O controle sobre os órgãos de controle e sua abertura para a sociedade: análise sobre os tribunais de contas brasileiros

Por Laura Ramos*

“Um armário onde se arquivam amigos”, é esse o termo que, segundo Abrucio e Loureiro (2005), foi utilizado por Getúlio Vargas para descrever os Tribunais de Contas, TCs, no Brasil. Como várias organizações, os TCs não fogem à regra quando se trata da cultura política patrimonialista e corporativista tão enraizada na formação do Estado brasileiro.

De acordo com a Constituição Federal, os Tribunais de Contas são tribunais administrativos e de caráter auxiliar ao Poder Legislativo: apreciam as contas do Poder Executivo para, posteriormente, submetê-las ao Congresso Nacional, Assembleias Legislativas ou Câmaras de Vereadores, que julgam os responsáveis pela administração pública direta e indireta (Brasil, 1988). No caso do Tribunal de Contas da União, TCU, seu colegiado é composto por nove membros, três indicados pelo Presidente da República e os outros seis, pelo Congresso Nacional. O TCU é o órgão responsável pela fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União. 

De acordo com a proposta exposta por O’Donell (1998), pode-se afirmar que os TCs são organizações do modo horizontal de accountability, uma vez que constituem uma estrutura institucionalizada de realização de controle sobre outros entes estatais.

A Constituição de 1988, estabelecida após um período de autoritarismo e supressão da democracia, trouxe diversas inovações a respeito da participação cidadã no governo (Pinho e Sacramento, 2009), o que é fundamental para que as expectativas e contribuições dos cidadãos sejam consideradas pela administração pública. Sob a perspectiva da Teoria do Principal-Agente, os cidadãos (Principal) delegam seu poder para as organizações (Agente), as quais realizarão o controle das organizações burocráticas de acordo com as preferências dos Principais (Filgueiras, 2018). Isso requer que o Agente conheça e aja de acordo com as preferências e expectativas dos Principais, o que nem sempre acontece na prática. Desse modo, desvela-se uma problemática relevante para o tema: como os Tribunais de Contas buscam conhecer as preferências e expectativas dos cidadãos sobre a maneira como realizam o seu trabalho?  

Rocha, Zuccolotto e Teixeira (2020) apontam a tendência da acumulação de poder por parte da burocracia: a Dominação Racional-Legal faz com que a burocracia busque manter em segredo seus conhecimentos e intenções, formando um bloco impenetrável e distante dos cidadãos. A maneira proposta pelos autores para extinguir ou, pelo menos, abrandar os sintomas dessa disfunção, é a aproximação da burocracia aos mecanismos democráticos de participação.

Contudo, através de uma pesquisa realizada por esses autores com os trinta e dois Tribunais de Contas brasileiros, contemplando perspectivas de transparência dos portais, da atividade de fiscalização e participação social, conclui-se que os tribunais tendem a expor-se somente quando obrigados por Lei (Lei de Acesso à Informação ou Lei de Responsabilidade Fiscal) e a permeabilidade dos TCs em relação à participação social ainda é baixíssima. Conforme Rocha, Zuccolotto e Teixeira (2020, p.215):

nenhum TC brasileiro oferece mecanismo para que a sociedade possa participar efetivamente: a) no processo de designação de ministros/conselheiros; b) no processo de elaboração do plano de auditoria ou durante a realização das auditorias; e c) no acompanhamento do cumprimento pelos gestores públicos das determinações e recomendações.

Ainda, após a intensa midiatização dos acontecimentos políticos das últimas décadas envolvendo o uso indevido de recursos públicos, enriquecimento ilícito de agentes públicos, irresponsabilidade fiscal, etc., foi estabelecido um contexto de conjuntura crítica no Brasil. Nessa condição, os órgãos de controle (Ministério Público, Polícia Federal, Controladorias e Tribunais de Contas) assumiram um protagonismo inédito, chamando a atenção da opinião pública e sendo favorecidos pelo ímpeto dos cidadãos de exigir um Estado mais accountable.

Para além de mudanças geradas por fatores exógenos, como os que ocorreram em tal conjuntura, é possível que o desenvolvimento institucional dos órgãos de controle seja incrementado mediante fatores endógenos: aumento da autonomia e capacidade de reter recursos orçamentários, melhoramento da estrutura de carreira, dos processos e da gestão; e de fatores sistêmicos, interinstitucionais: formação de coalizões e disputas, crescimento do poder de barganha e controle de informações (Filgueiras, 2018). A interação dos fatores exógenos, endógenos e sistêmicos gera um ciclo que se retroalimenta, pois quanto maior a posse de recursos, capacidade de barganha e controle de informações, maior será seu poder e sua propriedade para agir como agente político em momento de conjunturas críticas, conforme elucidado por Filgueiras (2018).

Em seu artigo inaugural do conceito no Brasil e corroborado por Pinho e Sacramento (2009), Campos (1990) afirma que existem três pressupostos indispensáveis ao exercício da accountability: uma sociedade devidamente organizada para realizar o controle das ações governamentais; um aparato de Estado transparente; e a substituição de valores tradicionais, patrimonialistas, por valores emergentes.

Após a redemocratização, houve a legitimação e fortalecimento da sociedade civil (Andion e Serva, 2004), bem como dos mecanismos de participação social através da Constituição Federal e de diversas iniciativas (Pinho e Sacramento, 2009).Já a respeito do Estado, a própria Constituição e demais dispositivos legais reforçaram, como fatores exógenos da mudança institucional dos Tribunais de Contas (Filgueiras, 2018), a substancialidade da transparência. Em um estudo recente, Fernandes, Fernandes e Teixeira (2023) mostram que alguns TCs são mais transparentes do que outros, embora tenham todos uma estrutura similar. Um fator que explica a diferença em transparência é o grau de desigualdade socioeconômica, uma variável exógena, de um estado para outro.  

Mesmo assim, no que concerne ao terceiro ponto especificado por Campos (1990), os órgãos de controle dão poucos sinais de que os valores tradicionais incrustados em suas estruturas serão superados, padecendo de um mal denominado, de acordo com Rocha, Zuccolotto e Teixeira (2020), “insulamento burocrático”, ou seja, encontram-se dispostos como verdadeiras ilhas, distantes do restante da sociedade.

*Texto elaborado por Laura Ramos, estudante de graduação em administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, no âmbito da disciplina sistemas de accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2024.

Para saber mais sobre o tema:

Tribunais de Contas – Quem Controla o Controlador?”, por Gisiela Hasse Klein, blog grupo de pesquisa Politeia, 2018.

Observatório do Controle – organização da sociedade civil fundada em 2024 que realiza o monitoramento dos órgãos de controle da administração pública.

Referências

ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accountability. In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

ANDION, C.; SERVA; M. Por uma visão positiva da sociedade civil organizada no Brasil. Revista Venezoalena de Economia Social, 4 (7), Dezembro, 2004, p. 7-24. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 5 maio. 2024

CAMPOS, Ana Maria. Accountability: Quando poderemos traduzi-la para o português? Revista da Administração Pública. 24 (2), 30-50, fev./abr. 1990. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/9049 

FERNANDES, G. A. de A. L.; FERNANDES, I. F.; TEIXEIRA, M. A. C. Transparência dos governos subnacionais: o impacto da desigualdade na transparência. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 57, n. 6, p. e2023–0025, 2023. DOI: 10.1590/0034-761220230025. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/90406. Acesso em: 10 maio. 2024.

FILGUEIRAS, Fernando. Burocracias do controle, controle da burocracia e accountability no Brasil. In: PIRES, Roberto; LOTTA, Gabriela: OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasil: IPEA, Enap, 2018. Cap. 14. Pgs. 355-381.

O’DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e novas poliarquias. Revista Lua Nova. São Paulo, 44, 27-54. 1998.

PINHO, J.A.G. e SACRAMENTO, A.R.S. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista da Administração Pública, 43 (6): 1343-68, nov./dez. 2009. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6898

ROCHA, D. G. da; ZUCCOLLOTTO, R.; TEIXEIRA, M. A. C. Insulados e não democráticos: a (im)possibilidade do exercício da social accountability nos Tribunais de Contas brasileiros. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 54, n. 2, p. 201–219, 2020. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/81248. Acesso em: 5 maio. 2024