Da ressocialização do apenado à reincidência no crime: uma responsabilidade exclusiva do Estado?

Por Liliane Mendes, Kamila Coelho e André Cardoso*

A abordagem da accountability social considera o engajamento mútuo entre o poder público, suas instituições e os cidadãos para o exercício do controle social sobre os processos e resultados da administração pública. A accountability social e a coprodução bens e serviços públicos são nossas lentes neste texto, em que buscamos refletir sobre o problema público da reincidência criminal do egresso do sistema prisional, discutindo o papel de diferentes atores para mitigação do problema e comentando sobre políticas públicas aplicadas pela gestão prisional no estado de Santa Catarina nessa área.

A reincidência em um crime, segundo o Código Penal em seu artigo 63 traz a seguinte definição:

“verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha sido condenado por crime anterior.”

No sentido amplo, consiste no novo ato delituoso cometido por um indivíduo que já tenha cometido um ou mais atos criminosos anteriormente.

As ações de uma instituição prisional a fim de prevenir a reincidência é algo que foi incorporado à função social da pena privativa de liberdade, passando a receber atenção do Poder público. Em lugar do punitivo como um fim em si mesmo, considera-se o caráter pedagógico e humanitário na Lei de execução penal, que norteará a execução da pena. Uma vez tendo sido privado a seu direito de liberdade, deve ser assegurado ao cidadão, pelo Estado, garantias mínimas constitucionais, como rege a Constituição Federal de 1988 acerca da dignidade da pessoa humana.

Apesar de ser referência nacional nas atividades laborais e ressocialização dentro dos presídios, ainda não é possível mensurar, no Estado de Santa Catarina, o quão eficiente  o sistema prisional catarinense tem sido em sua atribuição na prestação deste serviço público que lhe é atribuído.

O TCE/SC, em auditoria realizada em 2014, mostra que Estado não sabe quanto gasta por preso

e quais são os índices de reincidência nas unidades penais, e não segue diversas diretrizes da lei de execução penal, como o que se refere à alocação de presos. A lei, em seus artigos 82, § 1º, 87, 91, 93 e 102, estipula que a ocupação de cada estabelecimento penal deve se destinar a um público carcerário específico. Outro ponto verificado pela auditoria do TCE é a inexistência de registro dos índices de reincidência e o custo médio mensal de cada apenado para os cofres públicos.

Em um estudo feito por uma equipe de pesquisadores da PUC Minas, verificou-se que o tema da reincidência não tem merecido atenção por parte do aparato estatal responsável pelas políticas públicas direcionadas aos autores de ato infracional. No campo acadêmico, da mesma forma, são rarefeitas as produções científicas sobre o tema. Em função dessa lacuna de conhecimento, não existem dados oficiais e conhecimento aprofundado sobre a magnitude da reincidência no Brasil.

Sendo assim, fica impossibilitada a verificação da eficiência e efetividade das políticas de ressocialização. O que é um problema também de accountability sob a ótica da avaliação de resultados e de transparência dos gastos públicos no sistema penitenciário, o que exige informação clara e fidedigna, para avaliação da gestão das unidades prisionais e de seus resultados.

Pode-se questionar: uma instituição prisional, de posse dos devidos instrumentos legais, dotada de estrutura física, aparato estatal, armamento, sistema de monitoramento, cercado de muros e grades, é o que basta para ressocializar um indivíduo no cárcere?

No texto da LEP, como instrumento legal que norteia a execução da pena, versa em seu artigo 4º:

“O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança.”

De que modo pode haver coprodução entre o poder público, enquanto detentor da tutela do apenado, e os demais atores, como organizações comunitárias ou da sociedade civil, universidades, empresas e os próprios apenados e suas famílias e comunidades, para que se possa entender o problema e mitigá-lo?

Quando falamos em controle social acerca de um problema público, tendemos a pensar somente em um problema que nos afeta diretamente ou trás implicações negativas diretas em nosso dia-a-dia. Por isso, cobramos mais ações eficazes, mais transparência e impomos mais controle sobre o poder público. Convidamos o leitor a refletir sobre até que ponto a falta de controle e engajamento social se reflete sobre as ações do Estado, no que diz respeito ao processo de ressocialização?  Em que medida as políticas públicas pouco eficazes, ou a até mesmo negligenciadas por parte do Estado são legitimadas pela sociedade através do seu desinteresse nessa problemática?

Nos deparamos com um imenso e complexo desafio, que abarca fatores multidisciplinares, quando falamos da trajetória de um indivíduo que cumpre pena restritiva de liberdade dentro de um sistema prisional. Um aparato estatal que se espera siga as diretrizes legais para executar a pena, uma sociedade que por vezes se omite, enquanto espera um resultado eficaz do poder público. Vale refletir, ainda, que é questionável se falar em ressocialização sobre a vida de um indivíduo que muitas vezes teve seus direitos básicos negligenciados pelo Estado, como educação de qualidade, serviços de saúde e condições minimamente dignas.

Voltar a cometer um ato criminoso não é um fator que traz implicações negativas somente para o indivíduo egresso do sistema prisional, mas também para a sociedade como um todo, que tem papel importante nesse contexto, quando coopera direta ou indiretamente com o que pode ser um ciclo perverso de reincidência no crime ou um ciclo de ressocialização.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Liliane Mendes, Kamila Coelho e André Cardoso no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

Referências

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>

BRASIL, Lei Execução Penal: Lei 7.210/1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm 

ALVAREZ, M. Cesar. Punição. Sociedade e história: algumas reflexões. Revista Métis. História e Cultura, v.6, 2007. Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/issue/view/64>

FERREIRA, Angelita R. Crime-prisão-liberdade-crime: o círculo perverso da reincidência no crime. Serv. Soc. Soc. [online]. 2011, n.107, pp.509-534. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-66282011000300008&script=sci_abstract&tlng=pt

SANTA CATARINA, Modelo catarinense de ressocialização de presos termina o ano como referência nacional. Acesso em 16/09/2020. Disponível em:

<https://www.sc.gov.br/noticias/temas/justica-e-defesa-da-cidadania/modelo-de-ressocializacao-de-presos-catarinense-termina-o-ano-como-referencia-nacional>

SANTA CATARINA, TRIBUNAL DE CONTAS. Auditoria operacional na gestão do sistema prisional do estado de Santa Catarina; relatório resumido. Florianópolis, TCE/DAE, 2015. Disponível em: <http://www.tce.sc.gov.br/sites/default/files/cartilha_18_penitenciario_MIOLO.pdf>

SANTOS, Roberta F; CAETANO, André J. A reincidência Juvenil no Estado de MG. Disponível em:

http://portal.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20181210100418

Compliance e o setor público: mais burocracia?

Por Sabrina Sayuri Arakaki e Lidiana Sagaz Silva Alves*

O avanço das tecnologias e um mundo de possibilidades na era digital proporciona o acesso à informação a mais cidadãos. Com mais informação, o povo pode exigir dos governos mais explicações e uma conduta ética, responsável e transparente quanto aos gastos públicos e os escândalos de corrupção.

No âmbito institucional-legal, um mecanismo voltado a combater a corrupção, fraudes e desvios de conduta na relação entre organizações privadas e o setor público surgiu com a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, a chamada “lei anticorrupção”. Esta é considerada um marco do combate à corrupção no país pela inovação jurídica de prever responsabilização administrativa e civil para pessoa jurídica por atos ilícitos contra a administração pública.

Já a  Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, sinaliza para mudanças  no setor público relativas  ao trabalho de “compliance”,  ao estabelecer  a obrigação de que cada órgão elabore um código de conduta e integridade (art. 9 § 1).

O termo compliance, apesar de parecer novidade, é um tanto antigo. Surgiu como um sistema de regras e procedimentos para a regulamentação da economia política econômica internacional, em 1940, através do acordo de Bretton Woods. Os Estados Unidos foi o primeiro país a adotar em 1977, um programa de integridade devido ao escândalo de Watergate, através da Foreign Corrupt Practice Act (FCPA), uma legislação de combate à corrupção. Logo em seguida, mas ainda em 1977, o Reino Unido também passa a aplicar em suas instituições financeiras um sistema de integridade.

Com a crescente difusão do tema e o uso do termo compliance em diversos sentidos, surgem algumas questões: Afinal, compliance é sinônimo de burocracia? A compliance ajuda ou engessa a administração pública? Como lidar com o dilema controle versus eficiência?

COMPLIANCE E PROGRAMAS DE INTEGRIDADE

Antes de prosseguirmos, se faz necessário apresentar algumas definições de compliance e sua relação com (programas de) integridade. 

Observa-se que há certa mistura no uso da nomenclatura “programa de compliance”, mais usado no setor privado, e “programa de integridade”, usado pelo poder público no Brasil. Note-se que a palavra “compliance” aparece na legislação brasileira apenas uma vez, na lei nº 13.303/2016, conhecida como lei das estatais. A legislação brasileira vem utilizando a nomenclatura de programas de integridade para aplicação no setor público.

Cabe ressaltar que alguns autores e estudiosos da área entendem o compliance apenas por sua tradução literal, ou seja, como sendo somente o cumprimento de regras e normativas vigente, enquanto que os programas de integridade seriam programas de maior amplitude, que apesar de englobar o compliance não se atém apenas ao seguimento de normas, mas envolveriam o desenvolvimento ético e a atuação com transparência e accountability, tanto da organização como de todos que bela trabalham, buscando desenvolver uma  cultura de integridade.

Compliance

“Ato de cumprir, de estar em conformidade e executar regulamentos internos e externos, impostos às atividades da instituição, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e ao regulatório/legal.” (MANZI, 2008, p. 15)

“Um conjunto de regras, padrões, procedimentos éticos e legais que, uma vez definido e implantado, será a linha mestra que orientará o comportamento da instituição no mercado em que atua, bem como as atitudes de seus funcionários; um instrumento capaz de controlar o risco de imagem e o risco legal, os chamados ‘riscos de compliance’, a que se sujeitam as instituições no curso de suas atividades.” (CANDELORO, RIZZO e PINHO, 2012, p. 30).

Programas de integridade

Conjunto de medidas e ações institucionais voltadas para a prevenção, detecção, punição e remediação de fraudes e atos de corrupção. Em outras palavras, é uma estrutura de incentivos organizacionais – positivos e negativos – que visa orientar e guiar o comportamento dos agentes públicos de forma a alinhá-los ao interesse público.” (CGU, 2017, p. 6, grifo nosso)

O programa de integridade refere-se ao conjunto de mecanismos e procedimentos internos para aplicação efetiva de diretrizes que detectem e mitiguem os desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública. Dezesseis parâmetros são estabelecidos no decreto para avaliação de programas de integridade. Vale mencionar que esses parâmetros se assemelham às 12 diretrizes de boas práticas de controles internos, ética e compliance publicadas pela OECD.” (CASTRO; AMARAL; GUERREIRO, 2019, p. 188, grifo nosso)

Orientações da Controladoria-Geral da União, CGU, para programas de integridade

Em abril de 2018, a CGU publicou a portaria nº 1.089, com orientações para implementação de programas de integridade no setor público. A portaria estabelece uma implementação em 3 fases.

O programa de integridade, segundo a CGU, é estruturalmente parecido com um programa de compliance, deve ser entendido como uma estrutura orgânica, que funcionará adequadamente caso exista harmonia e conexão entre cinco pilares: Comprometimento e apoio da alta direção; Instância responsável pelo Programa de Integridade; Análise de perfil e riscos; Estruturação das regras e instrumentos e; Estratégias de monitoramento contínuo.

A CGU ressalta, ainda, que um programa de integridade pretende fazer com que os colaboradores de diversas áreas trabalhem em consonância, para uma atuação íntegra, mitigando os eventuais riscos de corrupção. Uma política de integridade permite que diversas ferramentas de controle e gestão passem a ser vistos de maneira sistêmica, alcançando assim sua máxima eficiência. O programa de integridade tem caráter preventivo, pois visa mitigar riscos de corrupção em determinada organização e, havendo desvios de integridade, o programa deve buscar identificar, responsabilizar e corrigir a falha de modo rápido.

Desde 2018, vários estados têm implementado programa de integridade em suas instituições.

COMPLIANCE, INTEGRIDADE E BUROCRACIA

Mas afinal, o compliance significa mais burocracia? Ajuda a melhorar processos e serviços ou engessa a administração pública? Como lidar com o dilema controle x eficiência, mantendo o foco na melhoria dos serviços públicos para os cidadãos e não no controle pelo controle?

Para elucidar essas questões, convidamos Rodrigo de Bona da Silva, doutorando em Economia e Governo pela Universidade Menendez Pelayo e Instituto Universitário de Investigação Ortega y Gasset (Espanha). Rodrigo é Mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina. Cursa Especialização em Ouvidoria Pública pela Organização dos Estados Iberoamericanos. Bacharel em Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como Auditor Federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União desde 1996 e como voluntário em iniciativas de controle social.

De acordo com Rodrigo, o compliance está mais ligado ao cumprimento de regras e normas, enquanto a integridade é algo mais amplo, que inclui, mas que não se restringe ao compliance. As políticas de integridade têm como propósito o aumento de confiança, da credibilidade e da legitimidade das organizações e governos, e o compliance é um dos elementos para isso.

A ideia do desenvolvimento desses programas os considera como ferramentas de desenvolvimento das instituições, para que atos ilícitos sejam mitigados. O compliance e a integridade são muito vinculados aos princípios de governança e accountability. Em particular, a accountability e o compliance relacionam-se na ideia de governança, que adota como preceitos básicos a equidade, a transparência e a responsabilização em relação às ações adotadas pela instituição e pelos funcionários, em consonância com os princípios adotados pela administração pública, completa Rodrigo.

Compliance implica em mais burocracia?

Rodrigo explicou que, quando falamos em inserir uma política de integridade e controle, estamos colocando um processo a mais na gestão. Existe um dilema entre eficiência e controle. Então, quando se pretende inserir em um processo um obstáculo a mais, nesse sentido, como princípio, compliance é uma burocracia. “Compliance é a legalidade, é o cumpra-se… é um conjunto de normas e procedimentos obrigatórios que me diz por onde seguir. Logo, em um sentido mais restrito, é uma burocracia”.

Cabe considerar, porém, que toda organização, em particular no âmbito público, tem suas normativas, regulamentos e controles internos. “O que precisamos entender é que programas de compliance (integridade) devem ser utilizados de maneira inteligente, como uma ferramenta que sirva para amparar as decisões do gestor e não de maneira a engessar a administração pública. Essas ferramentas devem trazer cada vez mais legitimidade à tomada de decisão. Se servirem apenas como uma etapa burocrática a mais, não estarão cumprindo seu papel de maneira eficiente”.   

O tema ainda é recente no Brasil. Porém, percebe-se um movimento no sentido de colocar em prática os programas com vistas a melhorar o desenvolvimento do serviço público, a eficiência e garantir ao servidor segurança para tomada de decisão.

*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Sabrina Sayuri Arakaki e Lidiana Sagaz Silva Alves, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

REFERÊNCIAS:

CANDELORO, Ana Paula; RIZZO, Maria Balbina Martins De; PINHO, Vinícius.

Compliance 360°. Trevisan; 2012.

CASTRO, P. R.; AMARAL, J. V.; GUERREIRO, Reinaldo. Aderência ao programa de integridade da lei anticorrupção brasileira e implantação de controles internos. R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, v. 30, n. 80, mai./ago. 2019, p. 186-201.

GIANELLO, Matheus Lothaller; Aplicação do compliance na administração pública;. São Paulo, 2018.

CGU- CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Manual para implementação de programas de integridade: orientações para o setor público. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/integridade/arquivos/manual_profip.pdf. Acesso em: 11 ago. 2020.

MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil – consolidação e perspectivas. Ed. SaintPaul, 2008.

PARA SABER MAIS SOBRE COMPLIANCE E INTEGRIDADE:

Accountability: pilar da integridade no serviço público

Compliance e administração pública do medo: um estudo de coo os programas de integridade podem dar maior legitimidade aos agentes públicos  

Compliance, ética e transparência

Compliance na administração pública

Compliance na gestão pública

Compliance no setor público: necessário, mas suficiente?

Governança pública

SOBRE ELEMENTOS DE PROGRAMAS DE COMPLIANCE:

Segundo Matheus Gianello (2018), mesmo com a peculiaridade e especificidade de organizações distintas, os programas de compliance compreendem sete elementos fundamentais e indispensáveis.

O primeiro deles é a padronização de condutas de acordo com os procedimentos internos da organização.

O segundo é a realização de treinamentos visando influenciar a cultura organizacional. Cabe difundir o reconhecimento que as políticas são aplicáveis a todos dentro da instituição independente do cargo ocupado e demonstrar que desde o CEO da empresa, ou o Prefeito de uma cidade, todos estão comprometidos com a novas políticas. Quanto maior autonomia maior as chances de sucesso do programa.

Como terceiro elemento, surge o desenvolvimento da educação dos servidores, para que saibam como agir diante de situações de conflito. Logo, além de treinamentos, pode haver palestras, considerando o perfil dos funcionários e da organização. Os treinamentos são importantes para o desenvolvimento da cultura da integridade, relacionando-se com o conhecimento sobre as normativas da organização, enquanto o desenvolvimento tem como característica a internalização dessa cultura para saber como e quando deve ser utilizada.

No que tange ao controle, o compliance (ou integridade) envolve tanto o monitoramentodiário para controle operacional, como a auditoria, que é uma ação mais pontual com escopo e critérios pré-definidos.

Um ponto que costuma ser desafiador, embora importante, é o incentivo e a criação de um canal de denúncias, assegurando-se que não haverá retaliação e que as práticas denunciadas serão investigadas de forma anônima.

As medidas disciplinares são o sexto elemento fundamental. É aconselhável que elas já estejam definidas em caso do descumprimento das normas. O grau de seriedade da infração deve ser levado em consideração no momento da aplicação da punição.

Por fim, o sétimo elemento é a prevenção e reação, a garantia de que estes elementos sejam respeitados e que haja a demonstração de que o esforço mútuo está gerando resultados para a prevenção de atos ilícitos.

Gestão de processos no setor público: uma ferramenta de accountability

Por Ayla Mafra, Icleusa Viana, Rosana Bernardes e Tatiane Cunha*

A sociedade vem se tornando mais exigente quanto a eficiência, qualidade e transparência dos serviços públicos. Para atender a essa demanda, a administração pública tem sido impelida a mudanças de paradigmas. A gestão de processos, utilizada em segmentos do setor privado e do setor público há muitos anos, está em fase de implementação em muitos órgãos do estado de Santa Catarina, visando atender às expectativas de transparência, eficiência e qualidade nos serviços prestados.

Para analisar a relação entre accountability e gestão de processos, entrevistamos dois servidores do estado de Santa Catarina. A assessora de controle interno Juliana Wust Panceri, que atua no Controle Interno da Secretaria Estadual da Infraestrutura e Mobilidade (SIE) e Marcelo Eduardo Schubert, administrador, coordenador do Escritório de Gestão de Processos do governo de SC (EPROC SC).

Ambos exercem atividades diretamente relacionadas e integradas ao conceito de accountability, uma vez que a análise, o diagnóstico e a melhoria contínua dos processos, alinhada à transparência da gestão, possibilita aos cidadãos o controle das ações realizadas pela administração pública.

No vídeo a seguir, Juliana relata sua experiência com a gestão de processos em sua atuação no controle interno, ressaltando vários pontos e exemplos interessantes:

Vídeo – apresentação de Juliana Wust Panceri sobre a relação entre accountability e gestão de processos

Já Marcelo contribuiu respondendo às perguntas a seguir, a partir do ponto de vista de um especialista em gestão de processo na administração pública e que conhece os desafios da accountability:

Exemplos de como as melhorias em processos geram efeitos de transparência e accountability?

Marcelo: “O processo de Emitir Certidão de Jurisdição Municipal é um caso onde a melhoria do processo trouxe ganhos expressivos tanto para os executores como para o cidadão.

“Antes dessa melhoria, o cidadão que necessitasse desse serviço deveria comparecer presencialmente à Secretaria do Planejamento munido de toda a documentação necessária e entregá-la com um ofício ao secretário da pasta, solicitando a emissão da certidão. Após a entrega dos documentos, o cidadão não tinha informações do andamento do processo, a não ser que ligasse para o órgão e conseguisse falar com o setor responsável, o qual não tinha um controle efetivo de onde estavam os processos e em que fase se encontrava. Caso faltasse algum documento, o servidor deveria entrar em contato com o cidadão para solicitar que fosse encaminhado por e-mail. Se tudo corresse bem, num prazo médio de seis meses, o cidadão seria comunicado de que a certidão estava disponível para retirada, devendo comparecer ao órgão ou solicitar o encaminhamento via correio.

Nem o cidadão, nem os servidores e gestores da pasta tinham uma visão completa do status e andamento da execução das atividades, impossibilitando qualquer nível de controle na execução dos trabalhos. Com o trabalho conjunto entre servidores doEPROC e os responsáveis pelo processo, fizemos a análise, diagnóstico e proposição de melhoria, conseguindo aperfeiçoar a interação do cidadão com o órgão e as atividades executadas pelos servidores. Isso levou a um ganho de agilidade de 98% do tempo que era executado anteriormente. De seis meses, em média, esse processo passou a ser realizado em no máximo dez dias, chegando, em alguns casos, a ser efetivado no mesmo dia.

A melhoria do processo trouxe ganhos substanciais na forma de entrada, execução das atividades e saída do processo, permitindo o acompanhamento do cidadão, o andamento e a conferência dos gestores do que está sendo executado conforme as normas e regras vigentes. A implantação incluiu a disponibilização de formulário digital no portal de serviços do governo e a integração deste com o SGPe – Sistema de Gestão de Processos Eletrônicos”.

Exemplos de como os problemas na gestão de processos implicam em déficits de accountability?

Marcelo: “A transparência é um dos pontos essenciais para a segurança das ações realizadas pelos gestores públicos, possibilitando à sociedade o controle social das ações do Estado. Nesse sentido, o EPROC vem desenvolvendo, por meio do gerenciamento de processos de negócio, com análise, diagnóstico e proposição de melhoria de processos, disponibilizar aos servidores e gestores públicos um repositório de gestão do conhecimento pautado na documentação das atividades realizadas e disponibilizando toda a informação à sociedade. Esse repositório está sendo construído  e disponibilizado no portal de dados abertos do governo.

É verdade que a administração pública deve sempre executar suas ações pautadas na lei e normas, porém muitas vezes a lei por si só não é clara o suficiente para entender o que realmente se pretende entregar de valor à sociedade. Nesse sentido, o gerenciamento de processos de negócio pode auxiliar na identificação das ações e atividades para o cumprimento dessas normas e na entrega de produtos e serviços mais adequados aos interesses da sociedade.”

Que cuidados ou recomendações se pode fazer no desenho de processos para que estes favoreçam a accountability?

Marcelo: “Dentre as ações de análise, diagnóstico e proposição de melhorias que realizamos juntamente com os atores envolvidos no processo, destacamos a importância da transparência das ações, para que todos os envolvidos tenham a clareza dessas, da maneira como devem ocorrer e de que forma devem ser entregues.

Acredito que uma vez que o processo foi modelado pensando na entrega de valor que  irá gerar, considerando o processo ponta a ponta, avaliando os riscos inerentes da sua execução e dispondo da clareza da execução dessas atividades, por meio do acompanhamento em sistemas informatizados, proporcionamos mais  celeridade na execução dos trabalhos possibilitando o constante monitoramento e controle tanto da sociedade, dos próprios gestores, bem como dos órgãos de controle.”

Como a accountability pode ajudar a aprimorar os processos?

Marcelo: “A disseminação e implantação de uma cultura de gestão de processos, alinhada à implantação de um Programa de Integridade e Compliance, onde todos os servidores, agentes e funcionários da entidade estejam engajados nesse propósito, demonstrando nas atitudes diárias que as suas ações são realizadas de acordo com as leis, normas e regulamentos.

Dessa forma, o gerenciamento de processos de negócio possibilita que o conhecimento construído ao longo do tempo, alinhado às melhorias implantadas sejam documentadas e registradas num repositório de gestão de conhecimento em processos para que esse conhecimento não fique mais exclusivamente na cabeça dos servidores e sim disponível para consulta de qualquer pessoa. Assim, poderemos eliminar aquela máxima de que isso sempre foi assim, e que não precisamos inventar a roda toda vez que um servidor se aposenta ou assume uma nova atividade.”

Como envolver os vários interessados em cada processo – gestores públicos, parceiros, fornecedores e usuários – tanto no desenho como na avaliação e aprimoramento constante dos processos?

Marcelo: “Uma vez implantado uma estrutura formal de gerenciamento de processos de negócio, seja no âmbito do governo como um todo (como por exemplo o Eproc) ou em unidades dentro dos órgãos (NuProc) a disseminação da cultura de gestão de processos começa a ser desenvolvida naquela unidade e acredito esse seja um pontapé inicial para envolver todos os interessados.

Porém, isso não basta. Deve-se envolver conjuntamente a alta administração, principalmente na figura do gestor máximo, para que haja um engajamento de todos.

Dentre as demandas diárias de cada órgão, deve-se verificar quais ações são importantes e priorizadas pela alta administração, pois esses são os objetivos a serem alcançados. Desta forma, quando o gestor define o gerenciamento dos processos como uma prioridade na sua gestão, seja para ganho de performance, seja para resguardar seu “cpf” por meio do compliance, percebe-se uma maior facilidade no envolvimento de todos no diagnóstico e melhoria dos processos daquela organização.”

Como pensar em processos que sejam bem desenhados, com critérios razoáveis, que favoreçam a flexibilidade e discricionariedade, com transparência e responsabilização dos envolvidos?

Marcelo: “Para responder a essa pergunta, devemos pensar quais conhecimentos necessários devemos ter para alcançar esses objetivos. A construção e disseminação de um modelo de governança por processos é um ponto fundamental para que possamos desenvolver a modelagem de processos.

Um modelo de governança de processos traz todo o conhecimento e metodologia necessários para a implantação de uma cultura de gestão por processos nas organizações. A partir da construção desse modelo e a implantação de uma estrutura formal de gestão de processos, com pessoas detentoras desse conhecimento e metodologia, se conseguirá dispor de processos bem desenhados que atendam aos objetivos de entregar valor à sociedade.

O conhecimento está na cabeça das pessoas que realizam as atividades no dia a dia, para tanto, as áreas de gestão de processos devem capturar e desenvolver esse conhecimento com todos os envolvidos, para que se busque a melhor maneira de executá-lo, compartilhando e disponibilizando para todos de forma pública e transparente.

Marcelo Eduardo Schubert

Acredito que a interação entre as diversas áreas e órgãos na execução dos processos é de suma importância para favorecer a accountability. Uma vez identificado e envolvendo todos os atores do processo, se possibilita um amplo debate sobre as atividades desenvolvidas, permitindo que os atores se identificam como parte, entendendo as angústias e as suas necessidades, contribuindo para que todos busquem o objetivo de entrega de valor público para a sociedade.”

Podemos pois observar que a gestão de processos possibilita que os envolvidos estejam alinhados aos mesmos objetivos, sabendo da sua importância na contribuição do resultado e na entrega de valor, favorecendo o desempenho de suas atribuições e aplicação dos recursos públicos.

*Entrevistas realizadas pelas acadêmicas de administração pública Ayla Mafra, Icleusa Viana, Rosana Bernardes e Tatiane da Cunha para a disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

Acesso à informação e transparência: o desempenho de Florianópolis e as iniciativas cidadãs

Por Maria Eduarda da Silva Bernardo, Renato Luz e Thiago Guimarães*

Em tempos de pandemia, é preciso redobrar os cuidados acerca da destinação dos recursos públicos. Nos últimos meses, inúmeras notícias relacionadas às compras públicas assolaram os noticiários, seja por falta de planejamento ou despreparo, seja por indícios graves de corrupção. Diante desse cenário, como está a situação do município de Florianópolis diante da necessidade de oferecer transparência?

Antes de tudo, cabe conhecer um dos principais instrumentos utilizados por cidadãos, jornalistas e organizações da sociedade civil, a chamada “LAI”.

Lei de acesso à informação

A lei de acesso à informação, LAI (12.527/2011), é um dispositivo legal em vigência desde 16 de maio de 2012 para obrigar órgãos públicos da administração direta e indireta a publicizar seus dados. Isso torna a transparência a regra na gestão pública, abrindo possibilidade para poucas exceções para que se tenha sigilo em casos como: preservar a identidade dos cidadãos dentro de programas governamentais ou informações que possam atrapalhar negociações, a intergovernabilidade ou algum julgamento.

Além dessa lei federal que obriga todos os entes federativos a publicizar seus dados, cada ente da federação deve produzir suas próprias legislações especificando como se dá o acesso à informação pública e de que forma deve ocorrer. A LAI demanda que todos os entes federativos se adequem a um novo contexto, buscando uma administração pública mais transparente e abrindo a possibilidade para que haja não somente o controle por parte dos entes, mas que a população tenha informações suficientes para fiscalizar e cobrar representantes, para acessar serviços públicos e contribuir com a solução dos problemas.

É possível aferir que a LAI, além de buscar garantir a transparência nos órgãos da administração pública direta e indireta, facilitando o acesso à informação por parte de qualquer cidadão, contribui para  fomentar uma administração pública mais responsável, possibilitando a  accountability, envolvendo os cidadãos (de forma individual ou coletiva) para exercer pressão sobre seus representantes, visando a qualidade dos serviços, das políticas e dos gastos públicos e verificando a eficiência (ou ineficiência) do poder público.

Tratando sobre o município de Florianópolis/SC

Em Florianópolis, a regulamentação da LAI e  do direito de acesso à informação pelo cidadão na capital foi feita através do Decreto nr  9988/12, no qual o Executivo define que a responsável pela disponibilização das informações ao cidadão no âmbito da administração direta e indireta do Poder Executivo municipal é a  Secretaria Executiva de Controle Interno e Ouvidoria. A esta compete orientar, cobrar e fiscalizar a efetividade por parte dos órgãos públicos na prestação desse serviço. O Decreto diz como é feita a disponibilização e informa alguns termos para o entendimento da matéria legislativa como um todo – utilizando como base a legislação federal.

A lei municipal No 9447/14, por sua vez, define a obrigatoriedade do Portal da Transparência em Florianópolis, sob responsabilidade da Secretaria Municipal de Administração (SMA), a quem cabe  mantivesse sítio eletrônico para mantê-lo sempre atualizado e em conformidade com a lei.

Para verificar a situação do município, abordaremos a avaliação Escala Brasil Transparente, EBT, uma metodologia de monitoramento da transparência de estados e municípios adotada pela Controladoria Geral da União – CGU, concentrada na transparência passiva, sendo realizadas solicitações reais para os entes. As notas resultantes do processo avaliativo são dadas através da realização de quatro pedidos de acesso à informação (via LAI) para Estados e municípios, sendo três destes pedidos voltados para assuntos das principais áreas sociais: saúde, educação e assistência social. A quarta solicitação de informação diz respeito à regulamentação do acesso à informação pelo ente avaliado, servindo como uma pergunta de segurança para a mensuração realizada sobre a existência do normativo local.

Entre os anos 2016 e 2017, Florianópolis obteve a nota 2,08, uma das mais baixas entre os municípios brasileiros. Fatores que contribuíram para esta nota foram: 1) falta de previsão para autoridades classificarem informações quanto  ao grau de sigilo; 2) falta da localização no site da prefeitura a indicação quanto à existência de um serviço presencial; 3) falta de localização no portal da prefeitura de alternativa de enviar pedidos e solicitações de forma eletrônica; 4) não há possibilidade de acompanhamento dos pedidos realizados; 5) pedidos realizados são geralmente respondidos fora do prazo e 6) pedidos realizado não respondidos em conformidade com o que foi solicitado.

Considerando o ano de 2020, ainda que Florianópolis tenha melhorado o seu score no ranking, atingindo a marca de 6,87 (Acesse aqui), o município permanece abaixo da média dos municípios catarinenses avaliados (pontuação de 7,6).  “O portal do Mapa Escala Brasil Transparente fornece um mapa interativo que retrata, através de uma escala de cores, a pontuação auferida dos municípios avaliados em seus respectivos estados.” Na figura 1, vê-se municípios de Santa Catarina conforme avaliação de 2018.

Figura 1: Escala Brasil Transparente em municípios de Santa Catarina

Fonte: CGU, 2020

A pontuação é o resultado da aplicação de dois questionários, que visam verificar a situação da transparência ativa e passiva dos municípios analisados. Em relação à transparência ativa, quando os dados são disponibilizados sem que sejam expressamente solicitados, o relatório aponta para a falta da divulgação, por parte do município, de relatórios estatísticos que constem o número de pedidos de lei de acesso à informação (recebidos, atendidos ou indeferidos). A falta de relação das bases de dados abertos do município também foi apontada pelo relatório. Referente à transparência passiva, que ocorre em resposta a solicitações de informação (por não ter sido publicizada ou não estar completa) por indivíduos ou coletivos, por meio de  Serviços de Informação ao Cidadão (SIC), o relatório indica, justamente, a ausência de um SIC presencial, impossibilitando a entrega de um pedido de forma presencial.

Uma das ações de destaque que visam melhorar a transparência do município é a criação da Comissão Parlamentar Especial pela Transparência, CPE, na Administração Pública de Florianópolis, com a finalidade de analisar diversos aspectos da transparência da cidade, entre eles a adequação à LAI, ações voltadas para a transparência das compras públicas e estratégias para melhorar a interlocução junto à sociedade civil. O trabalho da Comissão é fruto de cooperação entre a Câmara de Vereadores, agentes públicos (em especial, agentes de controle e universidade) e organizações da sociedade civil.

Entre as iniciativas de promoção da transparência da sociedade civil, pode-se citar o Observatório Social do Brasil, que integra uma rede de organizações que visam promover a transparência e o controle social dos gastos públicos, por meio da participação de cidadãos que se voluntariam para fiscalizar o serviço público. Além de participar dos trabalhos realizados na CPE, o Observatório Social de Florianópolis faz parte de uma iniciativa de enfrentamento ao desvio de recursos públicos em tempos de pandemia, chamada Força Tarefa Cidadã, resultado da articulação de uma rede de atores que se comunicação para a verificação de indícios de má gestão no serviço público.

As ações da Força Tarefa Cidadã são pautadas em três eixos, que são Monitoramento, Transparência e Ação Integrada. Entre as referências para o trabalho, está uma cartilha elaborada pela Transparência Internacional-Brasil e o Tribunal de Contas da União, para auxiliar a sociedade na verificação da transparência nas contratações emergenciais  em resposta à Covid-19.

Uma das organizações participantes dessa ação é a OSB-Santa Catarina, que por sua vez mobiliza os observatórios municipais em uma ação integrada no âmbito da Rede de Controle da Gestão Pública em Santa Catarina, para a verificação dos padrões de transparência do estado. Um dos resultados desse esforço coletivo é a produção de um mapa (Figura 2) que aponta os municípios catarinense que apresentam problemas no que tange à transparência, a partir de um processo avaliativo comum a todas as organizações da Rede, que avaliou os portais dos 295 municípios do estado sobre contratações emergenciais do Covid-19.

Figura 2: Mapa Transparência Municipal Covid-19 em Santa Catarina

Fonte: Rede de Controle da Gestão Pública de Santa Catarina, 2020

Segundo o relatório apresentado pelo Observatório, acerca da avaliação da transparência dos municípios catarinense em relação à Covid-19, Florianópolis está classificada como “Parcialmente Cumprido”, o que corresponde a cerca de 33% dos municípios catarinenses.  Verifica-se a aplicação de diversos roteiros avaliativos que procuram verificar a qualidade da informação prestada nos portais, as informações disponibilizadas sobre compras públicas, avaliando-se editais licitatórios, além das informações sobre dispensa/inelegibilidade, contratos, pagamentos e empenhos.

Ante o exposto, nota-se a importância dessas avaliações no estímulo à transparência no município de Florianópolis. A leitura do desempenho da administração pública, de forma sistematizada e padronizada, possibilita a comparação entre municípios, facilitando o entendimento do cidadão e trazendo referências para promover respostas mais ágeis e adequadas. Os resultados publicados, quando realizados por organizações reconhecidas e de credibilidade, exercem influência política sobre os seus gestores. Rankings abrangentes oferecem resultados mais isentos, na medida em que são igualmente aplicados a entes pares. Quando acompanhados de uma metodologia clara, transformam-se em roteiros que oferece um norte para a identificação de oportunidades de melhorias. 

Além dessas iniciativas, a própria administração pública pode utilizar ferramentas de gestão para implantar sistemas mais robustos de transparência, buscando referências em prefeituras e Estados que possuem avaliações positivas de órgãos de controle social com relação ao acesso à informação. São pequenas ações que podem garantir grandes frutos no futuro com relação ao controle e à confiança social. Aos cidadãos, cabe pressionar e colaborar para que isso seja prioridade dos agentes públicos.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Maria Eduarda da Silva Bernardo, Renato Luz e Thiago Guimarães, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

Referências

Lei de Acesso à Informação: transparência ao seu alcance. Instituto Politize. Disponível em <https://www.politize.com.br/lei-de-acesso-a-informacao-transparencia-ao-seu-alcance/>. Acesso em: 10 jul. de 2020

O que é Accountability e como fortalece a democracia? Disponível em <https://www.clp.org.br/o-que-e-accountability/> Acesso em: 12 jul. de 2020

Lei de Acesso à Informação – A informação é direito de todos. Disponível em <https://www.novo.justica.gov.br/news/lei-de-acesso-a-informacao-a-informacao-e-direito-de-todos#:~:text=Outro%20importante%20aspecto%20da%20lei,a%20segunda%2C%20refere%2Dse%20%C3%A0> Acesso em: 12 jul. de 2020

BRASIL, LEI No 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm> Acesso em: 15 jul. de 2020

Transparência dos portais dos municípios. Disponível em <http://sites.google.com/view/transparenciacovidsc> Acesso em: 20 jul. de 2020

BERNERS-LEE, Tim. 5 star data, 2012. Página Inicial. Disponível em <https://5stardata.info/pt-BR/> Acesso em: 14 set. de 2020

Qual a importância da transparência pública no tempo de pandemia?

O caso da Prefeitura de Florianópolis, que construiu um mecanismo de transparência, mas tomou decisões questionáveis durante a sua operação.

Por Lucas Almeida, Luana Vandresen e Thiago Alves*

A responsabilização sobre a má gestão dos recursos públicos é relativamente recente no Brasil. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) foi incluída no ordenamento jurídico brasileiro, complementarmente à Constituição de 1988, como o primeiro passo de uma política regulatória que “estabeleceu um padrão de comportamento” sobre todos os entes federativos em relação à gestão dos recursos públicos (SECCHI; COELHO; PIRES, 2019).

Desde então, o Brasil vem avançando sobre questões relacionadas à transparência e ao controle, institutos que fazem parte do conceito de accountability, no que diz respeito a políticas regulatórias. É o caso da Lei de Transparência e da Lei de Acesso à Informação, ambas versando principalmente acerca da transparência de informações públicas, sob perspectivas diferentes.

Enquanto a Lei de Transparência foi construída sob a ótica de a Administração Pública fornecer as informações de forma ativa – isto é, disponibilizando por conta própria as informações nos sítios eletrônicos – a LAI trabalha sob uma lógica passiva, a necessitar que os cidadãos requeiram ao Poder Público as informações públicas que desejam obter, no intuito de efetivar o direito constitucional de acesso à informação. São subordinados a essas Leis os órgãos públicos da administração direta dos três Poderes e de todos os entes federativos, incluindo o Ministério Público e Tribunal de Contas (BRASIL, 2009; 2011).

A partir desse panorama em que o Estado brasileiro começa a construir uma política de transparência – a chegar na compreensão de que não somente o Poder Público deve efetivar o acesso às informações públicas, como também os cidadãos podem requerê-las – é que se levanta a importância da transparência antes e durante a pandemia do novo coronavírus.

Nesse sentido, cabe colocar que, anteriormente à pandemia, a lógica da importância da transparência era principalmente sobre esta ser um “instrumento auxiliar” no combate à corrupção e no controle sobre informações disponibilizadas, que poderiam determinar uma boa ou má gestão.

De outra forma, a atual pandemia nos trouxe uma nova perspectiva de análise da transparência de informações públicas. Perguntas como “Quantos infectados nós temos? Quantas pessoas vieram a óbito? Quantas vidas foram recuperadas? Quais são as medidas restritivas? Quais os procedimentos e as etapas para a compra de insumos para enfrentar a doença?” passaram a ser comuns entre a população. Assim, os jornais, as redes sociais e os agentes políticos deram uma nova importância no olhar sobre transparência pública: aquela que informa o número de mortos, a progressão da epidemia, a capacidade do sistema de saúde, o nível de contágio do vírus e quais são as medidas restritivas que influenciam diretamente na qualidade de vida das pessoas.

É sobre esse novo olhar que a transparência pública ganha um outro patamar de importância: saindo de uma transparência distante da população para uma transparência mais prática, que a população entende impactar diretamente na sua vida.

O Caso da Prefeitura de Florianópolis

Com o advento da pandemia da Covid-19 no Brasil, a Prefeitura do Município de Florianópolis, em abril de 2020, lançou um instrumento chamado “Covidômetro”, que serve para avaliação diária dos casos de coronavírus na cidade, e possui a função de controlar e avaliar de forma objetiva a situação de saúde no Município. Além disso, o instrumento também atualiza e informa a população quanto ao nível do risco de contágio que a cidade está enfrentando em tempo real, bem como as medidas a serem adotadas pelo Poder Público de acordo com o risco.

O instrumento possui basicamente dois espaços: o “painel inicial” (administrado pela Secretaria da Casa Civil) e a “sala de situação”, que utiliza a ferramenta Power BI para apresentação dos dados (administrado pela Secretaria da Saúde em conjunto com a empresa Celk Sistemas). No primeiro, são apresentados os dados e números gerais, as atividades e possíveis restrições determinadas pela Prefeitura, enquanto no segundo são apresentados os dados detalhados e discriminados desde fevereiro de 2020 através de gráficos.

Imagem 1: Sala de Situação (Power BI). Covidômetro.

Fonte: Prefeitura de Florianópolis

 

Os dados da sala de situação são preenchidos pelos profissionais da saúde no sistema da empresa CELK, após os atendimentos realizados em Centros de Saúde. Esses dados ingressam no sistema e geram uma base de dados que é utilizada para a criação dos gráficos disponibilizados na sala de situação, nas páginas 1, 2 e 4.

A página 3 é de responsabilidade da Secretaria Municipal de Saúde, que coleta os dados desta mesma base e faz um pré-processamento (tratando os dados para ficarem mais fidedignos à realidade), já que os dados brutos (preenchidos pelos profissionais da saúde) podem incorrer na possibilidade de conter erro humano, o que se comprovou em estudo realizado pelos autores em 01/09/2020.

Problemas na transparência do Município de Florianópolis no combate ao COVID-19

Apesar da construção do Covidômetro ser um avanço em relação à transparência de informações no combate ao Covid-19, a Prefeitura de Florianópolis tomou decisões questionáveis ao alterar as restrições de atividades e as recomendações em relação à classificação do risco durante a pandemia. No dia 16 de Julho de 2020, conforme matéria da NSC, o Covidômetro passou de “alto risco” para “altíssimo risco”, o que pelas recomendações antes do dia 16 implicaria em lockdown; na mudança para “altíssimo risco” a recomendação mudou para “fique em casa”.

Além disso, as restrições de atividades também mudaram: o que antes seria uma restrição severa com disponibilidade apenas de serviços essenciais, mudou para atividades bem menos restritivas.

Veja: “Covidômetro e as tomadas de decisão da Prefeitura de Florianópolis”

Um outro problema que pode ser apontado em relação ao Município de Florianópolis são os quesitos não apresentados no Ranking de Transparência no Combate ao Covid-19, realizado pela organização da sociedade civil “Transparência Internacional Brasil”, que coloca Florianópolis na 15° colocação entre as Capitais do país na avaliação de julho de 2020. Esta apresenta que o Município não possuía em seu sítio eletrônico nenhum mecanismo de busca direto e legislação específica em relação às compras emergenciais, bem como não havia nenhum conselho, comissão ou qualquer órgão coletivo que acompanhasse as compras realizadas pelo Município.

Considerações

De fato, pode-se perceber que Florianópolis tem muito a evoluir no debate da transparência e accountability no setor público. É em razão disso que a Universidade, em conjunto com as organizações da sociedade civil, se apresenta como um meio para atuação direta na fiscalização e acompanhamento de questões relacionadas à transparência. O que se propõe é que, cada vez mais, seja fomentada a ideia da tomada de decisão conjunta entre o Poder Público e diferentes categorias da sociedade civil. Para essa fiscalização ser viabilizada, tem-se alguns meios possíveis: webinars, audiências públicas, congressos, ofícios, petições públicas etc.

Além disso, entende-se que a criação de mecanismos de transparência, por si só, não é suficiente para determinar um bom nível de transparência de um ente público. É preciso perceber se as informações são acessíveis, se cumprem com o mínimo estabelecido pelas leis supracitadas e se atendem as expectativas dos cidadãos.

Percebe-se, inclusive, que a discussão da accountability é bastante focada na divulgação e transparência de dados, enquanto a discussão sobre a qualidade desses dados não é tão mencionada. Isso faz com que outros elementos do conceito – que podem se mostrar tão importantes quanto à disponibilização ou não de dados – sejam excluídos do debate.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de Administração Pública Lucas Almeida, Luana Vandresen e Thiago Alves, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

Referências

BRASIL. Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011. Lei de Acesso à Informação. Brasília, DF: Presidência da República, 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em: 06 set. 2020.

BRASIL. Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000. Brasília, DF: Presidência da República, 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm. Acesso em: 8 set. 2020.

BRASIL. Lei Complementar no 131, de 27 de maio de 2009. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp131.htm . Acesso em: 8 set. 2020.

SECCHI, Leonardo; COELHO, Fernando de Souza; PIRES, Valdemir. Políticas Públicas: conceitos, casos práticos, questões de concursos. 3. ed. Cengage: São Paulo, 2019.

Com nível altíssimo de risco, recomendação de lockdown some do ‘covidômetro’ de Florianópolis. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/colunistas/dagmara-spautz/com-nivel-altissimo-de-risco-recomendacao-de-lockdown-some-do-covidometro . Acesso em: 06 set. 2020.

Accountability e acesso a informações da Anatel para o mercado: existe?

Por Bruno Fagundes de Souza, Vinícius Mafra Senna e Victor Alves Sales*

A criação de agências reguladores de serviços públicos no Brasil, a partir dos anos 1990, foi influenciada por modelos adotados em países como os Estados Unidos da América e países da Europa, onde as agências possuem modelos distintos. “Inglaterra e Alemanha, por exemplo, estão em planos opostos. Enquanto o modelo inglês guarda semelhanças com o norte americano, o da Alemanha caracteriza-se como o que menos delega poder às agências regulatórias” (RAMOS, 2005, p.104).

A implementação de agências no Brasil se deu em um período em que se propunha a diminuição do tamanho do Estado, por meio de reformas, programas de privatizações e desestatizações. No tocante a privatizações e desestatização, o Poder Público possuía mais interesse no modelo regulatório nas relações de investimento em serviços públicos e de interesse coletivo, advindas do capital internacional, que influenciaram as regras do jogo e as relações entre poder público e setor privado.

A Agência Nacional de Telecomunicações, Anatel, foi instalada pela Lei Geral de Telecomunicações (LGT – Lei n° 9.472/97), através do Decreto n° 2.238, como proposta de equilíbrio e ferramenta da gestão pública de modo a combinar o setor privado e seus bônus de investimento no Estado e as garantias de segurança de poder e reputação da continuidade dos serviços.

A Anatel é uma autarquia especial, independente, com autonomia financeira, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.

A relação da Anatel com o mercado é norteada pela competência do inciso VI, do art. 156 de seu Regimento Interno, que define sua responsabilidade por “certificar e homologar produtos de comunicação e sistemas de telecomunicações, habilitar laboratórios e designar organismos certificadores”.

Os Organismos Certificadores Designados, OCD, são empresas privadas delegadas pela agência para conduzir processos de avaliação sobre a conformidade de produtos no contexto da certificação compulsória, emitindo certificados para prosseguir com o procedimento de aquisição do selo Anatel. Os testes dos produtos são realizados por meio de Laboratórios de Ensaios, LE, contratados pela empresa interessada na certificação, credenciados pelo Inmetro.

No que tange à accountability e à transparência do processo decisório e dos resultados, e a obrigação de prestação de contas e responsabilização pelas decisões e resultados, as agências reguladoras utilizam mecanismos informacionais, como relatórios, disponibilidade de atas e de notas técnicas; mecanismos institucionais, como ouvidoria e reuniões abertas do conselho diretor e; mecanismos procedimentais, como realização de consultas e audiências públicas.

Quando se trata da visão do mercado, empresas que dependem da Anatel para obter o acesso de algumas informações não é facilitado. A organização possui um portal para consulta de todos os certificados e homologações realizadas por fabricantes de produtos de telecomunicações – que muitas vezes está em manutenção -, porém algumas informações, como a quantidade de fiscalizações realizadas, poderiam ser disponibilizadas de maneira mais simples pela organização.

Sugerimos um teste: se você utilizar qualquer mecanismo de busca na internet e procurar por “Relatórios de Acompanhamento das Atividades de Fiscalização” ou termo similar, encontrará um relatório de 2014. Para acessar os relatórios atualizados, o usuário precisa perder um tempo precioso para localizá-los e, mesmo assim, não possui base de comparação. Os relatórios de cada trimestre não possuem padrão, como por exemplo a versão de 2014 e 2019.

Isso dificulta a relação entre as empresas e a agência reguladoras e com os OCDs, e gera dúvidas sobre critérios, processos, prazos e resultados. Prejudica-se assim a concorrência justa, que por sua vez contribui para a melhoria da qualidade dos produtos e serviços.

O mercado de produtos de telecomunicações no Brasil é desconhecido da população, poucos sabem que os produtos homologados passam por testes morosos, com custos elevados e, que, se não forem aprovados na primeira tentativa, terão que renovar os pagamentos nas posteriores. Os produtos de telecomunicações, por outro lado, são alvo de contrabando e pirataria, o que aumenta a necessidade de fiscalização e acesso à informação sobre as ações da Anatel para o mercado.

Entre as perguntas que ficam, estão: a disponibilização dessas informações, com o devido sigilo das empresas envolvidas, não seria importante para a sociedade ou para o mercado? As quantidades de fiscalizações realizadas não são consideradas importantes para o andamento do mercado? A quem interessa que as informações relativas a processos, critérios e resultados da regulação não sejam transparentes? O que se pode fazer para avançar nesses aspectos?

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Bruno Fagundes de Souza, Vinícius Mafra Senna e Victor Alves Sales, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

Referências

ANATEL, Agência Nacional de Telecomunicações, 2019. Disponível em: https://www.anatel.gov.br/setorregulado/apresentacao-certificacao. Acesso em: 22 out. 2019

ANATEL, Agência Nacional de Telecomunicações. Regimento Interno, estabelecido pela Resolução n° 612, de 2013. Disponível em: http://www.idec.org.br/uploads/audiencias/pdfs/Resolucao_612_2013_Anatel1.pdf . Acesso em: 28 out. 2019.

ANTUNES, L. R. Poder de Polícia da Agência Nacional de Telecomunicações. 2007. Disponível em: https://www.anatel.gov.br/Portal/documentos/sala_imprensa/Monografia%20ER9%20Luciana%20Rolim%20Antunes.pdf. Acesso em: 22 out. 2019.

BINENBOJM, G. Agências reguladoras independentes e democracia no brasil. Revista Direito Administrativo, p. 147–165, 2005. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43622. Acesso em: 14 out. 2019.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm Acesso em 20 out. 2019.  

GODOI JUNIOR, José Vicente. Agências reguladoras: características, atividades e força normativa. 2008. Dissertação de Mestrado. Marília, Universidade de Marília.

GOMES, F. G. Conflito social e welfare state: Estado e desenvolvimento social no Brasil. Rev. Adm. Pública, v. 40, n. 2, p. 201–234, 2006.

INTELBRAS, 2017. Intranet. Acesso em 15 out. 2019.

INTELBRAS, 2019. Website institucional. Disponível em: https://www.intelbras.com/pt-br/ Acesso em 15 out. 2019.

RAMOS, F. Reforma do Estado e Agências Regulatórias: estudo sobre responsabilização pública a partir da descentralização de poderes e novos instrumentos de governabilidade – O caso Anatel. Tese de doutorado, UFSC, 2005.

SPANIOL, Enio Luiz. A conflitividade na relação do Estado, mercado e sociedade: estudo hemerográfico. Tese de doutorado, UFSC, 2009. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/92289 Acesso em: 02 out. 2019.

Vazamento de Petróleo no Litoral do Nordeste em 2019 – Crime ou acidente ambiental? Quais suas consequências e quem responde por elas?

Por Luiza Almeida, Maria Isabel Bender, Thaina Camilo e Verônica Mafioletti*

O vazamento de 5 mil toneladas de petróleo no litoral do Nordeste brasileiro teve início em setembro de 2019. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis, Ibama, informa que o vazamento atingiu 1.004 localidades em 11 estados, em mais de  130 municípios. Quem o causou? Foi um crime ambiental ou um acidente? Os responsáveis foram identificados? Quais foram as consequências e quem responde por elas?

Um ano após o ocorrido, a Marinha do Brasil finalizou a primeira etapa de investigações, mas ainda não se tem noção de quem causou esse dano ambiental imensurável, restando apenas os impactos causados à sociedade, a economia e ao meio ambiente.

O turismo emprega muitas pessoas no Nordeste e o ocorrido afetou principalmente aqueles serviços que têm relação direta com o ambiente marítimo. Além disso, muitos moradores desses locais vivem da pesca e tiveram grande prejuízo por não conseguirem comercializar seus peixes devido ao medo de contaminação por parte da população.

E quanto aos danos permanentes na fauna dos locais atingidos? Como mencionado, o dano ambiental foi imensurável, mas se sabe que este acontecimento levou à contaminação e morte de muitos animais aquáticos.

Segundo informações do  governo brasileiro, o petróleo encontrado nas praias e manguezais foi considerado extremamente tóxico, ao ponto de que inalá-lo poderia causar desde dificuldade na respiração até náuseas e confusão mental. Além disso, o Ministério da Saúde e a Defesa Civil comunicaram à população que evitasse o contato direto e a ingestão da substância, pois caso isso acontecesse, poderia causar a longo prazo danos nos pulmões, problemas no sistema circulatório e até mesmo câncer. A Fiocruz ficou responsável por monitorar os impactos à saúde causados pelo vazamento de petróleo, mas os dados não estão acessíveis.

Fonte: FELIPE BRASIL / FOTOS PÚBLICAS

Definição de Desastre Natural

O desastre natural é caracterizado por tragédias decorrentes de fenômenos naturais, podendo ser de origem climática, geológica, biológica ou astronômica, como furacões, terremotos, chuvas e tempestades. Ou seja, não possuem interferência humana direta (POSUSCS, 2019)

Entretanto, as alterações causadas no planeta devido à presença dos seres humanos podem dar origem a desastres ambientais de diversas naturezas. Devido aos padrões de vida da atualidade, alinhado ao um consumo nada sustentável, interesses econômicos e falta de responsabilidade para com o meio ambiente, a vida na terra tem causado desequilíbrio ambiental, tornando-se gatilho para os fenômenos causadores dos desastres naturais.

O vazamento de petróleo é considerado crime ou acidente?

Na história brasileira, esse vazamento de óleo no Nordeste se configura como a maior tragédia ambiental na costa brasileira, afirma Marcelo Amorim, coordenador-geral de Emergências Ambientais do Ibama: “Esse vazamento atingiu a maior extensão, com certeza. É uma situação que nunca ocorreu na história do país, e desconhecemos se algo similar no mundo“.

Verdade seja dita, um desastre nessa proporção pode ser considerado como acidente ambiental?

Existem estudos e especulações sobre a fonte que gerou o desastre ambiental, seja a primeira acusação ao navio Bouboulina, da grega Delta Tankers, seja a acusação do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, à Venezuela, pelo derramamento de óleo. Ou a hipótese de que os culpados sejam os repetidos vazamentos de óleo na costa ocidental da África trazidos ao Brasil pela corrente oceânica Benguela ou pela influência do Golfo da Guiné.

Em meio a tantas suspeitas levantadas sem comprovação de nenhuma, a lei brasileira não se exime em caracterizar o ocorrido como crime ambiental, segundo o artigo 54 da Lei 9.605, que dispõe sobre “sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente” (BRASIL, 1998):

Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:

§ 1º Se o crime é culposo:

V – ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos: Pena – reclusão, de um a cinco anos. (BRASIL, 1998).

O crime culposo é definido pelo artigo 18 do código penal brasileiro como:

Art. 18 – Diz-se o crime:

Crime doloso

I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

Crime culposo(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Segundo a organização internacional WWF (2019), que atua na área ambiental,  não é possível descartar a hipótese de ter sido um acidente, pois como não se sabe quem causou o derramamento, é necessário investigar se o crime é considerado doloso ou culposo e então definir a responsabilização adequada, tanto na esfera civil, como criminal:

Existem duas esferas de responsabilização neste caso: civil e criminal. No caso da responsabilização civil, o objetivo do Brasil será buscar indenização para cobrir todos os danos econômicos e ambientais, de curto e longo prazo, provocados pelo vazamento. Já no âmbito criminal, será preciso identificar se houve dolo ou culpa, ou seja, se as pessoas envolvidas tiveram a intenção de cometer aquele crime ou assumiram o risco de que esses danos ocorressem (WWF, 2019).

O Código Civil Brasileiro determina, em seu capítulo que dispõe sobre a obrigação de indenizar, que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” (BRASIL, 2002).

            Portanto, o derramamento de petróleo no Nordeste pode ser considerado um crime, independentemente de ter sido um acidente, pois o responsável não reclamou a culpa e não reparou até hoje os danos causados na região. Embora se use o termo acidente, se existe algum dano considera-se que um crime foi cometido, pois os acidentes podem ser evitados. Os danos caracterizam uma violação de direitos e incluem os impactos negativos na economia e no ecossistema local.

Segundo Alencar et al. (2016, p.10), o Estado também deve ser responsabilizado uma vez que:

Há também a responsabilidade objetiva solidária do Estado (poder público) no problema ambiental, não podendo haver excludente porque o poder público é quem é responsável por controlar a fiscalização do meio ambiente. Essa responsabilização do Estado por danos também se vê no art. 225, CRFB/88.

O Ibama disponibilizou um website com informações sobre o derramamento do petróleo. No entanto, de acordo com buscas em websites e segundo a WWF (2019), não se sabe se de fato a investigação está sendo conduzida. Ou se está sendo realizada, quais são as atualizações e descobertas sobre o assunto. Não foram divulgados relatórios técnicos sobre a origem do óleo nem feitas coletas sistemáticas, pois “no futuro, essas amostras serão necessárias para definir as responsabilidades em relação aos atingidos – e em nome da transparência, obrigação e dever dos agentes públicos.” (WWF, 2019). Além disso, não foram divulgados resultados de pesquisas para saber o nível de impacto negativo que o óleo causou no pescado local e das águas, impactando negativamente na economia local.

Esse triste episódio na costa brasileira se soma aos constantes ataques, por parte do governo federal, aos esforços de lidar de forma responsável com as riquezas naturais do Brasil.

Talvez os responsáveis nunca sejam culpabilizados para que arquem com o crime ambiental causado e todas as suas consequências. Isso mostra a enorme fragilidade do sistema de responsabilização brasileiro na área ambiental, como se vê em outros episódios, como os desastres ambientais de Brumadinho/MG e Mariana/MG.

Entretanto, o que há de nobre nessa experiência incomum é a mobilização e a e coprodução envolvendo as comunidades, governos locais e organizações da sociedade civil. Tal fato foi verificado em entrevista com Lais Araujo, coordenadora e fundadora do Xô Plástico, movimento criado para efetuar mutirões de limpeza nas praias do Nordeste brasileiro, que desempenhou um relevante papel na limpeza das áreas afetadas pelas manchas de óleo.

A mobilização da sociedade civil organizada, de universidades e agentes locais também tem gerado cobrança por investigações dos culpados e por medidas para preservar as riquezas oceânicas do litoral brasileiro.

*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Luiza Almeida, Maria Isabel Bender, Thaina Camilo e Verônica Mafioletti no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

Referências | Para saber mais:

ALENCAR, André Gustavo Oliveira et al. Análise quanto a responsabilidade civil referente ao caso em Mariana/MG: acidente ou crime ambiental? Revista de Trabalhos Acadêmicos-Universo Recife, v. 3, n. 2, 2016.

BRASIL. LEI Nº 9.605, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1998.

BRASIL. LEI Nº10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2002.

BRASIL. LEI Nº 7.209, DE 11 DE JULHO DE 1984. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e dá outras providências.Brasília, DF: Presidência da República, 1984.

Após dez meses, investigações ainda não apontaram responsável por vazamento de óleo.  In: Brasil de Fato. 03 jul. 2020.

Mancha no Litoral. In: Governo do Brasil. 2019.

O que se sabe até agora sobre o derramamento de óleo no Nordeste. In: WWF. 12 nov. 2019.

Qual é a diferença entre crime ambiental e desastre natural? In: USCS. 09 set. 2019.

Um ano após vazamento de óleo no Nordeste, nenhum responsável foi identificado. In: Brasil de Fato.30 ago. 2020.

Campanha cobra respostas após um ano do derramamento de óleo no litoral. In: Notícias Uol. 30 ago. 2020.