Como o conhecimento sobre as contas públicas pode apoiar o exercício do controle social e contribuir para a propositura de melhorias nas políticas públicas
Por Graziela Luiza Meincheim*
“O povo inglês só é soberano no momento da votação; no dia seguinte passa a ser escravo.” Esta frase, dita no século XVIII pelo filósofo Jean Jacques Rousseau, considerado o pai da democracia moderna, ainda hoje nos traz reflexões em relação aos ideais democráticos que podem ser perseguidos. Embora o Brasil tenha uma história democrática relativamente recente e tenha apresentado significativos avanços nos últimos anos, ainda nos dias de hoje grande parte dos cidadãos brasileiros exerce sua soberania apenas no dia das eleições. A questão que norteia esta reflexão é: enquanto cidadãos, de que forma podemos ampliar nosso poder, para além das urnas, acompanhando os mandatos daqueles que elegemos e assim alcançar melhorias nas políticas públicas implementadas?
Uma das possíveis respostas a essa questão é apresentada pelos pesquisadores Fernando Abrucio e Maria Rita Loureiro (2004), que veem a aprendizagem acerca das finanças públicas como um meio pelo qual os brasileiros podem exercer seu poder ao longo do mandato dos eleitos. É sobre este tema que discorreremos aqui.
Conhecendo as finanças públicas, os cidadãos podem discutir em mais detalhes e com mais propriedade, por exemplo, sobre os gastos públicos que devem ser priorizados na proposta orçamentária, alocação dos recursos nas políticas públicas e a distribuição desses gastos entre grupos sociais. Na mesma linha, os autores citados sustentam que quanto maior o controle efetuado pelos cidadãos, mais o Poder Público tem condições de corrigir e melhorar as políticas públicas, ajustando tais políticas às necessidades e expectativas do cidadão.
Por meio do controle social, o poder é conferido aos cidadãos não somente no dia da votação (Abrucio e Loureiro, 2004), mas também durante a vigência dos mandatos quando, por exemplo, ocorrem as discussões sobre a alocação dos recursos no orçamento público, bem como na apresentação da prestação de contas sobre a aplicação desses recursos.
Nessa linha, os autores destacam que o exercício do controle é condicionado pela transparência e visibilidade dos atos do Poder Público, a fim de permitir que o povo conheça as decisões governamentais. Em relação à visibilidade dos atos, Bobbio (2023) afirma que somente quando o ato é público os cidadãos possuem condições de julgá-lo e, portanto, de exercer diante dele uma das prerrogativas fundamentais do cidadão democrático, o controle dos governantes. Abrucio e Loureiro (2004) destacam que a transparência das ações governamentais é um requisito para a efetivação de seus instrumentos institucionais, pois sem informações confiáveis, relevantes e oportunas, não há possibilidade de os atores políticos e sociais ativarem os mecanismos de responsabilização.
Em linhas gerais, o controle social depende das mesmas condições que garantem a qualidade da democracia representativa: informação e debate entre os cidadãos, instituições que viabilizem a fiscalização, regras que incentivem o pluralismo e coíbam o privilégio de alguns grupos frente à maioria desorganizada, bem como o respeito ao império da lei e aos direitos dos cidadãos (Abrucio e Loureiro, 2004).
Com o avanço do regime democrático de direito no Brasil, foram instituídos diversos instrumentos que permitem o acompanhamento das contas públicas, como os conselhos de políticas públicas, o orçamento participativo, as audiências públicas, os canais de ouvidoria para o atendimento de dúvidas ou pedidos de acesso à informação, os portais de transparência e as prestações de contas dos governantes, apenas para citar alguns exemplos.
No caso das prestações de contas dos governantes, trata-se de uma peça contábil, submetida à análise e ao julgamento do Poder Legislativo, em que são apresentados dados sobre a execução do orçamento público, gestão financeira, composição do patrimônio público, desempenho da economia, análise da gestão fiscal, além de demonstrativos contábeis obrigatórios.
O problema que surge, porém, é que os cidadãos enfrentam dificuldades para compreender os dados das contas públicas que são disponibilizados pelos órgãos públicos nas prestações de contas dos governantes. Por isso, o interesse dos cidadãos em fiscalizá-las é pequeno. Tampouco eles possuem plenas condições para agir a partir dos dados que são divulgados.
Pode-se conjecturar que as principais causas desse problema estejam relacionadas à apresentação dos dados das contas públicas com forte predomínio de termos técnicos, a falta de materiais e de instrumentos que facilitem a compreensão do conteúdo disponível e estimulem a participação social, e a apresentação das prestações de contas dos governantes voltadas mais para o cumprimento das obrigações legais, do que para o esclarecimento à população de forma simples e compreensível sobre as ações desenvolvidas pela gestão de governo.
A fim de dirimir essas questões, verifica-se certa evolução no formato de apresentação das prestações de contas dos governantes nos últimos anos, a exemplo do Balanço Geral do Estado de Santa Catarina, juntamente com o Balanço Cidadão do Estado. Estes dois instrumentos de prestação de contas e de transparência permitem o acesso às informações sobre os gastos públicos realizados pelo Governo e facilitam o entendimento sobre as finanças públicas, favorecendo assim a fiscalização da gestão pública pela sociedade.
O Balanço Geral do Estado de Santa Catarina constitui-se na principal peça de prestação de contas do Governador, que é submetida à análise e ao julgamento do Poder Legislativo. Além de apresentar dados quantitativos e qualitativos sobre a aplicação dos recursos estaduais arrecadados nas principais áreas de atuação estatal, desempenho da economia e destaques da gestão administrativa, a prestação de contas contém temas mais técnicos como os demonstrativos contábeis, fiscais e as notas explicativas.
Além de observar os requisitos técnicos e legais na sua elaboração, verifica-se o emprego de linguagem e apresentação que buscam transformar dados técnicos das finanças públicas em informações compreensíveis, acompanhados de exposições gráficas e visuais para facilitar o entendimento de quem lê.
Um exemplo do uso de linguagem simples no Balanço Geral do Estado de Santa Catarina ocorre em relação aos dados técnicos das receitas arrecadadas e dos gastos públicos realizados. Há um resumo de onde vieram os recursos públicos estaduais e onde foram aplicados esses recursos, conjugando-se os termos técnicos, que são obrigatórios, com as explicações para os itens mais difíceis de serem entendidos pelo cidadão. A figura 1 mostra esse resumo, contendo as origens das receitas estaduais e da aplicação desses recursos.
Figura 1: De onde vieram os recursos estaduais e onde foram aplicados
Fonte: Balanço Geral do Estado de Santa Catarina (2023)
O Balanço Cidadão do Governo de Santa Catarina é um projeto de educação fiscal e financeira, que mostra a origem e a aplicação dos recursos públicos estaduais com uma linguagem simples e objetiva, voltada principalmente ao público jovem (Figura 2). A publicação, lançada em 2017, possui o formato de uma cartilha e tem como principal objetivo instigar os jovens cidadãos a acompanhar a situação das contas públicas e participar de forma mais ativa da gestão, e assim sugerir melhorias na implementação de políticas públicas que atendam, de forma mais justa e equitativa, as necessidades da população.
Figura 2: Balanço Cidadão Estado de Santa Catarina (2022)
Fonte: Balanço Cidadão Estado de Santa Catarina (2022)
A base de dados do Balanço Cidadão é o Balanço Geral do Estado. Para simplificar e apresentar esses números de maneira mais objetiva, o Balanço Cidadão vale-se da linguagem coloquial e da técnica do storytelling, que consiste basicamente na narração de uma história. A proposta é estimular a leitura e fixar a atenção do leitor usando um formato atrativo na apresentação dos dados, com infográficos, ilustrações e cenários que remetem a cenas do cotidiano das pessoas, tornando a temática das contas públicas mais próxima da realidade vivida pelo cidadão. A história é o fio condutor do enredo, em que, por meio de diálogos entre os protagonistas, são inseridas as informações sobre a gestão das finanças públicas.
O Balanço Cidadão (Figura 3) conta com outro diferencial: o capítulo de Jogos Educacionais, cujos leitores são desafiados a responder questões relacionadas às finanças públicas no Show do Cidadão (Quiz), no Caça-Palavras e nas Palavras Cruzadas. Além desses jogos, no Balanço Cidadão do ano de 2022, há o “Brincando de ser Governador”, que é um jogo de tabuleiro no qual o jogador se coloca no lugar do Governador, e precisa superar os desafios da gestão para chegar ao final do mandato.
Figura 3: Jogo Brincando de ser Governador
Fonte: Balanço Cidadão Estado de Santa Catarina (2022)
As melhorias na apresentação das prestações de contas, como a constatada no Balanço Geral do Estado de Santa Catarina, e a criação de instrumentos inovadores de educação fiscal, como o Balanço Cidadão, demonstram a preocupação e o esforço contínuo da equipe técnica responsável pela elaboração desses instrumentos em melhorar a forma de comunicação sobre a situação das contas públicas, bem como para apresentar informações qualificadas e inteligíveis, que permitam aos cidadãos um maior conhecimento sobre as finanças públicas.
Esses instrumentos também proporcionam que os cidadãos possam demandar outras informações que entenderem necessárias, utilizando para tal mecanismos como a Lei de Acesso à Informação (LAI) e as ouvidorias, bem como a participação em debates e ações coletivas de controle social, por meio de conselhos de políticas públicas e organizações da sociedade civil. Assim, o cidadão pode avaliar com mais profundidade os resultados da gestão realizada pelos eleitos e buscar contribuir para aprimorá-la, exercendo um dos pressupostos da cidadania, que é a fiscalização sobre a aplicação dos recursos públicos.
O desafio que surge é fazer com que os cidadãos tenham conhecimento e acesso a essas publicações, o que exige do Governo a realização de campanhas de incentivo à participação social, ações de educação fiscal em escolas e universidades, forte presença nas redes sociais ou até por meio de matérias jornalísticas e campanhas publicitárias. Quanto maior for a disseminação do conteúdo dessas publicações, maior será a possibilidade de os cidadãos conhecerem mais sobre a gestão pública e aumentarem seu interesse em participar de forma mais ativa. Dessa forma, além das urnas, o poder do cidadão é ampliado por todo o período do mandato dos governantes e sua maior participação na gestão pública poderá contribuir para a melhoria das políticas públicas.
*Texto elaborado por Graziela Luiza Meincheim, no contexto da disciplina Accountability, Controle e Coprodução do Bem Público, do Mestrado Profissional em Administração da Udesc Esag, ministrada pelas professoras Paula Chies Schommer e Elaine Cristina de Oliveira Menezes, com participação das doutorandas Larice Steffen Peters e Loana de Moura Furlan, no primeiro semestre de 2024.
Referências
ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accountability. In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2005.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia (uma defesa das regras do jogo). Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 19ª edição, 2023.
SANTA CATARINA. Balanço Cidadão Estado de Santa Catarina. 2022. Disponível em https://www.sef.sc.gov.br/transparencias/balanco-cidadao
SANTA CATARINA. Balanço Geral do Estado de Santa Catarina. 2023. Disponível em https://www.sef.sc.gov.br/transparencias/balanco-geral-do-estado