Por Kamilly Silva de Oliveira e Cristian Schilisting*
De acordo com dados do IBGE (2020), 54% da população brasileira se autodeclara preta ou parda. No entanto, mesmo diante do histórico de escravização e construção do país a partir da mão de obra escravizada vinda da África, posteriormente majoritária nos chamados subempregos, pouco se conhece de suas tradições e cultos que influenciaram e formaram o Brasil, sob diversos aspectos (musical, culinário, linguístico, vestuário etc.).
Quando pensamos em coprodução de bens e serviços públicos, normalmente buscamos por iniciativas que visem saúde, educação ou segurança, que, de fato, são serviços públicos imprescindíveis. No entanto, especialmente nesses tempos de pandemia pelo novo Coronavírus, foi possível evidenciar o quanto a cultura é relevante para a saúde física e mental das pessoas. Projetos, oficinais, cultos, shows e eventos são não apenas distrações, podendo também proporcionar novos conhecimentos, emoções e relações.
A Oficina de Ritmos e Cânticos do Candomblé, realizada em parceria pelo professor em música Alagbe Willian Camargo e a Prefeitura de São José, por meio da Fundação Municipal de Cultura e Turismo, focaliza a aprendizagem através da prática musical voltada para os toques e cantigas dessa religião afro-brasileira.
Por intermédio da música e dos cânticos tradicionais, se propicia conhecimento sobre aspectos da cultura e valores dos povos iorubás, contribuindo de maneira indireta para a diminuição de casos de intolerância religiosa, que costumam ser motivados pelo preconceito, derivado da falta de conhecimento e de estereótipos racistas ligados à cultura afro-brasileira, que há muito tempo não são mais compatíveis com o país que desejamos e precisamos.
Antes de apresentar o projeto em questão, faz-se necessário que se conheça alguns conceitos e informações básicas. Por isso, deixamos como sugestão de leitura introdutória o livro O Candomblé bem Explicado, além do vídeo no Youtube do canal QG do Enem, Historiando: O candomblé.
Intolerância religiosa e estereótipos que motivam os ataques
Para mostrar um pouco o problema da intolerância religiosa e suas consequências, apresentamos a seguir trechos de reportagem do jornal Brasil de Fato, por Marina Duarte de Souza.
Há 22 anos, a Yalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, faleceu em decorrência de um ataque motivado por intolerância religiosa. Um atentado ocorrido em janeiro de 2000 teve como alvo o terreiro de Candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, nas imediações da Lagoa do Abaeté, no bairro de Itapuã, em Salvador, capital da Bahia.
Em homenagem à Yalorixá, a data foi instituída como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 2007. Décadas depois, os ataques que afetaram Mãe Gilda ainda acontecem. No primeiro semestre de 2019, por exemplo, aumentou em 56% o número de denúncias de intolerância religiosa, em comparação ao mesmo período do ano anterior. A maior parte dos casos ocorreu com praticantes de crenças como a Umbanda e o Candomblé.
Os casos são registrados via Disque 100, número de telefone do governo criado em 2011, que funciona 24 horas por dia para receber denúncias de violações de direitos humanos. Entre 2015 e o primeiro semestre de 2019, foram 2.722 casos de intolerância religiosa – uma média de 50 por mês.
Os números podem ser ainda mais expressivos, já que em muitos casos as vítimas não denunciam as agressões, por medo de que a violência se repita ou de que o Estado não preste o apoio necessário.
Para acompanhar a apuração dos casos e dar assistência psicológica e jurídica às casas e praticantes das religiões de matriz africana, nasceu o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões de Matriz Africana (IDAFRO). A organização reúne advogados, contabilistas, sociólogos(as), sacerdotes e sacerdotisas que já estavam articulados em um coletivo da sociedade civil em ações contra a intolerância religiosa.
O Supremo Tribunal Federal, STF, e outros órgãos de Justiça também tem discutido o tema da intolerância religiosa e adotando medidas para combatê-la.
A intolerância e a violência decorrentes são muitas vezes geradas por estereótipos sobre a religião e a cultura afro-brasileira, pelo racismo estrutural e por desinformação. Para combatê-los, um dos caminhos é promover informação, conhecimento e oportunidade de encontro entre as pessoas, o que pode acontecer por meio da música.
Oficina de Ritmos e Cânticos do Candomblé
A Oficina de Ritmos e Cânticos do Candomblé, realizada nos dias 13, 16, 19 e 20/02/2022, refere-se a uma oficina de prática musical voltada para os ritmos e cânticos de candomblé Ketu e Jeje. Tem como foco a aprendizagem do repertório que é comumente tocado nas festas públicas desta religião/cultura afro-brasileira. Mediante práticas individuais e coletivas, são ensinados diversos ritmos tocados nos instrumentos de percussão e os principais cânticos tradicionais.
De acordo com o fundador, o professor de música Willian Camargo “no candomblé ketu e jeje, quase tudo se faz cantando, dançando e tocando atabaques. A música tocada nos terreiros é uma herança cultural resultante de combinações rítmicas, sonoras, textuais e gestuais, fruto do caráter de resistência de várias etnias africanas que vieram para o Brasil.
Diante da pandemia de Covid-19 e suas consequências, o apoio público a projetos culturais teve Mecanismos específicos como os da Lei Aldir Blanc, que dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública. Em Santa Catarina, foi possível inscrever-se por meio da Fundação Catarinense de Cultura. Cada projeto submetido passa por análise e, caso aprovado, recebe financiamento e outros tipos de apoio. Há também iniciativas organizadas e financiadas pelos governos locais, como acontece em São José/SC, por meio da Fundação Municipal de Cultura e Turismo, que apoia a Oficina. O projeto é divulgado nos sites da prefeitura, promovendo publicidade, além de amparo legal para serem realizados e do apoio financeiro.
As oficinas são realizadas no salão principal do terreiro de candomblé Ilê Axé Omim Babá Oxaguian, conhecido como Terreiro do Pai Edenilson, sendo abertas a qualquer pessoa interessada, integrantes ou não do candomblé.
Cada oficina tem duração de 60 minutos, em formato presencial com transmissão online em tempo real. A dinâmica da oficina estimula a interatividade entre o ministrante e os participantes. Posteriormente as aulas ficam gravadas no canal do Youtube: Alagbe Willian Camargo.
Através da relação entre o profissional da área, o poder público e os alunos, são compartilhados ensinamentos sobre a cultura candomblecista e, portanto, afro-brasileira. Além da música em si, o trabalho auxilia de maneira indireta no combate à intolerância religiosa, através do conhecimento e da empatia, dissipando medos e estereótipos comuns sobre religião e outros aspectos culturais.
Considerações
Com base nesse exemplo e nas fontes consultadas, foi possível identificar que projetos de coprodução ligados à cultura podem desempenhar um papel significativo e educativo para a sociedade.
Os africanos, assim como seus descendentes, tiveram seu culto proibido durante séculos, sua identidade apagada ao serem batizados com nomes e sobrenomes portugueses e foram perseguidos pelas religiões eurocêntricas por possuírem um modo diferente de leitura de mundo, bem como de externalizar sua fé (além de seu tom de pele).
Ainda nos dias atuais, não são raros os casos de intolerância religiosa, com terreiros queimados ou depredados puramente por resistirem ao preconceito derivado da desinformação ou do racismo estrutural. Ainda assim, por meio de diversas adaptações que os tornam únicos e genuinamente brasileiros, esses povos resistem e buscam, através de seus orixás, a ligação com seu continente de origem deixado para trás nos séculos passados, bem como o resgate de sua história, através do culto aos seus antepassados.
Desta forma, embora nos dias atuais o candomblé já tenha transcendido os povos pretos e seja reconhecido pelo acolhimento de diversas minorias, muitas vezes rejeitadas em outras religiões, projetos como a Oficina de Ritmos e Cânticos destacam-se pela disseminação do conhecimento da cultura afro-brasileira, fortalecendo terreiros e simpatizantes na promoção do resgate às raízes e, de quebra, auxiliando no combate à intolerância religiosa ao ampliar o conhecimento da cultura afro-brasileira.
Embora muito já tenha sido conquistado, o caminho a percorrer ainda é longo para alcançar o ideal de igualdade, tolerância e segurança para o povo de axé. É dever do Estado não somente apoiar iniciativas como estas como promovê-las, visto que conhecer a histórias do povo africano é conhecer a história do povo brasileiro e, portanto, do próprio Brasil.
Vale lembrar que o desenvolvimento de um país não se atinge apenas com saúde, educação e segurança, sendo a cultura o fio que interliga e dá sentido a todos esses objetivos em busca por um Estado Democrático de Direito melhor, mais justo e tolerante.
Como disse a atriz e diretora Bárbara Paz, “um país sem cultura é um corpo sem alma” e o Brasil tem espaço para muitas almas, basta sabermos que devemos alimentá-las e principalmente respeitá-las.
* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Kamilly Silva de Oliveira e Cristian Schilisting, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no segundo semestre de 2021.
Referências
BEZERRA, Juliana. Candomblé. Toda Matéria.Disponível em:<https://www.todamateria.com.br/candomble/>. Acessado em 14 de fev. de 2022.
DE SOUZA, Marina Duarte. Denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no Brasil em 2019. Brasil de Fato. 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/01/21/denuncias-de-intolerancia-religiosa-aumentaram-56-no-brasil-em-2019>. Acessado em 14 de fev. de 2022.
Portal São Francisco. História Geral do Candomblé. Disponível em: <portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/candomblé>. Acessado em 12 de fev. de 2022.
Wikipédia. Templos Afro-brasileiros. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Templos_afro-brasileiros>. Acessado em 12 de fev. de 2022.
*Através dos ensinamentos dos mais velhos da acadêmica Kamilly Silva de Oliveira.
TÍTULOS PARA SABER MAIS:
- Livro: Órun-Àiyé: O Encontro de Dois Mundos;
- Livro: A Cadeira De Ogã E Outros Ensaios;
- Livro: O Candomblé Bem Explicado;
- Livro: Orixás, Deuses iorubás na África e no Novo Mundo;
- Livro: Ewé: O uso das Plantas na Sociedade iorubá;
- Livro: Os nagôs e a morte;
- Documentário: Sankofa A África que te Habita;
- Vídeo: Historiando – O Candomblé.