prioridade-a-6-areas-da-gestao-publica/6525/N

Outro exemplo, dessa vez no Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE/PR), consiste na promoção do envolvimento da sociedade no Programa Anual de Fiscalização (PAF). No planejamento para o exercício de 2019 e 2020, por intermédio de aplicação de questionários com cidadãos e observatórios sociais, o TCE/PR buscou captar as prioridades, demandas e expectativas sociais por fiscalização para embasar o controle externo e trazer resultados mais efetivos aos cidadãos paranaenses. As respostas foram consideradas conjuntamente com as avaliações dos técnicos do TCE/PR, permitindo elaborar um ranking de prioridades com base em vozes internas e externas ao órgão.

Por fim, cita-se o projeto “Rodas de Cidadania”, promovido pela Ouvidoria do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas (TCE/AM), desde 2019, por meio do qual são realizadas audiências públicas em municípios do Estado com vistas a informar os cidadãos sobre os canais de comunicação da ouvidoria e escutar as demandas da população, as quais, após análise da área técnica da Corte de Contas, são encaminhadas ao poder público para providências. Ao incentivar o papel proativo da ouvidoria, o programa teve o mérito de aproximar o Tribunal de Contas de uma parcela da população que, em geral, desconhece a atuação do órgão e, por falta de acesso à internet, não teria possibilidade de efetuar comunicações à ouvidoria.

Portanto, não é raro se deparar com esses ilustres desconhecidos denominados Tribunais de Contas abrindo suas portas à sociedade, por meio de capacitações, intercâmbios culturais, mídias virtuais e eventos dos mais diversos. Entretanto, verifica-se ainda incipiente a participação do cidadão no dia a dia das atividades dos Tribunais de Contas com discretos movimentos em prol da cidadania ativa.

Não há dúvidas, como guardiões do patrimônio público e defensores do interesse comum, as Cortes de Contas precisam avançar tornando-se órgãos de controle convidativos ao engajamento cidadão no planejamento e na execução de suas atividades. Além de suas portas abertas, há necessidade de tornar os usuários dos serviços públicos parte do controle e propiciar a participação na discussão dos rumos e de eventuais correções necessárias das políticas públicas.

*Texto elaborado por Anna Clara Leite Pestana, Fabiano Domingos Bernardo e Renato Costa, auditores fiscais de controle externo do TCE/SC e alunos especiais na disciplina Coprodução do Bem Público, ministrada pela professora Paula Chies Schommer e pela doutoranda Camila Pagani, no primeiro semestre de 2020, no Programa de Pós-Graduação em Administração do Centro de Ciências da Administração (Esag) da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

Referências

AMAZONAS. Tribunal de Contas do Estado do Amazonas. Rodas de Cidadania. Disponível em <https://ouvidoria.tce.am.gov.br/?page_id=1714>. Acesso em: 06 ago. 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 06 ago. 2020.

RAMOS, A. G. A Nova Ciência das Organizações:uma reconceitualização da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1989.

ROCHA, Diones Gomes da; ZUCCOLOTTO, Robson. TEIXEIRA, Marco Antonio Carvalho. Insulados e não democráticos: a (im)possibilidade do exercício da social accountability nos Tribunais de Contas brasileiros. Revista de Administração Pública, v. 54, n. 2, p. 201–219, 2020. Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122020000200201>. Acesso em 30 jul. 2020.

SALM, José Francisco. Coprodução de Bens e Serviços Públicos. In: BOULLOSA, Rosana de Freitas (org). Dicionário para a formação em gestão social. Salvador: CIAGS/UFBA, 2014. P. 42-44. Disponível em: <http://issuu.com/carlosvilmar/docs/e-book_dicionario_de_verbetes/46>. Acesso em: 06 ago. 2020.

PARANÁ. Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Fiscalização do TCE-PR em 2019 dará prioridade a 6 áreas da gestão pública. Disponível em: <https://www1.tce.pr.gov.br/noticias/fiscalizacao-do-tce-pr-em-2019-dara-prioridade-a-6-areas-da-gestao-publica/6525/N>.Acesso em: 06 ago. 2020.

SANTA CATARINA. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Comunidade de Anita Garibaldi participa de audiência pública do TCE/SC sobre a qualidade da educação no município. Disponível em: < http://www.tce.sc.gov.br/acom-icon-intranet-ouvidoria/noticia/24193/comunidade-de-anita-garibaldi-participa-de-audi%C3%AAncia>. Acesso em: 06 ago. 2020.

______. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Concurso estadual de redação: projeto “TCE/SC na Escola”. Disponível em: < http://servicos.tce.sc.gov.br/concurso/index.php>. Acesso em: 06 ago. 2020.

 ______. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Entidades assinam acordo de uso de base de dados comum para avaliar planos estadual e municipais de educação. Disponível em: <http://www.tce.sc.gov.br/intranet-acom-icon/noticia/49956/entidades-assinam-acordo-de-uso-de-base-de-dados-comum-para-avaliar>. Acesso em: 06 ago. 2020.

______. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Nova cartilha do TCE/SC orienta sobre a utilização dos recursos do Fundo da Infância e Adolescência. Disponível em: <http://www.tce.sc.gov.br/intranet-acom-ouvidoria/noticia/47858/nova-cartilha-do-tcesc-orienta-sobre-utiliza%C3%A7%C3%A3o-dos-recursos>. Acesso em: 06 ago. 2020.

OSTROM, Elinor. Crossing the great divide: coproduction, synergy and development. World Development, Vol. 24, No. 6, pp. 1073-1087.1996.

SCHOMMER, Paula C; ANDION, Carolina M.; PINHEIRO, Daniel M.; SPANIOL, Enio L.; SERAFIM, Mauricio. Coprodução e inovação social na esfera pública em debate no campo da gestão social. In: SCHOMMER, Paula Chies; BOULLOSA, Rosana de Freitas (orgs.). Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública. Florianópolis: UDESC Editora, 2011 (pgs. 31-70).

Colaboração como caminho para o enfrentamento da pandemia

*Por Artur Prandin, Antonio Felipe, Fernanda Carli e Flávia Antunes

A colaboração é uma atitude comum ao ser humano e, em especial, ao povo brasileiro que, em maior ou menor grau, lança mão dessa maneira de agir e de se relacionar na sua vida em sociedade. O momento atual, em razão da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus – COVID 19, reaviva a importância da cooperação como um caminho de sobrevivência. Assim, diferentes iniciativas desenvolvidas no Brasil têm evidenciado as parcerias como um mecanismo para enfrentamento dos problemas públicos, demonstrando a importância de modelos de gestão colaborativos para as questões da coletividade.

Sistema Único de Saúde – Wikipédia, a enciclopédia livre
Logo – Sistema Único de Saúde

Os hospitais de campanha, construídos para o enfrentamento da pandemia, são um exemplo disso. No Brasil, os serviços de saúde são prestados por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), de caráter público, e da rede privada, que abrange os planos de saúde e os demais atendimentos particulares. No contexto da pandemia, constatou-se que a estrutura existente não seria capaz de dar vazão à demanda por atendimentos de relativa complexidade, no que envolve atendimento médico e a disponibilidade de UTI.

De acordo com o levantamento da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), com dados apurados até 24 de abril de 2020, a rede privada possuia 4,9 unidades para cada 10 mil habitantes, o SUS possui apenas 1,4 unidades de UTI para o mesmo montante.

Sabedores da crise enfrentada e dos seus impactos, alguns atores da iniciativa privada resolveram financiar a construção de hospitais de campanha e oferecer estruturas prontas para atendimento assistencial, além de doar ou emprestar equipamentos para leitos de terapia intensiva e de contribuir para aumentar a capacidade de testes para Covid-19.

Tais ações buscam desafogar o sistema de saúde como um todo e ampliar a capacidade de cuidado dos pacientes infectados pelo novo vírus no país, o que ilustra um caso de governança colaborativa que envolve a parceria público-privado, no sentido das “colaborarquias”, na expressão cunhada pelo pesquisador Robert Agranof (2007).

Hospital de Campanha Lagoa-Barra, no Rio, já atendeu mais de 400 pacientes  de Covid-19 em um mês - Revista Cobertura
Hospital de Campanha Lagoa-Barra

No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a empresa privada Rede D’Or financiou o Hospital de Campanha Lagoa-Barra, arcando com R$ 25 milhões, junto com demais parceiros privados, como Bradesco Seguros, Lojas Americanas, Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) e Banco Safra que, contribuíram com o montante total de R$ 20 milhões, dividido em partes iguais. Destaca-se que o hospital de campanha foi feito para atender os pacientes do SUS, vítimas da Covid-19, e foi montado em um terreno do Governo do Estado, o que revela a relação público-privada que se estabeleceu para combater a pandemia.

https://www.idis.org.br/brasil-giving-report-2020/

Outra ilustração de colaboração é o aumento do volume de doações privadas para fins públicos. Conforme o Brasil Giving de 2020, um levantamento feito pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, observou-se que 78% dos entrevistados, de maneira privada, realizaram alguma atividade beneficente no ano passado (2019), seja doação em dinheiro ou por meio de voluntariado. Espera-se que este percentual aumente, pois a situação pandêmica estimulou, ao que tudo indica, esta prática também no âmbito das pessoas jurídicas (PJ). Segundo levantamento da Associação Brasileira de Captadores de Recursos, ABCR, até meados de julho foram doados aproximadamente R$ 6 bilhões para ações de combate à pandemia, quase a totalidade advindos de PJ, organizados em milhares de campanhas diversas.

Esta situação ilustra o termo coprovisão, utilizado por James Ferris (1984) para designar uma contribuição de recursos por ente privado para expandir os serviços públicos. Desenho este de participação do setor privado na área pública que, para autores como Robert Whelan e Robert Dupont (1986), implica risco de captura da instituição pública por grupos de interesse, o que requer cuidado.

Ambos os casos nos permitem reflexões sobre a solidariedade e a generosidade humana, que dialogam com as diferentes motivações para a coprodução de bens e serviços públicos, abordadas por diversos pesquisadores do tema, entre eles John Alford (2002).

Sob o viés das relações organizacionais e suas implicações nos serviços públicos, a situação suscita algumas questões: o incremento de ajuda ao próximo feito durante a pandemia, conforme valores informados acima, se tornará algo permanente para os vindouros como causa social?

A continuidade e articulação com outras ações é fundamental para que a doação seja, uma ferramenta de desenvolvimento social. Neste sentido, a visão de Marcia Kalvon Woods, presidente do conselho da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) e membro do comitê gestor do Movimento pela Cultura de Doação, de que “o Brasil só vai se desenvolver se olhar para o outro. É fundamental manter a população sensibilizada em relação às demandas que vêm ocorrendo, percebendo a diferença que pode fazer” são didáticas em relação ao assunto.

De outro lado, nota-se uma ausência de demonstração dos critérios de seleção das campanhas de doação, do material a ser entregue e do público-alvo e uma ausência de feedback dos executores da campanha para quem doou seus recursos. É raro nas páginas das campanhas de doação, a apresentação da entrega dos recursos às pessoas/instituições determinadas, tampouco uma breve análise sobre como a doação feita irá impactar a vida daquelas pessoas e do local.

Portanto, ainda que os processos participativos e democráticos continuem sendo uma grande aposta para enfrentamento dessa crise e que eles sejam apresentados como uma solução para os problemas públicos de natureza complexa, os casos citados ratificam a necessidade de se incrementar as questões de governança e coprodução do bem público – aqui entendido coprodução como a participação do usuário no processo de produção do bem/serviço público – com o senso que diz respeito à transparência nos critérios de escolha e ao resultado alcançado com as campanhas de doação.

A condição provocada pela pandemia torna oportuna a reflexão sobre as mudanças em curso nos relacionamentos cooperativos entre os diversos atores, desde usuários, profissionais e governo. O objetivo dessas parcerias é desenvolver mecanismos que ajudem a organizar a gestão pública em prol do interesse da coletividade.

Referências:

FERRIS, James M. Coprovision: Citizen Time and Money Donations in Public Service Provision. Public Administration Review, 44, 324-333. 1984.

WHELAN, Robert; DUPONT, Robert. Some Political Costs of Coprovision: The Case of the New Orleans Zoo. Public Productivity Review, 10(2), 69-75. 1986.

ALFORD, J. Why do public-sector clients coproduce? Toward a contingency theory. Administration & Society, v. 34, n. 1, p. 32-56, 2002.

* Texto elaborado pelos acadêmicos no âmbito da disciplina de Coprodução do Bem Público, da Pós-Graduação em Administração da UDESC/ESAG, ministrada pela professora Paula Chies Schommer e pela doutoranda Camila Pagani, no primeiro semestre de 2020.

COMO FORTALECER A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ DURANTE E APÓS UMA CRISE SANITÁRIA MUNDIAL: AS DOLOROSAS LIÇÕES DA COVID-19

Por Bárbara Ferrari*

A pandemia provocada pela Covid-19 pegou a todos de surpresa e foram necessárias diversas adaptações no dia-a-dia das pessoas. De um dia para o outro, milhares de brasileiros tiveram que começar a trabalhar em home office, praticar o isolamento social e ficar em quarentena para reduzir os riscos de contágio e disseminação da doença. Por outro lado, essas mudanças evidenciaram, ainda mais, as desigualdades sociais existentes no nosso país: outros milhares de brasileiros continuaram a trabalhar presencialmente, por não possuírem condições de aderir ao trabalho remoto ou pela falta de liberação dos seus patrões, além de não terem acesso às condições mínimas de sobrevivência, como uma casa, alimentação, sistema de água e saneamento básico. Este último, essencial para a principal recomendação dos profissionais da área da saúde: lavar as mãos com água e sabão várias vezes ao dia.

Aqui, restam alguns questionamentos: como essa parcela da população vai conseguir aplicar a #fiqueemcasa, se não possuem o básico para isso? E aqueles que nem casa possuem (pessoas em situação de rua, por exemplo) como farão? Sposati (2020) estima que sejam mais de 100 milhões de brasileiros que compõem essa massa populacional identificada como “os vulneráveis”, composta pelos desempregados, trabalhadores informais, pessoas em extrema pobreza e pessoas em situação de rua.

Esse grupo, formado por aqueles considerados “invisíveis”, deixa ainda mais claro a importância de políticas públicas que atendam especialmente a essas pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social, haja vista que a ausência de condições mínimas para se proteger do novo coronavírus faz com que eles sejam os mais expostos e desprotegidos em meio a essa pandemia.

No contexto atual que vivenciamos, o senso de cidadania tornou-se ainda mais indispensável. O poder de contágio do coronavírus é muito alto. Isso significa que, para conter a sua disseminação, é necessário contar, não apenas com as decisões e ações do poder público, mas, também, com a consciência e o bom senso dos cidadãos. Assim, todos nós devemos basear nossas atitudes diárias no cuidado e preocupação com o próximo, haja vista que podemos nos contaminar e, sem os devidos cuidados, propagar o vírus sem saber, sobrecarregando os serviços de saúde, podendo levar ao seu colapso e gerando um “mal invisível” a toda sociedade.

Nesse sentido, tornou-se nossa obrigação, como cidadãos, considerando a dimensão legal do conceito de cidadania, ligada aos nossos direitos e deveres (DENHARDT; DENHARDT, 2003), cumprir medidas restritivas: usar máscara, não promover eventos, manter o distanciamento social, entre outros. Não há como promover a saúde coletiva sem que cada um faça a sua parte, é necessário que esse serviço seja coproduzido, isto é, que haja o engajamento mútuo e ativo – do Estado e da sociedade – na realização dos serviços públicos.

A cidadania ativa e responsável exigida para a coprodução dos serviços públicos encontra eco nas teorias da democracia participativa. Essas teorias defendem a necessidade de a representação formal ser acompanhada de mecanismos de participação direta da sociedade nas tomadas de decisão, especialmente dos grupos excluídos, buscando abranger interesses diversos e promover equidade no acesso aos bens e serviços públicos. Nesse cenário, o espaço virtual, por meio de redes sociais, sites institucionais e fóruns de debate, ganhou ainda mais engajamento, possibilitando até a interferência nas decisões políticas e nas práticas da administração pública.

No debate “Quarentena, crise da democracia e política: Participação cidadã pós-pandemia”, promovido pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT), os professores Leonardo Avritzer (UFMG), Giovanni Allegretti (CES-Coimbra) e Rebecca Abers (UnB), destacados pesquisadores da área da participação cidadã, discutem novas formas de participação que despontaram em meio a pandemia e como  poderão ser continuadas após tudo isso passar.

Fonte: Getty Images

Entre os tópicos discutidos, chama a atenção a questão da participação através dos meios digitais. Algumas das indagações que surgiram ao tratar desse tema foram: considerando que estamos tão saturados por dispositivos tecnológicos e comunicação em ambiente virtuais, como reuniões, aulas, trabalho remoto, redes sociais, será que esse é o melhor caminho para uma maior participação? Haveria adesão aos mecanismos de participação online durante a pandemia? Como podemos incluir aqueles que não possuem acesso ao espaço digital?

Essa discussão não começou agora. Já há uma literatura diversa sobre participação online, especialmente na iniciativa do orçamento participativo digital (OPD). Ele é caracterizado por ser um formato inovador de gestão pública orçamentária ao aliar certas características da prática presencial do orçamento participativo com o uso da internet. Seus principais objetivos buscam: (a) incluir segmentos pouco participativos; (b) reduzir os custos da participação política; e (c) ampliar o acesso dos cidadãos às informações e aos processos decisórios (COLEMAN; SAMPAIO, 2016).

No entanto, é importante destacar que há uma grande exclusão digital no Brasil. Isso significa que há uma discrepância no acesso à internet relacionadas a área geográfica, raça, gênero e classe social. Dessa forma, um conjunto considerável de cidadãos estaria impedido de fazer parte dessas atividades, em geral, aqueles que compõem “as camadas que mais necessitam de políticas públicas e de atenção do poder público de forma geral”, fazendo com que a e-participação, ao invés de gerar maior democracia participativa, reforce a exclusão daqueles que já são excluídos (SAMPAIO, 2016, p. 941).

Apesar do reforço ao uso das tecnologias da informação e comunicação (TICs) em meio à pandemia, essa nova realidade impõe uma série de desafios à democracia participativa. Um dos debatedores do webinário, o professor Giovanni Allegretti, defende que

o Estado tem que saber que, se não escuta, fará muito mais erros e também aqueles [os erros] que não estiverem tão grandes, serão percebidos como muito maiores do que eles são […] Estamos sempre em frente a bifurcações quando temos que tomar uma decisão. Pensamos: “ok, podemos usar a tecnologia” e logo depois nos damos conta que a tecnologia saturou as nossas vidas e que provavelmente fazer um processo com base na tecnologia ninguém participaria nesse momento. Então pensamos: “esperamos um pouco e vamos nos reencontrar”, mas depois nos damos conta que temos todos medo de encontrar os outros, que as regras que nos demos é para ficar a dois metros de distância um do outro e, no final, não sabemos como reconstruir [a participação]. Eu acho que a melhor forma é um pouco… são duas: primeiro escutar o que que os cidadãos pensam, o que que estão dispostos a fazer para recomeçar com os processos participativos. E a segunda coisa é que a política provavelmente tem que fazer um passo atrás e olhar um pouco mais para aqueles processos de irrupção que foram muito importantes durante a pandemia. Nós tivemos, digamos, pelo menos duas grandes tipologias de processos participativos: aqueles lúdicos […] e depois tivemos aqueles solidários, para ajudar os outros.

Questionado por Avritzer se orçamentos participativos poderiam ser úteis no processo de recuperação, Allegretti defende que “este é o momento perfeito para mais orçamentos participativos, porque se nós olharmos o que passou na crise que abalou a Europa entre 2008 e 2014, foi um momento em que os OPs cresceram muito”. Além disso, coloca que os orçamentos participativos se apresentam como uma alternativa para a alocação dos recursos no pós-pandemia, especialmente porque os recursos, que já são escassos, possivelmente estarão ainda mais. Contar com a visão e a participação dos cidadãos nesse momento faz com que as decisões tomadas tenham maior legitimidade e eficácia. Muitas das soluções para problemas coletivos estão sendo visibilizadas ou criadas a partir do envolvimento dos cidadãos já durante a pandemia, como as diversas ações de combate à fome ou de prevenção à Covid-19 nas periferias. É possível aproveitar esse engajamento para a construção de soluções para os desafios que persistirem e para os que vierem após o fim da crise sanitária.

Esse período que nos trouxe tantas mudanças em função da pandemia, também tem nos trazido diversas lições sobre coprodução, participação cidadã, engajamento, e, principalmente, reflexões sobre aquilo que realmente importa na nossa vida e dia a dia. Muitos são aqueles que creem que as transformações do nosso cotidiano, advindas da pandemia, serão contínuas e que o mundo “pós-pandemia” será diferente do que conhecemos agora. Tomara que sim!!!

REFERÊNCIAS:

ABERS, Rebecca; ALLEGRETTI, Giovanni; AVRITZER, Leonardo. Quarentena, crise da democracia e política: Participação cidadã pós-pandemia. 19 maio 2020. (45m26s). Canal TV da Democracia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R43w49uJ-I8&t=1571s. Acesso em: 19 maio 2020.

COLEMAN, Stephen; SAMPAIO, Rafael Cardoso. Sustaining a democratic innovation: a study of three e-participatory budgets in Belo Horizonte. Information, Communication & Society, online, v. 20, n. 5, p. 754-769, jul. 2016.

MENDONÇA, Patrícia Maria E.; SCHOMMER, Paula Chies. Cidadãos e profissionais trabalhando juntos na coprodução de serviços públicos. 2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/cidadaos-e-profissionais-trabalhando-juntos-na-coproducao-de-servicos-publicos/. Acesso em: 15 jul. 2020.

SAMPAIO, Rafael Cardoso. E-Orçamentos Participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-participação. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 50, n. 6, p. 937-958, dez. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rap/v50n6/0034-7612-rap-50-06-00937.pdf. Acesso em: 04 jul. 2020.

SPOSATI, Aldaiza de Oliveira. COVID-19 Revela a Desigualdade de Condições da Vida dos Brasileiros. Nau Social, [S.l.], v. 11, n. 20, p. 101, abr. 2020. Universidade Federal da Bahia. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/nausocial/article/view/36533/21016. Acesso em: 25 jul. 2020.

* Texto elaborado pela acadêmica Bárbara Ferrari, mestranda em Administração, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Pós-Graduação em Administração da UDESC/ESAG, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com participação da doutoranda Camila Pagani.

Estudo, com participação do Grupo Politeia, avalia decretos municipais sobre a pandemia e o potencial de propagação da COVID-19 em Florianópolis

A integrante Grazielli Faria Zimmer Santos do grupo de pesquisa Politeia, juntamente com outros nove pesquisadores de São Paulo e Santa Catarina publicaram um trabalho sobre a análise dos decretos municipais de Florianópolis. O nome do artigo é ” O potencial de propagação da Covid-19 e a tomada de decisão governamental: uma análise retrospectiva em Florianópolis, Brasil.


Em colaboração com a integrante do Politeia, Grazielli Faria, participaram na produção do artigo os pesquisadores: Leandro Pereira Garcia, da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, Jefferson Traebert do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde da Universidade do Sul de Santa Catarina, Alexandra Crispim Boing, do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFSC, Lucas Alexandre Pedebôs, da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, Eleonora d’Orsi do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFSC, Paulo Inacio Prado, do Instituto de Biologia da USP, Maria Ameia de Sousa Mascena Veras, da Faculdade de Ciência Médicas da Santa Casa de São Paulo, Giuliano Boav, do Departamento de Matemática da UFSC e Antonio Fernando Boing Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFSC.

O método utilizado, a fonte dos dados e os resultados são públicos e estão disponíveis em bit.ly/FloripaCovid_19. Além do artigo científico, no mesmo link também podem ser baixados infográficos preparados especialmente para divulgação do estudo.

Foram analisados os decretos e a situação epidemiológica local no período de março a julho de 2020. A pesquisa levou em conta casos confirmados da doença com sintomas iniciados entre 1º de fevereiro e 14 de julho de 2020 em Florianópolis e os decretos municipais do período relacionados à Covid-19.

Os resultados mostram um alinhamento entre a situação epidemiológica da cidade e as restrições adotadas pelo município entre março e maio.  A partir da segunda semana de maio, no entanto, as medidas passam a ir na contramão do agravamento da pandemia na cidade, com relaxamento em vez de aperto nas restrições.

Resumo:

Objetivo:analisar a relação entre o potencial de propagação do SARS-CoV-2 e as tomadas de decisão do governo municipal de Florianópolis (Brasil) quanto ao distanciamento social.Métodos: Foram analisados casos novos de COVID-19 com tratamento de nowcastingidentificados em residentes de Florianópolis entre 01 de fevereiro e 14 de julho de 2020. Também foram analisados os decretos relacionados à COVID-19 publicadas no Diário Oficial do Município entre 01 defevereiro e 14 de julho de 2020. Com base nas ações dispostas nos decretos, analisou-se se elas promoviam o relaxamento, o aumento ou a manutenção das restrições vigestes, criando-se o Índice de Distanciamento Social. Para o período de cinco dias anteriores a cada decreto calcularam-se os númerosde reprodução dependente do tempo (Rt). Construiu-se matriz entre a classificação de cada decreto e os valores deRt, verificando-se a consonância ou a dissonância entre o potencial de disseminação do SARS-CoV-2 e as ações dos decretos. Resultados:Foram analisados 5.374 casos de COVID-19 e 26 decretos. Novedecretos aumentaram as medidas de distanciamento social, novemantiveram e oitoas flexibilizaram. Das 26 ações, 9 eram consonantes e 17 dissonantes com a tendência indicada pelosRt.Dissonâncias foram observadas com todos os decretos que mantiveram as medidas de distanciamentoe que as flexibilizavam.No segundo bimestre da análise houve a mais rápida expansão do número de casos novos eamaior quantidade de dissonâncias dos decretos.Conclusão:Observou-se importante divergência entre as medidas de distanciamento social com indicadores epidemiológicos no momento da decisão política.

Palavras-chave: Infecções por Coronavirus.Epidemiologia. Tomada de Decisões. Governo.