Ouvidoria na saúde pública: uma análise a partir da vivência de uma usuária e estudante de administração pública

Por Jamyly Schmitz Schroeder, Jessica Peri e Yasmin de Nazare Silva do Carmo* 

As ouvidorias na saúde pública têm contribuído para a transparência, a participação popular e a qualidade dos serviços oferecidos? 

Este texto explora o papel desse instrumento na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), destacando sua evolução, função, impacto na vida do usuário e como potencial de contribuir para melhoria do acesso e da eficiência dos serviços de saúde. A análise abordará desde a sua criação, em 2003, até sua consolidação como instrumento de accountability e gestão participativa, evidenciando a importância de sua atuação ativa e receptiva para a construção de um sistema de saúde mais justo e eficaz no Brasil. Abordará, ainda, um exemplo de uso da ouvidoria por uma cidadã e estudante de administração pública.

No contexto da saúde pública brasileira, o acesso à informação é destacado como um direito fundamental, consagrado na Constituição Federal de 1988. Para garantir sua efetivação e promover a participação popular, foram estabelecidas estruturas específicas, como as ouvidorias. Em 2003, o Departamento de Ouvidoria-Geral do Sistema Único de Saúde (DOGES) foi criado pelo Decreto nº 4.726, integrando a estrutura do Ministério da Saúde. A Lei de Acesso à Informação (LAI), de 2011, representa outro marco importante, consolidando a democracia e fortalecendo a prevenção da corrupção no país. O Decreto nº 7.508/2011, que regulamenta a Lei Orgânica do SUS, estabelece o conceito de Ouvidoria Ativa, visando atender às necessidades dos cidadãos de forma permanente, inclusive por meio de escuta itinerante.  

A função da ouvidoria é receber, analisar e responder às demandas dos usuários, promovendo transparência, imparcialidade e qualidade nos serviços prestados, além de contribuir para a gestão participativa. Conforme menciona o Relatório Anual da Ouvidoria Secretaria Estadual de Saúde Santa Catarina: 

Somos uma via de comunicação, legítima e oficial, que dá voz aos anseios da população catarinense e os transmite ao gestor de saúde. Trata-se de um rico instrumento para a administração, visto que gera informações baseadas na necessidade da população, podendo orientar a tomada de decisão e ações direcionadas, melhorando, dessa forma, a qualidade dos serviços ofertados (SAUDE.SC.GOV., 2018).  

Além disso, a ouvidoria pode ser reconhecida como um instrumento de accountability, ao estar relacionada às dimensões abordadas por Koppel (2005), transparência, controlabilidade, responsabilidade, imputabilidade e responsividade, ou capacidade de resposta. No seu cerne, a ouvidoria é um canal que proporciona acesso a informações ao usuário sobre os serviços de saúde pública, políticas e procedimentos, gerando transparência. Ao agir como um mecanismo de respostas às demandas do cidadão, oferecendo respostas rápidas e adequadas, resulta em responsividade. 

Podemos observar também os elementos de controle, como administrativo interno, pois a ouvidoria pode identificar padrões de problemas e áreas de melhorias na qualidade dos serviços de saúde, através das informações obtidas por meio dos usuários, e o controle social, pois permite que os cidadãos exerçam influência e fiscalizem as ações do governo, usufruindo desse canal para buscar apoio e assistência.  Conforme Denhardt (2012 p.267), os instrumentos de accountability precisam envolver “um equilíbrio entre normas e responsabilidades concorrentes numa teia complicada de controles externos, padrões profissionais, preferências dos cidadãos, questões morais, direito público e, em última análise, interesse público.” Entendemos que todos esses elementos, bem trabalhados, podem resultar na redução da iniquidade nos serviços de saúde, buscando combater o acesso inadequado a esse serviço, combater discriminações e aplicar o direito do cidadão o mais próximo possível do justo. 

Experienciando o instrumento 

Agora compartilhamos a experiência vivida por uma das autoras deste texto com o uso do instrumento de ouvidoria do serviço de saúde pública em Santa Catarina. Aguardando cirurgia de Ligamento Cruzado Anterior (LCA) no joelho esquerdo desde 2019, no decorrer dos anos, passou quatro vezes pelos exames pré-operatórios e anestesista, mas sem sucesso no agendamento da efetiva cirurgia. Dentro da universidade, como aluna de administração pública, aprendeu sobre a existência de canais de controle social e participação cidadã, como os Conselhos de Saúde, as Conferências de Saúde e as Ouvidorias.  

Compreendido isso, buscou dentro do hospital o canal (WhatsApp) da Ouvidoria Hospitalar. Apesar de sempre obter retorno, não se alcançava informações com exatidão e uma solução para a situação, nas diversas tentativas de comunicação. Posteriormente, ela buscou a Ouvidoria Municipal da Secretaria da Saúde de Florianópolis, via canal (E-mail), apresentando a situação e as dificuldades. Neste caso, o diálogo foi diferente, ela observou uma maior complexidade já na entrada da solicitação, como por exemplo, informações específicas que necessitou de pesquisa ou orientação do hospital. Depois dessa etapa, através da ouvidoria municipal, obteve retorno e uma proposta de solução.  

Esse relato ilustra os desafios enfrentados pelos usuários ao buscar o serviço de ouvidoria, destacando a importância da divulgação e efetividade deste instrumento. Problemas como falta de conhecimento sobre o instrumento e variação na assistência são identificados, sugerindo a necessidade de maior transparência e acesso às informações de saúde. 

Limites observados ao usar ouvidorias 

Os problemas observados nas ouvidorias da saúde pública incluem a falta de conhecimento por parte da população mais necessitada sobre o funcionamento e os benefícios desse instrumento. Isso pode resultar em subutilização da ouvidoria como canal de comunicação e participação cidadã, limitando seu potencial de promover melhorias nos serviços de saúde.  

Outra questão identificada é a variação na qualidade e na quantidade de assistência prestada pelas diferentes ouvidorias. Isso sugere a necessidade de padronização e monitoramento dos serviços oferecidos por essas estruturas, garantindo que todas atuem de forma eficaz e equitativa.  

Além disso, a forma como os gestores públicos encaram a transparência e a prestação de contas pode influenciar diretamente na qualidade da assistência prestada. Uma postura mais transparente e comprometida com a prestação de contas tende a resultar em uma gestão mais eficiente e em melhorias nos serviços de saúde, atendendo melhor às necessidades da população.  

Por fim, a falta de transparência e a dificuldade para acessar informações pessoais relacionadas à saúde também foram identificadas como problemas. Garantir mais transparência e facilitar o acesso a essas informações pode contribuir para uma gestão mais eficiente e para uma maior confiança da população nos serviços de saúde públicos. 

Caminhos para aprimorar o funcionamento de ouvidorias na saúde pública 

Para melhorar o funcionamento das ouvidorias na saúde pública, é essencial abordar esses problemas, garantindo que haja uma ampla conscientização sobre a existência e o papel das ouvidorias, promovendo a uniformidade na qualidade dos serviços prestados, incentivando uma cultura de transparência e responsabilidade por parte dos gestores públicos e facilitando o acesso às informações de saúde pelos cidadãos. Essas medidas podem ajudar a fortalecer a confiança no sistema de saúde e aprimorar a qualidade dos serviços oferecidos.  

Exemplos de ouvidorias 

Para exemplificar, trazemos os seguintes exemplos de práticas promovidas pela prefeitura de Guarulhos e de Recife. Na Ouvidoria Itinerante da Prefeitura de Guarulhos, o objetivo foi realizar pesquisa de satisfação e registrar sugestões, queixas e elogios dos usuários do sistema único de saúde em relação ao atendimento prestado no município. Com os bons resultados, essa prática pode ser expandida para alcançar diferentes comunidades e áreas da cidade. Isso permite que os cidadãos tenham um melhor acesso aos serviços de ouvidoria, aumentando a participação e a eficácia do sistema.  

A Prefeitura do Recife desenvolveu uma nova ferramenta, chamada Ouvidoria 4.0, através do uso de tecnologias para coletar feedback dos cidadãos de forma contínua e o cruzamento dos dados registrados em todos os canais de atendimento que a prefeitura possui atualmente. Através da análise de relatórios resultante desse levantamento, os gestores buscaram apoiar a sua tomada de decisão, trata-se de busca pela melhoria em sua governança, aprimorando os serviços oferecidos à população e fortalecendo a relação de confiança entre o poder público e a sociedade. 

Conclusão

Concluímos que, numa análise abrangente das ouvidorias na saúde pública, há uma interseção complexa entre direitos, responsabilidades e eficácia administrativa. Desde sua consagração na Constituição de 1988 até a recente regulamentação e prática nos diversos níveis governamentais, as ouvidorias emergiram como um importante mecanismo para promover transparência, participação cidadã e accountability no setor de saúde.  

No entanto, como retratado no decorrer do texto, existem desafios a serem superados. A busca por soluções inovadoras, como a ouvidoria itinerante e a aplicação de tecnologias na coleta de feedback, destaca a importância de adaptar e aprimorar continuamente esses instrumentos para atender às necessidades em evolução da população e promover uma governança mais eficaz e responsável. Em suma, as ouvidorias desempenham um papel fundamental na construção de uma gestão pública mais transparente, participativa e eficiente na área da saúde. A melhoria contínua desse instrumento é essencial para garantir que os cidadãos tenham voz ativa na defesa de seus direitos e na busca por uma saúde pública de qualidade. 

*Texto elaborado por  Jamyly Schmitz Schroeder, Jessica Peri e Yasmin de Nazare Silva do Carmo, estudantes de graduação em administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, no âmbito da disciplina sistemas de accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2024. 

Referências 

BRASIL. Ministério da Saúde. Ouvidoria ativa do SUS: ampliando a escuta e o acesso à informação do cidadão. [s.l.] Ms, 2012. 

BRASIL. Fala.BR – Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação. Disponível em: <https://falabr.cgu.gov.br/web/home>. Acesso em: 24 abr. 2024. 

DENHARDT, Robert. Teorias da administração pública. Tradução da 6a edição norte-americada, por Francisco G. Heidemann. São Paulo. Cengage Learning, 2012.

FERNANDES, F. M. B. et al. Inovação em ouvidorias do SUS – reflexões e potencialidades. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, p. 2547–2554, ago. 2016. 

KOPPELL, Jonathan GS. Pathologies of accountability: ICANN and the Challenge of “Multiple Accountabilities Disorder”. Public Administration Review. 65 (1): 94-108, Jan./Feb. 2005.

PREFEITURA DE GUARULHOS. Ouvidoria Itinerante estará na UBS Tranquilidade nesta terça-feira. Disponível em: <https://www.guarulhos.sp.gov.br/article/ouvidoria-itinerante-estara-na-ubs-tranquilidade-nesta-terca-feira>. Acesso em: 24 abr. 2024. 

PREFEITURA DO RECIFE. Nova estratégia de avaliação dos serviços públicos municipais é apresentada aos servidores da Prefeitura do Recife |  Disponível em: <https://www2.recife.pe.gov.br/notícias/26/03/2024/nova-estrategia-de-avaliacao-dos-servicos-publicos-municipais-e-apresentada-aos>. Acesso em: 24 abr. 2024. 

SAÚDE SC GOV. SANTA CATARINA. Relatório Anual de Ouvidoria.  https://saude.sc.gov.br/index.php/documentos/informacoes-gerais/ouvidoria-ses/14980-relatorio-anual-da-ouvidoria-2018/file 

SILVA, R. P. et al. O pensamento dos gestores municipais sobre a ouvidoria como um potencial instrumento de gestão participativa do SUS. Saúde em Debate, v. 40, p. 81–94, set. 2016. 

TRAMONTINI, D. S.. Gestão na administração pública, accountability e a garantia de direitos fundamentais: uma reflexão das relações entre os sujeitos e o estado marcados pela globalização. In: Roberto Correia da Silva Gomes Caldas; Joana Stelzer; Liane Francisca Hüning Birnfeld. (Org.). Direito e Administração Pública. Florianópolis: CONPEDI, 2014, v., p. 247-271 

Noções e instrumentos de accountability e a cidadania na prática: o caso de uma escola pública estadual em Santa Catarina

Por Vanessa Souza Pereira*

Em uma escola pública estadual de Palhoça-SC, um problema que seria simples tem se mostrado difícil de resolver. Ao vivenciar a situação e tentar entender por que ocorre e como resolvê-la, podemos visualizar vários instrumentos que podem ser utilizados para acionar o poder público diante de irregularidades ou ausências. Até agora, porém, os esforços da comunidade escolar  e os meios que tem utilizado para demandar respostas não têm sido suficientes (ou efetivos?).

A escola básica é um dos espaços centrais na construção dos valores e da prática da democracia. Nesse espaço, podem ser criadas aprendizagens sobre cidadania e sobre os mecanismos pelos quais os cidadãos podem demandar respostas dos agentes públicos e contribuir para aprimorar os serviços públicos. É importante que as pessoas sintam que podem se manifestar sobre seus direitos e deveres, sobre a prestação de serviços e a relação cidadão e Estado. 

A situação na escola estadual em Palhoça

Uma instituição com mais de 40 turmas de 1º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio, que atende a cerca de 1400 estudantes nos três turnos, tem apenas uma sala equipada com projetor e lousa digital. As outras 20 salas não contam com quaisquer equipamentos como computador, projetor ou internet, apenas um quadro branco.

Com a política de implementação do Novo Ensino Médio, a escola recebeu da Secretaria de Estado da Educação (SED), em abril de 2023, 14 lousas digitais e computadores para equipar as salas desse segmento. No momento do recebimento, foi informado que a SED, por meio da Coordenadoria Regional de Ensino (CRE), realizaria a instalação dos equipamentos com contratação do serviço por meio de licitação. Além disso, foi informado à gestão da escola que não poderia abri-los, sob pena de perder a garantia do produto.

 

Foto: a autora

Foi exigido que, durante o período de espera, a escola deveria realizar a adequação do espaço, como a pintura das paredes e um pequeno armário em cada sala para acondicionar os computadores em segurança. Essas pequenas reformas foram realizadas com os recursos de repasse do PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola). 

Foto: a autora

Em vários momentos dessa situação é possível perceber a relação com o conceito de accountability na gestão pública, que se refere à transparência, controlabilidade e responsividade dos atos públicos (Heidemann, 2021). A prática da accountability na sociedade brasileira está em construção, como parte da democracia. Ainda que a legislação seja farta e os mecanismos de transparência e controle sejam diversos, nem sempre funcionam de maneira célere e efetiva. As desigualdades sociais são uma variável importante para essa construção, pois são as pessoas que mais têm seus direitos violados menos têm conhecimento sobre os instrumentos de responsabilização governamental, organizações da sociedade civil ou de empresas. 

A demanda por explicação sobre a demora

Mesmo com a reforma feita nas salas, após cerca de 4 meses, ao questionar a SED sobre a instalação das lousas digitais, foi informado à Direção que a escola teria que arcar com a instalação com repasses do Cartão de Pagamento do Estado de Santa Catarina (CEPESC), do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e caixa de eventos promovidos pela escola. No entanto, outras escolas da região (da mesma rede e município) tiveram as instalações feitas pela SED.

Além do desafio para instalar as lousas, a escola já havia passado por diversas intempéries nos últimos dois anos, como enchentes e ciclone, sem a reposição de equipamentos. Foram perdidos dois projetores antigos e dezenas de tablets, além da deterioração do espaço. As manutenções foram feitas com recursos próprios da escola, do PDDE e do CEPESC. Os estudantes da escola vivem em áreas de extrema vulnerabilidade socioeconômica, portanto, não se pode contar com eventos na escola para arrecadação de dinheiro em caixa próprio, como sugerido pela SED.

Em janeiro de 2024, foi novamente questionado à SED pela instalação das lousas, que reforçou a resposta anterior de que a escola teria que providenciar a partir de recursos próprios. A partir da indignação da comunidade escolar, foi convocada reunião do Conselho Deliberativo Escolar (CDE), que questionou: por que a desigualdade entre as unidades de uma mesma rede? Por que o acordado inicial não foi cumprido? Considerou-se injusto que a escola tenha que arcar com os custos de instalação de equipamentos adquiridos pela mantenedora e entregues sem as devidas condições para uso. 

Recorrendo ao Ministério Público

A partir dessa reunião, o CDE organizou uma Carta Aberta para manifestação à Ouvidoria do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), relatando o caso como uma forma de violação do direito à qualidade na educação básica e pouca eficiência na utilização de recursos públicos. O MPSC, por sua vez, notificou, por meio de Ofício, a Secretaria de Estado da Educação, dando o prazo de 20 dias para esclarecimentos. No entanto, findo o prazo, não houve resposta da SED para o MP, tampouco qualquer contato com a escola a esse respeito. 

Ainda sem respostas

Até o momento, o caso segue sem resposta e os equipamentos sem condições de serem instalados, pois, ao tentar uma instalação por meio de uma equipe de voluntários, foi verificado que a escola não tem fiação nem forro no teto seguros o bastante para fazer a instalação dos projetores. Foram tantas ausências e adiamentos no atendimento às questões estruturais, que a escola não tem condições de realizar melhorias com poucos recursos. 

Assim, fica a insatisfação com a situação e a falta de esclarecimentos, podendo ainda haver manifestações para outros agentes de accountability como Controladoria Geral do Estado (CGE), Tribunal de Contas do Estado (TCE) e outros da sociedade civil organizada como imprensa e movimentos sociais, no entanto, até onde pode ir a energia e a paciência dessa comunidade ao requisitar esses instrumentos? É justo que tenha que se acionar tantas instâncias para conquistar uma estrutura tão básica? 

Apesar dessa indignação, a situação coloca uma oportunidade de aprendizagem sobre accountability na prática e ensina a toda uma comunidade escolar as possibilidades e limites de cada instrumento e do sistema como um todo.

*Texto elaborado por Vanessa Souza Pereira, estudante de graduação em administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2024.

O controle sobre os órgãos de controle e sua abertura para a sociedade: análise sobre os tribunais de contas brasileiros

Por Laura Ramos*

“Um armário onde se arquivam amigos”, é esse o termo que, segundo Abrucio e Loureiro (2005), foi utilizado por Getúlio Vargas para descrever os Tribunais de Contas, TCs, no Brasil. Como várias organizações, os TCs não fogem à regra quando se trata da cultura política patrimonialista e corporativista tão enraizada na formação do Estado brasileiro.

De acordo com a Constituição Federal, os Tribunais de Contas são tribunais administrativos e de caráter auxiliar ao Poder Legislativo: apreciam as contas do Poder Executivo para, posteriormente, submetê-las ao Congresso Nacional, Assembleias Legislativas ou Câmaras de Vereadores, que julgam os responsáveis pela administração pública direta e indireta (Brasil, 1988). No caso do Tribunal de Contas da União, TCU, seu colegiado é composto por nove membros, três indicados pelo Presidente da República e os outros seis, pelo Congresso Nacional. O TCU é o órgão responsável pela fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União. 

De acordo com a proposta exposta por O’Donell (1998), pode-se afirmar que os TCs são organizações do modo horizontal de accountability, uma vez que constituem uma estrutura institucionalizada de realização de controle sobre outros entes estatais.

A Constituição de 1988, estabelecida após um período de autoritarismo e supressão da democracia, trouxe diversas inovações a respeito da participação cidadã no governo (Pinho e Sacramento, 2009), o que é fundamental para que as expectativas e contribuições dos cidadãos sejam consideradas pela administração pública. Sob a perspectiva da Teoria do Principal-Agente, os cidadãos (Principal) delegam seu poder para as organizações (Agente), as quais realizarão o controle das organizações burocráticas de acordo com as preferências dos Principais (Filgueiras, 2018). Isso requer que o Agente conheça e aja de acordo com as preferências e expectativas dos Principais, o que nem sempre acontece na prática. Desse modo, desvela-se uma problemática relevante para o tema: como os Tribunais de Contas buscam conhecer as preferências e expectativas dos cidadãos sobre a maneira como realizam o seu trabalho?  

Rocha, Zuccolotto e Teixeira (2020) apontam a tendência da acumulação de poder por parte da burocracia: a Dominação Racional-Legal faz com que a burocracia busque manter em segredo seus conhecimentos e intenções, formando um bloco impenetrável e distante dos cidadãos. A maneira proposta pelos autores para extinguir ou, pelo menos, abrandar os sintomas dessa disfunção, é a aproximação da burocracia aos mecanismos democráticos de participação.

Contudo, através de uma pesquisa realizada por esses autores com os trinta e dois Tribunais de Contas brasileiros, contemplando perspectivas de transparência dos portais, da atividade de fiscalização e participação social, conclui-se que os tribunais tendem a expor-se somente quando obrigados por Lei (Lei de Acesso à Informação ou Lei de Responsabilidade Fiscal) e a permeabilidade dos TCs em relação à participação social ainda é baixíssima. Conforme Rocha, Zuccolotto e Teixeira (2020, p.215):

nenhum TC brasileiro oferece mecanismo para que a sociedade possa participar efetivamente: a) no processo de designação de ministros/conselheiros; b) no processo de elaboração do plano de auditoria ou durante a realização das auditorias; e c) no acompanhamento do cumprimento pelos gestores públicos das determinações e recomendações.

Ainda, após a intensa midiatização dos acontecimentos políticos das últimas décadas envolvendo o uso indevido de recursos públicos, enriquecimento ilícito de agentes públicos, irresponsabilidade fiscal, etc., foi estabelecido um contexto de conjuntura crítica no Brasil. Nessa condição, os órgãos de controle (Ministério Público, Polícia Federal, Controladorias e Tribunais de Contas) assumiram um protagonismo inédito, chamando a atenção da opinião pública e sendo favorecidos pelo ímpeto dos cidadãos de exigir um Estado mais accountable.

Para além de mudanças geradas por fatores exógenos, como os que ocorreram em tal conjuntura, é possível que o desenvolvimento institucional dos órgãos de controle seja incrementado mediante fatores endógenos: aumento da autonomia e capacidade de reter recursos orçamentários, melhoramento da estrutura de carreira, dos processos e da gestão; e de fatores sistêmicos, interinstitucionais: formação de coalizões e disputas, crescimento do poder de barganha e controle de informações (Filgueiras, 2018). A interação dos fatores exógenos, endógenos e sistêmicos gera um ciclo que se retroalimenta, pois quanto maior a posse de recursos, capacidade de barganha e controle de informações, maior será seu poder e sua propriedade para agir como agente político em momento de conjunturas críticas, conforme elucidado por Filgueiras (2018).

Em seu artigo inaugural do conceito no Brasil e corroborado por Pinho e Sacramento (2009), Campos (1990) afirma que existem três pressupostos indispensáveis ao exercício da accountability: uma sociedade devidamente organizada para realizar o controle das ações governamentais; um aparato de Estado transparente; e a substituição de valores tradicionais, patrimonialistas, por valores emergentes.

Após a redemocratização, houve a legitimação e fortalecimento da sociedade civil (Andion e Serva, 2004), bem como dos mecanismos de participação social através da Constituição Federal e de diversas iniciativas (Pinho e Sacramento, 2009).Já a respeito do Estado, a própria Constituição e demais dispositivos legais reforçaram, como fatores exógenos da mudança institucional dos Tribunais de Contas (Filgueiras, 2018), a substancialidade da transparência. Em um estudo recente, Fernandes, Fernandes e Teixeira (2023) mostram que alguns TCs são mais transparentes do que outros, embora tenham todos uma estrutura similar. Um fator que explica a diferença em transparência é o grau de desigualdade socioeconômica, uma variável exógena, de um estado para outro.  

Mesmo assim, no que concerne ao terceiro ponto especificado por Campos (1990), os órgãos de controle dão poucos sinais de que os valores tradicionais incrustados em suas estruturas serão superados, padecendo de um mal denominado, de acordo com Rocha, Zuccolotto e Teixeira (2020), “insulamento burocrático”, ou seja, encontram-se dispostos como verdadeiras ilhas, distantes do restante da sociedade.

*Texto elaborado por Laura Ramos, estudante de graduação em administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, no âmbito da disciplina sistemas de accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2024.

Para saber mais sobre o tema:

Tribunais de Contas – Quem Controla o Controlador?”, por Gisiela Hasse Klein, blog grupo de pesquisa Politeia, 2018.

Observatório do Controle – organização da sociedade civil fundada em 2024 que realiza o monitoramento dos órgãos de controle da administração pública.

Referências

ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accountability. In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

ANDION, C.; SERVA; M. Por uma visão positiva da sociedade civil organizada no Brasil. Revista Venezoalena de Economia Social, 4 (7), Dezembro, 2004, p. 7-24. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 5 maio. 2024

CAMPOS, Ana Maria. Accountability: Quando poderemos traduzi-la para o português? Revista da Administração Pública. 24 (2), 30-50, fev./abr. 1990. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/9049 

FERNANDES, G. A. de A. L.; FERNANDES, I. F.; TEIXEIRA, M. A. C. Transparência dos governos subnacionais: o impacto da desigualdade na transparência. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 57, n. 6, p. e2023–0025, 2023. DOI: 10.1590/0034-761220230025. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/90406. Acesso em: 10 maio. 2024.

FILGUEIRAS, Fernando. Burocracias do controle, controle da burocracia e accountability no Brasil. In: PIRES, Roberto; LOTTA, Gabriela: OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasil: IPEA, Enap, 2018. Cap. 14. Pgs. 355-381.

O’DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e novas poliarquias. Revista Lua Nova. São Paulo, 44, 27-54. 1998.

PINHO, J.A.G. e SACRAMENTO, A.R.S. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista da Administração Pública, 43 (6): 1343-68, nov./dez. 2009. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6898

ROCHA, D. G. da; ZUCCOLLOTTO, R.; TEIXEIRA, M. A. C. Insulados e não democráticos: a (im)possibilidade do exercício da social accountability nos Tribunais de Contas brasileiros. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 54, n. 2, p. 201–219, 2020. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/81248. Acesso em: 5 maio. 2024

Social Accountability 3.0: Engaging Citizens to Increase Systemic Responsiveness

Social Accountability 3.0: Engaging Citizens to Increase Systemic Responsiveness

Source:  Guerzovich, Florencia and Aston, Tom. Anatomy of Social Accountability 3.0: A working framework for moving forward (October 24, 2023). Florianópolis, SC, Brazil: Grupo Politeia, University of the State of Santa Catarina, Udesc Esag and act4delivery.

Social accountability aims to ensure that communities are leading agents in their development story by: (1) improving the quality of goods and services, making providers more responsive to citizens’ needs, (2) primarily through monitoring and oversight of those goods and services, (3) citizens’ collective efforts to hold power-holders to account, (4) providing a concrete mechanism to rework the social contract and strengthen local systems.

Social accountability has become increasingly important to development programming since the 2004 World Development Report spearheaded its first generation of programming. In 2016, Thomas Carothers synthesized global experts’ perspectives on what became known as the second generation. With an evolving global context, new research and evaluations and tacit knowledge on how those assumptions played out in practice, the time is ripe for asking what the evidence since 2004 can tell us about what the social accountability’s next generation might look like? 

In a new meta-analysis, Florencia Guerzovich and Tom Aston take stock of that knowledge through a systems lens and presents a possible “social accountability 3.0.” They draw  on a database of 157 cases of initiatives implemented by different civil society organizations around the world and the lived experience of practitioners. 

Scholarly debates present practitioners’ options in binary terms, contrasting 1.0 minimalist and 2.0 maximalist options. The review finds that this binary is inaccurate and misleading; it masks practitioners’ diverse interpretations of 2.0 and range of feasibility considerations. Instead, work in the last decade looks more like a mosaic. By opening the analysis to the broader range of evidence, and reflecting more critically on scholars’ assumptions, a more adaptable middle path for social accountability 3.0 emerges. 

The main thread of social accountability 3.0 and what distinguishes it from previous generations is a focus on its contribution towards more responsive systems and accountable social contracts. In particular, social accountability should be considered as an operational means to rework social contracts.

An accompanying brief presents a working framework with the key components and 10 do’s and don’ts of social accountability 3.0. 

Read More: 

Background Paper: Guerzovich, Florencia and Aston, Tom. Social Accountability 3.0: Engaging Citizens to Increase Systemic Responsiveness. Background Paper (January 16, 2024). Florianópolis: Grupo Politeia, Udesc Esag and act4delivery.

Framework: Guerzovich,F lorencia and Aston, Tom. Anatomy of Social Accountability 3.0: A working framework for moving forward (October 24, 2023). Florianópolis, SC, Brazil: Grupo Politeia, University of the State of Santa Catarina, Udesc Esag and act4delivery.

Construção Colaborativa de um Padrão para a Geração de Dados Abertos em Compras e Contratações Públicas a partir dos Municípios

Por Paula Chies Schommer, Fabiano Maury Raupp, Victoria Moura de Araújo e José Francisco Salm Jr.

Texto publicado no Blog Gestão, Política & Sociedade, do Estadão, elaborado na etapa final do projeto de pesquisa aplicada Proposta de padronização para a Geração de Dados Abertos em Compras e Contratações Públicas. O projeto foi realizado entre 2021 e 2023, sob a coordenação do grupo de pesquisa Politeia Udesc Esag, em parceria com a Prefeitura de Blumenau, a Secretaria de Administração do governo do estado de Santa Catarina, a organização da sociedade civil act4delivery. A iniciativa envolveu uma rede de diversos parceiros governamentais, da sociedade civil e órgãos de controle.

Texto completo – clique aqui ou na imagem a seguir:

Para saber mais sobre o projeto: Proposta de padronização para a Geração de Dados Abertos em Compras e Contratações Públicas.

Deputados criam fórum parlamentar de governo aberto com apoio da Udesc Esag

14/02/2023-11h17, em: Notícia – Deputados criam fórum parlamentar de governo aberto com apoio da Udesc Esag

A Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) tem nesta quarta-feira, 15, a partir das 11h, o evento de instalação do Fórum Parlamentar de Apoio ao Governo Aberto: Transparência, Participação e Inovação dos Serviços Públicos. A criação do fórum, proposta pelo deputado Napoleão Bernardes (PSD) e com o apoio de mais 17 parlamentares, tem contribuição de pesquisadores da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

Iniciativa de deputados estaduais partiu de discussões promovidas  pelo grupo de pesquisa Politeia, da Udesc Esag – Foto: Bruno Colaço /Alesc


A ideia foi discutida durante oficinas sobre governo aberto para candidatos ao Executivo e Legislativo nas eleições de 2022, promovidas em agosto pelo grupo de pesquisa Politeia, do Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas (Esag) da Udesc, em parceria com o Observatório Social do Brasil – Santa Catarina. Mais tarde, foi retomada em outros debates da Udesc Esag e começou a tomar forma com o apoio do grupo de pesquisadores do Politeia, liderados pela professora Paula Schommer.

O evento desta quarta terá transmissão em youtube.com/assembleiasc.

A proposta de criação do fórum parlamentar sobre governo aberto começou ser estruturada em 21 de outubro, durante a mesa-redonda “Perspectivas em transparência, governo aberto e participação no atual contexto político”, parte da programação da Semana Acadêmica do curso de graduação em Administração Pública, no Auditório da Udesc Esag.

Mediada pela professora Paula Schommer, a mesa-redonda contou com Napoleão Bernardes (já deputado eleito), a pesquisadora Vitória Araújo (egressa do curso de Administração Pública da Udesc Esag e com experiência na área) e dois representantes da Controladoria-Geral do Estado (CGE): a gerente de promoção do controle social, Carolina Kichller, e o assessor do gabinete da CGE Guilherme Kraus.

Desde 2021, pesquisadores do grupo Politeia da Udesc Esag já vinham participando de ações do 1º Plano de Governo Aberto do Estado de Santa Catarina, liderado pela CGE e resultado de uma parceria com a organização internacional Open Government Partnership (OGP), em especial na articulação das metas do plano estadual com os municípios.

Fórum

As discussões continuaram na virada do ano. “Em dezembro e janeiro, tivemos reuniões para detalhar o requerimento e contatos, e agora, no início do mandato, o requerimento foi apresentado e teve assinatura de 18 deputados de vários partidos”, explica a professora Paula Schommer. “Outros ainda poderão aderir durante o processo”.

Durante o lançamento parlamentar, haverá uma breve palestra sobre “o que é o Governo Aberto – governo aberto no âmbito legislativo”, com a professora Paula Schommer (Udesc Esag) e a pesquisadora Florencia Guerzovich (Act4Delivery). 

Assessoria de Comunicação da Udesc Esag
Jornalista Carlito Costa
E-mail: comunicacao.esag@udesc.br

A falta de dados sobre aborto no Brasil e suas consequências

Por Gabriela Pacheco, Henrique Hang e Nicole Souza*

No cenário brasileiro atual, crescem os problemas sociais nos âmbitos de saúde, educação, segurança pública, assistência social, dentre outros. Um dos temas enfrentados, ou não enfrentados, pelo país é a questão da prática abortiva e a ausência de uma regulamentação e assistência física e psicológica para as mulheres que recorrem a essa prática. Sabe-se que é necessário um aparato legal e de políticas públicas que assegurem e deem diretrizes sobre a questão do aborto. Entretanto, para que isso se consolide, ainda enfrentamos obstáculos, dentre eles a falta de dados específicos a respeito do tema, o que dificulta o processo de entender e prestar serviços de saúde pública adequados às mulheres que recorrem ao aborto.

A questão do aborto é complexa. Além de uma questão moral ou ética, é um tema de saúde pública, por tratar de casos de gravidez indesejada, de casos de violência sexual ou de saúde do nascituro, além de outras condicionantes. A problemática inicia-se com a criminalização da prática, condição esta que induz a um julgamento às mulheres e dificulta a elaboração de legislação e políticas públicas adequadas sobre o tema. Além disso, o debate político é esvaziado, preso a moralismos e a fatores religiosos, indo contra a inserção do tema do aborto na pauta de agenda política. Segundo Barroso e Andrade (2020, p. 246), “O aborto/abortamento é a interrupção intencional ou não do processo de gestação, podendo ser classificado como espontâneo ou provocado (involuntário ou voluntário)”. O aborto voluntário é tipificado como crime, tratado nos artigos 124 a 128 do Código Penal, com exceção de algumas situações, quando este não é punível, sendo elas: quando houver risco à vida da gestante; quando a gravidez resultar de estupro; e no caso de fetos anencefálos, desde 2012.

Cabe ressaltar que o Código Penal brasileiro se apresenta como um documento conservador, considerando a época de sua elaboração, 1940, logo, seu conteúdo condiz com os costumes sociais daquele momento (BARROSO; ANDRADE, 2020). Com o advento da Constituição de 1988, ficou claro que é dever do Estado brasileiro garantir a saúde como direito de todos os cidadãos, o que muitas vezes não é assegurado quando se trata de mulheres que recorrem ao aborto.

Apesar de a legislação brasileira ser restritiva e criminalizante, a prática clandestina do aborto ocorre em nosso país em escala alarmante, o que coloca em risco a vida de milhares de mulheres, sobretudo nos extratos da população de renda mais baixa, configurando-se, como a quarta causa de morte materna no Brasil (MENDONÇA, 2022). Mesmo com os avanços científicos capazes de proporcionar um abortamento seguro para as mulheres, os abortos inseguros continuam a ocorrer, causando mortes maternas.

No caso de mulheres vítimas de violência sexual, a política pública brasileira assegura sua assistência e a possibilidade de interrupção da gravidez. Entretanto, há um distanciamento entre o que é previsto pelas políticas públicas de saúde e a realidade do funcionamento dos serviços de aborto legal no país (MADEIRO; DINIZ, 2015). Para que as mulheres tenham acesso ao aborto legal, é necessário a diligência do Estado e uma articulação entre os diversos órgãos públicos para sua realização; como também, capacitação e preparo da equipe profissional, para que esta preste a assistência necessária e respeite as escolhas reprodutivas das mulheres; além de uma avaliação continuada para a consolidação dos serviços de forma eficaz e segura. Porém, essa agenda de articulação, eficácia e segurança de abortos já permitidos em lei tem sido marcada por retrocessos nos últimos anos.

O governo do atual presidente Jair Bolsonaro foi marcado por uma vertente conservadora e por ideais políticos de extrema-direita. Nunca foi prioridade do governo discutir e implementar políticas públicas sobre a questão do aborto, mas sim, reafirmar pautas conservadoras com um apelo aos supostos valores tradicionais cristãos. Isso nos mostra o quanto o Brasil retrocedeu não só sobre esse tema, mas sobre muitos outros relacionados aos direitos fundamentais de minorias.

Um reflexo disto é que o projeto de lei 478/2007, que cria o Estatuto do Nascituro, voltou a ser pauta recente na Comissão dos Direitos da Mulher, da Câmara dos Deputados. O Estatuto é trazido à tona desde 2007 pela bancada conservadora, formada em grande parte por parlamentares bolsonaristas. Caso tal legislação entrasse em vigor, o aborto seria dificultado e penalizado em todos os casos, inclusive aqueles previstos por lei, propondo direito inviolável à vida, transformando a prática abortiva em crime hediondo. Seria um grande retrocesso e mais um ato de violência contra as mulheres.

Além disso, fica evidente a falta de interesse por parte do poder público em discutir ou entender a realidade acerca do tema, visto que, infelizmente, segundo Madeiro e Diniz (2015), não existem dados consolidados sobre a qualificação e a composição das equipes de saúde que atendem casos de aborto; sobre o número de abortos realizados pelos serviços de saúde; tampouco disposição de informações claras e facilitadas às mulheres sobre o tema.

A ausência de dados abrangentes e confiáveis sobre o assunto deve-se a que, dadas as restrições legais ao aborto provocado no Brasil, a pesquisa acerca dele é dificultada. Os dados a que se tem acesso são, em sua maioria, resultados de pesquisas ou levantamentos feitos em hospitais (OSIS et al., 1996). No caso das causas de mortalidade materna, os dados e as informações são obtidos através do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), no qual os dados provenientes das Declarações de Óbito (DO) são processados. Porém, a avaliação da mortalidade materna, por meio dos dados disponíveis no SIM, enfrenta problemas de subdiagnóstico, principalmente entre os óbitos maternos por aborto, nos quais a dificuldade de classificação é ainda maior (CARDOSO; VIEIRA; SARACENI; 2020). A análise do SIM mostrou que, entre 2006 e 2015, foram registrados no Brasil 770 óbitos com causa básica aborto, além de 220 óbitos que têm o aborto como uma das causas mencionadas. Entre estes, há alguns que poderiam ter considerado o aborto como causa básica, mas não foram, como no caso de infecção puerperal, trazendo um problema relacionado à subnotificação (CARDOSO; VIEIRA; SARACENI; 2020).

É de conhecimento geral que a prática do aborto é realizada no país, mesmo sendo criminalizada. Sabe-se que as mulheres que optam por essa prática irão realizá-la independente da legislação vigente. Quando incluímos nesse panorama fatores como raça e classe social, vemos que o procedimento leva a um maior número de mortes de mulheres negras e de baixa renda, que já não são amparadas pelo Estado, tendo em vista o cenário de desigualdades sociais presente em nosso país. Além disso, muitas não possuem renda suficiente para exames ou médicos particulares, aumentando a insegurança dos procedimentos.

No que diz respeito ao acompanhamento dos dados por parte do poder público e da sociedade, não há, nos sistemas de informação de saúde brasileiro, qualquer dado sobre aborto inseguro. As bases de dados oficiais de saúde não permitem ter uma estimativa do número de abortos que ocorrem no país, apenas encontramos dados relativos aos óbitos por aborto, e estes sofrem com a subnotificação. Prejudicando, assim, devido à falta de dados, a compreensão sobre a real dimensão do problema, o que por amplia a falta de transparência e incorre na impossibilidade ou fragilidade de participação social frente ao Estado. Vemos então que, devido à inexistência de dados oficiais, subnotificação e criminalização do aborto, tornam-se impraticáveis posturas, ações e debates orientados por princípios de accountability, comprometendo o avanço acerca do tema no país.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Gabriela Pacheco, Henrique Hang e Nicole Souza, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências

BARROSO, Ana Beatriz de Mendonça; ANDRADE, Mariana Dionísio de (org.). “NÃO É POSSÍVEL ACESSAR ESSE SITE”: O DIREITO DE ACESSO AO CONTEÚDO PODE SER RELATIVIZADO NO CASO DE SITES COM INFORMAÇÕES SOBRE ABORTO? In: FERRARO, Angelo Viglianisi; HARTMANN, Gabriel Henrique; PIAIA, Thami Covatti. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, PROTEÇÃO DE DADOS E CIDADANIA. Cruz Alta: Editora Ilustração, 2020. Cap. 13. p. 237-257. Disponível em: https://bdjur.tjce.jus.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/251/Cap%c3%adtulo%20de%20livro_Bia%20Mendon%c3%a7a%20e%20Mariana%20Andrade%20%2811%29.pdf?sequence=1&isAllowed=y.  Acesso em: 22 nov. 2022.

CARDOSO, Bruno Baptista; VIEIRA, Fernanda Morena dos Santos Barbeiro; SARACENI, Valeria. Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?. Cadernos de Saúde Pública, [S.L.], v. 36, n. 1, p. 1-13, 21 fev. 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/01002-311×00188718. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/8vBCLC5xDY9yhTx5qHk5RrL/?format=pdf&lang=pt.  Acesso em: 20 nov. 2022.

MADEIRO, Alberto Pereira; DINIZ, Debora. Serviços de aborto legal no Brasil: ⠳ um estudo nacional. Ciência & Saúde Coletiva, Teresina, v. 21, n. 2, p. 563-572, fev. 2016. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015212.10352015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/L6XSyzXN7n4FgSmLPpvcJfB/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 21 nov. 2022.

MENDONÇA, Beatriz Pereira de. O TRATAMENTO DADO AO ABORTO NO BRASIL. 2022. 52 f. TCC (Graduação) – Curso de Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/25333/BEATRIZ%20PEREIRA%20DE%20MENDON%c3%87A.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 20 nov. 2022.

OSIS, Maria José D.; HARDY, Ellen; FAðNDES, Anibal; RODRIGUES, Telma. Dificuldades para obter informações da população de mulheres sobre aborto ilegal. Revista de Saúde Pública, Campinas, v. 30, n. 5, p. 444-451, 3 abr. 1996. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0034-89101996000500007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/4BnK3L64Qjfc4YqdwFN6QyG/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 20 nov. 2022.

PACAGNELLA, Rodolfo de Carvalho. Novamente a questão do aborto no Brasil: ventos de mudança?. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 01-04, jan. 2013. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0100-72032013000100001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbgo/a/bdZVGdnGdvVfHXsMyXzrxzK/?lang=pt. Acesso em: 19 nov. 2022.