A coprodução de serviços públicos e os desafios postos ao Estado: o que a literatura diz?

Dentro do universo de pesquisas desenvolvidas sobre a coprodução de serviços públicos, poucos são os estudos que a exploram a partir de um olhar sobre o Estado, ou seja, que abordam o papel desempenhado pela burocracia pública nesse processo. Todavia, aqueles que trazem este foco específico, ou mencionam essas questões ao longo de sua análise, destacam que este é um ponto fundamental no debate sobre coprodução, tendo em vista que uma das principais barreiras à consolidação das estratégias de engajamento dos cidadãos é justamente a resistência da burocracia pública (BRUDNEY; ENGLAND, 1983; PAMMER, 1992).

Estratégias como a coprodução de serviços públicos alteram o modus operandi clássico das organizações e dos profissionais que nelas se inserem, seja pelo estabelecimento de novas relações com atores externos ou pela necessidade de adaptação de suas operações rotineiras (BOVAIRD, 2007; BOYLE; HARRIS, 2009; RYAN, 2012). O engajamento dos cidadãos traz uma série de desafios à estrutura de funcionamento da burocracia pública. E é fundamental que os mesmos sejam considerados se buscamos uma real articulação entre o Estado e a sociedade. Por isso, elencamos, de forma breve, alguns dos desafios abordados pela literatura da área.

É preciso, antes de tudo, ter em mente que estabelecer relações com os cidadãos a partir de um modelo organizacional baseado nos preceitos burocráticos tradicionais, conforme destacado por Guizardi e Cavalcanti (2010), possui inúmeras limitações. O modelo hegemônico de organização tem como foco principal o exercício do controle e da dominação, tanto sobre seus membros quanto sobre os agentes externos, o que dificulta a transformação democrática de suas instituições. O modelo clássico de organização reduz a sociedade a um caráter unidimensional e inibe o envolvimento ativo do cidadão na construção democrática (TOMBI; SALM; MENEGASSO, 2006). O risco, nesse cenário, é justamente o de desenvolver processos manipulativos.

Por isso, não se trata de trazer o cidadão para dentro desse formato, mas sim da capacidade do burocrata em responder de forma não burocratizada. Warren (1987) observa que o fator crítico não é a integração dos cidadãos dentro da estrutura clássica da burocracia, mas sim a adaptação desse formato em prol da efetividade das práticas de coprodução dos serviços públicos. Assim, trabalhar no desenvolvimento de novos arranjos institucionais da burocracia é fundamental, em particular para a mitigação das divergências, por vezes recorrentes, entre os valores burocráticos e valores democráticos que permeiam a prática da coprodução (PAMMER, 1992).

Diante disso, o primeiro desafio diz respeito ao papel exercido pelo Estado e, dessa forma, pelos burocratas que o compõe. Para que a inserção dos cidadãos no processo de produção e entrega de serviços públicos se dê de forma genuína, é preciso que a burocracia pública desempenhe um papel predominantemente de articulação, mediação e negociação (ALFORD, 1998; DENHARDT, 2012; LAVIGNE, 2014). A exclusividade pela regulação e provisão de bens e serviços deixa, ou deveria deixar, de ser uma característica da burocracia pública quando a mesma torna suas fronteiras mais porosas à participação do cidadão. Parte-se de uma concepção mais ampla de governo, que, embora mantenha suas funções clássicas como produtor, comprador, regulador e subsidiador, também passa a atuar como articulador, possibilitador e catalisador de esforços dos cidadãos, sendo capaz de transformar o espaço público em um espaço de construção colaborativa (KLEIN JR; SALM; HEIDEMANN, MENEGASSO, 2012).

Esse ponto, por sua vez, nos remete ao segundo desafio: a mudança cultural. Tuurnas (2015) observa que uma renovação na cultura organizacional é parte inerente da consolidação da coprodução, em particular no que diz respeito ao reconhecimento, por parte dos burocratas, da importância do conhecimento experiencial dos cidadãos ao lado de seus conhecimentos profissionais na produção dos serviços públicos. Isso, todavia, é um grande desafio em contextos em que os papéis dos cidadãos e dos profissionais por muito tempo seguiu o modelo tradicional: como beneficiários e provedores, respectivamente (PESTOFF, 2006).

Além da mudança cultural, a inserção da estratégia de coprodução de serviços públicos passa pelo desafio do desenvolvimento de novas habilidades pelos burocratas (TUURNAS, 2015). Bovaird e Löeffler (2012) reconhecem a necessidade de desenvolvimento de habilidades profissionais específicas para o exercício da coprodução, em especial por meio de um treinamento dos profissionais que realizarão de forma direta a interface com os cidadãos. Para os autores é preciso ser capaz de perceber e aproveitar os recursos que os atores externos possuem, abrir espaço para que as pessoas de fato se desenvolvam e usar uma grande variedade de métodos para trabalhar em conjunto com os cidadãos ao invés de tentar apenas conduzí-los.

Isso abre espaço para o último desafio aqui abordado, a necessidade de desenvolvimento e/ou engajamento de um novo perfil de profissional, que colabora com outros em função de valores compartilhados e não em função da soberania organizacional. A colaboração com os cidadãos ocorre não apenas porque os burocratas possuem um compromisso com a organização em que se inserem ou pela existência de uma previsão legal, mas também porque concordam os valores democráticos envolvidos no processo e com a importância da missão conjunta para a efetividade do serviço público disponibilizado (BOLAND; COLEMAN, 2008).

É importante ter em mente, todavia, que essa mudança no papel da burocracia não é linear, muito menos homogênea, considerando que a burocracia se insere em diferentes contextos e é formada por diferentes níveis. Estes, por sua vez, apresentam em sua composição profissionais com diferentes interesses, perfis e entendimentos em relação à importância da inserção dos cidadãos no processo de produção e entrega de serviços públicos. O reconhecimento dos desafios existentes apenas indicam possíveis caminhos a serem explorados, tanto em termos teóricos quanto empíricos.

 

Referências

ALFORD, J. A public management road less travelled: Clients as co-producers of public services. Australian Journal of Public Administration, v. 57, n. 4, p. 128-137, 1998.

BOLAND, L.; COLEMAN, E. New development: What lies beyond service delivery? Leadership behaviours for place shaping in local government. Public Money and Management, v. 28, n. 5, p. 313-318, 2008.

BOVAIRD, T. Beyond engagement and participation: User and community coproduction of public services. Public Administration Review, v. 67, n. 5, p. 846-860, 2007.

BOVAIRD, T.; LOEFFLER, E. From Engagement to Co-production: The Contribution of Users and Communities to Outcomes and Public Value. Voluntas, v. 23, n. 4, p. 1119-1138, 2012.

BOYLE; D.; HARRIS, M. The challenge of co-production. London: New Economics Foundation, 2009.

BRUDNEY, J. L.; ENGLAND, R. E. Toward a definition of the coproduction concept. Public Administration Review, v. 43, n. 1, p. 59-65, 1983.

DENHARDT, R. B. Teorias da Administração Pública. São Paulo: Cengage Learning, 2012.

GUIZARDI, F. L.; CAVALCANTI, F. D. O. L. O conceito de cogestão em saúde: reflexões sobre a produção de democracia institucional. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 20, n. 4, p. 1245-1265, 2010.

KLEIN JR, V. H.; SALM, J. F.; HEIDEMANN, F. G.; MENEGASSO, M. E. Participação e coprodução em política habitacional: estudo de um programa de construção de moradias em SC. Revista de Administração Pública, v. 46, n. 1, p. 25-48, 2012.

LAVIGNE, M. A. Urban governance and public leisure policies: a comparative analysis framework. World Leisure Journal, v. 56, n. 1, p. 27-41, 2014.

PAMMER, W. J. Administrative norms and the coproduction of municipal services. Social Science Quarterly, v. 73, n. 4, p. 920-929, 1992.

PESTOFF, V. Citizens and co-production of welfare services. Childcare in eight European countries. Public Management Review, v. 8, n. 4, p. 503-519, 2006.

RYAN, B. Co-production: Option or Obligation? Australian Journal of Public Administration, v. 71, n. 3, p. 314-324, 2012.

TOMBI, W. C.; SALM, J. F.; MENEGASSO, M. E. Responsabilidade social, voluntariado e comunidade: estratégias convergentes para um ambiente de co-produção do bem público. Organizações & Sociedade, v. 13, n. 37, p. 125-141, 2006.

TUURNAS, S. Learning to co-produce? The perspective of public service professionals. International Journal of Public Sector Management, v. 28, n. 7, p. 583-598, 2015.

WARREN, R. Coproduction, volunteerism, privatization, and the public-interest: introduction. Journal of Voluntary Action Research, v. 16, n. 3, p. 5-10, 1987.