Privatização da Eletrobras: reflexão a partir de mudanças na fase interna preparatória de aquisições

Por Maria Fernanda Cunha Cordeiro*

Uma das empresas líder em transmissão de energia elétrica do país, a Eletrobras, Centrais Elétricas Brasileiras, passou por diversas tentativas de privatização ou capitalização até deixar de ser uma empresa estatal. Em 1990, o processo de privatizações encabeçado pelo ex-Presidente da República Fernando Collor de Mello gerou o Programa Nacional de Desestatização, PND, através da Lei nº 8.031/1990. A intenção de privatizar a Eletrobras foi fortalecida pelo governo de Itamar Franco. De acordo com um relatório elaborado pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), o programa continuou com suas metas mesmo com a renúncia de Collor, e promoveu a venda de Usiminas em 1991, a desestatização de 15 empresas no período de 1993 a 1994, a venda da Companhia Vale do Rio Doce, em 1997, a venda da Gerasul, em 1998, a venda do controle de outras três importantes geradoras de energia elétrica, em 1999, entre outros efeitos. Em 2003, o Congresso Nacional votou pela Medida Provisória nº 144,  que foi convertida na Lei nº 10.848 de 15 de março de 2004, que removeu a Eletrobras do PND. 

Em 2017, no contexto do Programa de Parcerias de Investimento, foi recomendada a inclusão da organização no PND, o que foi confirmado em 2018 pelo governo de Michel Temer, através de decretos que permitiram estudos para capitalização, conforme relata reportagem do G1. O Projeto de Lei 9463/2018 foi a primeira iniciativa legal de Temer para a privatização da organização. Esses estudos perderam a validade, pois os parlamentares estavam divididos, diversos debates aconteceram e o projeto ficou parado, sem chegar à fase de votações. Sendo assim, a empresa foi retirada do PND novamente. Em 2019, o Governo Bolsonaro conduziu ao Congresso Nacional o PL 5877/2019, que dizia respeito à redução da participação da União no quadro acionário da Eletrobras, através de uma capitalização da companhia, no entanto esse projeto também ficou parado no Poder Legislativo.

Em 2021, a elaboração de uma Medida Provisória 1.031, de 23 de fevereiro, definiu os planos do governo para a capitalização e obteve sucesso após uma longa trajetória de tentativas. A privatização foi uma promessa do Ministro da Economia, Paulo Guedes, concretizada em junho de 2021, próximo ao fim do mandato de Jair Bolsonaro. A promessa de capitalização da Eletrobras foi uma das poucas concretizadas pelo governo, e vinha sendo pretendida desde o início do mandato, sob a justificativa de possibilidade de gerar mais investimentos no setor elétrico e estimular a oferta de energia no país.

De modo geral, as privatizações podem trazer amplas reações sociais sustentadas pelos medos do que podem trazer a um país, em  aspectos sociais, econômicos e ambientais. Neste texto, busca-se refletir sobre os riscos relacionados à accountability dentro da empresa, em específico nas fases preparatórias para um processo de compra. Com a privatização, a Lei 13.303/2016, que rege as empresas públicas, incluindo seus processo de licitações, passa a não ser mais aplicável à Eletrobras, assim como os regulamentos internos associados a ela. Os processos aqui analisados se referem à subsidiária CGT Eletrosul, sediada  em Florianópolis, onde atuei como estagiária no Setor de Administração de Materiais (SETAM) do Departamento de Operações e Logísticas.

Antes da privatização, o processo para realizar uma  compra seguia as seguintes etapas: análise da demanda, gestão de estoque (na qual são calculadas as quantidades necessárias para compra), contato com fornecedores, mapa de preço (incluindo cálculo de ICMS, IPI e DIFAL), elaboração de um Termo de Referência completo, conforme determinado pela lei, análise detalhada do Termo pelo setor de Análise Crítica, correção do Termo após a análise (quantas vezes necessário) e, por fim, o envio do documento e processo para o setor responsável pela licitação. 

É notável a profundidade que um processo de aquisição requeria. Isso  mudou completamente após a capitalização, uma vez que as etapas (logo após a privatização) tornaram-se as seguintes: análise da demanda, gestão de estoque, relatório de preços anteriores, elaboração de um Termo de Referência muito mais simples, revisão básica da análise crítica e envio para o setor responsável pela licitação.

Com a mudança, pode-se observar, por exemplo, que os dados utilizados nos relatórios de preços não foram atualizados, pois eram usados os de processos antigos. A revisão pelo setor de análise crítica, por reflexo, tornou-se  mais simples. Sem regulamentos, a padronização dos procedimentos foi afetada, pois cada setor passou a  desenvolver seu trabalho conforme considerou pertinente, sem uma referência ou orientação. Além disso, podemos refletir acerca do setor de Análise Crítica, que era um dos principais mecanismos de fiscalização dentro da fase preparatória, mas como se baseava na Lei, ficou sem saber o que fiscalizar. Ainda nos primeiros dias de empresa privada, o setor estava cobrando informações e procedimentos que pareciam ser sem sentido do ponto de vista da eficiência.

A experiência vivenciada permitiu observar que, em processos de desestatização, principalmente em empresas de grande porte, existem dificuldades naturais nos andamentos de algumas atividades, incluindo aquelas mais específicas, como os procedimentos acerca da fase preparatória de uma licitação. No entanto, é válido refletir sobre o tempo que a empresa teve para se preparar para a efetiva capitalização. Em procedimentos como esse, a organização poderia ter conhecimento e orientação sobre as atividades, como um regulamento para ações durante o período de transição, visto que a mudança organizacional é uma consequência do processo de privatização (OLIVA, 2002).

*Texto elaborado pela acadêmica de administração pública, Maria Fernanda Cunha Cordeiro, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências:

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