Por Sabrina Sayuri Arakaki e Lidiana Sagaz Silva Alves*
O avanço das tecnologias e um mundo de possibilidades na era digital proporciona o acesso à informação a mais cidadãos. Com mais informação, o povo pode exigir dos governos mais explicações e uma conduta ética, responsável e transparente quanto aos gastos públicos e os escândalos de corrupção.
No âmbito institucional-legal, um mecanismo voltado a combater a corrupção, fraudes e desvios de conduta na relação entre organizações privadas e o setor público surgiu com a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, a chamada “lei anticorrupção”. Esta é considerada um marco do combate à corrupção no país pela inovação jurídica de prever responsabilização administrativa e civil para pessoa jurídica por atos ilícitos contra a administração pública.
Já a Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, sinaliza para mudanças no setor público relativas ao trabalho de “compliance”, ao estabelecer a obrigação de que cada órgão elabore um código de conduta e integridade (art. 9 § 1).
O termo compliance, apesar de parecer novidade, é um tanto antigo. Surgiu como um sistema de regras e procedimentos para a regulamentação da economia política econômica internacional, em 1940, através do acordo de Bretton Woods. Os Estados Unidos foi o primeiro país a adotar em 1977, um programa de integridade devido ao escândalo de Watergate, através da Foreign Corrupt Practice Act (FCPA), uma legislação de combate à corrupção. Logo em seguida, mas ainda em 1977, o Reino Unido também passa a aplicar em suas instituições financeiras um sistema de integridade.
Com a crescente difusão do tema e o uso do termo compliance em diversos sentidos, surgem algumas questões: Afinal, compliance é sinônimo de burocracia? A compliance ajuda ou engessa a administração pública? Como lidar com o dilema controle versus eficiência?
COMPLIANCE E PROGRAMAS DE INTEGRIDADE
Antes de prosseguirmos, se faz necessário apresentar algumas definições de compliance e sua relação com (programas de) integridade.
Observa-se que há certa mistura no uso da nomenclatura “programa de compliance”, mais usado no setor privado, e “programa de integridade”, usado pelo poder público no Brasil. Note-se que a palavra “compliance” aparece na legislação brasileira apenas uma vez, na lei nº 13.303/2016, conhecida como lei das estatais. A legislação brasileira vem utilizando a nomenclatura de programas de integridade para aplicação no setor público.
Cabe ressaltar que alguns autores e estudiosos da área entendem o compliance apenas por sua tradução literal, ou seja, como sendo somente o cumprimento de regras e normativas vigente, enquanto que os programas de integridade seriam programas de maior amplitude, que apesar de englobar o compliance não se atém apenas ao seguimento de normas, mas envolveriam o desenvolvimento ético e a atuação com transparência e accountability, tanto da organização como de todos que bela trabalham, buscando desenvolver uma cultura de integridade.
Compliance
“Ato de cumprir, de estar em conformidade e executar regulamentos internos e externos, impostos às atividades da instituição, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e ao regulatório/legal.” (MANZI, 2008, p. 15)
“Um conjunto de regras, padrões, procedimentos éticos e legais que, uma vez definido e implantado, será a linha mestra que orientará o comportamento da instituição no mercado em que atua, bem como as atitudes de seus funcionários; um instrumento capaz de controlar o risco de imagem e o risco legal, os chamados ‘riscos de compliance’, a que se sujeitam as instituições no curso de suas atividades.” (CANDELORO, RIZZO e PINHO, 2012, p. 30).
Programas de integridade
Conjunto de medidas e ações institucionais voltadas para a prevenção, detecção, punição e remediação de fraudes e atos de corrupção. Em outras palavras, é uma estrutura de incentivos organizacionais – positivos e negativos – que visa orientar e guiar o comportamento dos agentes públicos de forma a alinhá-los ao interesse público.” (CGU, 2017, p. 6, grifo nosso)
O programa de integridade refere-se ao conjunto de mecanismos e procedimentos internos para aplicação efetiva de diretrizes que detectem e mitiguem os desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública. Dezesseis parâmetros são estabelecidos no decreto para avaliação de programas de integridade. Vale mencionar que esses parâmetros se assemelham às 12 diretrizes de boas práticas de controles internos, ética e compliance publicadas pela OECD.” (CASTRO; AMARAL; GUERREIRO, 2019, p. 188, grifo nosso)
Orientações da Controladoria-Geral da União, CGU, para programas de integridade
Em abril de 2018, a CGU publicou a portaria nº 1.089, com orientações para implementação de programas de integridade no setor público. A portaria estabelece uma implementação em 3 fases.
O programa de integridade, segundo a CGU, é estruturalmente parecido com um programa de compliance, deve ser entendido como uma estrutura orgânica, que funcionará adequadamente caso exista harmonia e conexão entre cinco pilares: Comprometimento e apoio da alta direção; Instância responsável pelo Programa de Integridade; Análise de perfil e riscos; Estruturação das regras e instrumentos e; Estratégias de monitoramento contínuo.
A CGU ressalta, ainda, que um programa de integridade pretende fazer com que os colaboradores de diversas áreas trabalhem em consonância, para uma atuação íntegra, mitigando os eventuais riscos de corrupção. Uma política de integridade permite que diversas ferramentas de controle e gestão passem a ser vistos de maneira sistêmica, alcançando assim sua máxima eficiência. O programa de integridade tem caráter preventivo, pois visa mitigar riscos de corrupção em determinada organização e, havendo desvios de integridade, o programa deve buscar identificar, responsabilizar e corrigir a falha de modo rápido.
Desde 2018, vários estados têm implementado programa de integridade em suas instituições.
COMPLIANCE, INTEGRIDADE E BUROCRACIA
Mas afinal, o compliance significa mais burocracia? Ajuda a melhorar processos e serviços ou engessa a administração pública? Como lidar com o dilema controle x eficiência, mantendo o foco na melhoria dos serviços públicos para os cidadãos e não no controle pelo controle?
Para elucidar essas questões, convidamos Rodrigo de Bona da Silva, doutorando em Economia e Governo pela Universidade Menendez Pelayo e Instituto Universitário de Investigação Ortega y Gasset (Espanha). Rodrigo é Mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina. Cursa Especialização em Ouvidoria Pública pela Organização dos Estados Iberoamericanos. Bacharel em Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como Auditor Federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União desde 1996 e como voluntário em iniciativas de controle social.
De acordo com Rodrigo, o compliance está mais ligado ao cumprimento de regras e normas, enquanto a integridade é algo mais amplo, que inclui, mas que não se restringe ao compliance. As políticas de integridade têm como propósito o aumento de confiança, da credibilidade e da legitimidade das organizações e governos, e o compliance é um dos elementos para isso.
A ideia do desenvolvimento desses programas os considera como ferramentas de desenvolvimento das instituições, para que atos ilícitos sejam mitigados. O compliance e a integridade são muito vinculados aos princípios de governança e accountability. Em particular, a accountability e o compliance relacionam-se na ideia de governança, que adota como preceitos básicos a equidade, a transparência e a responsabilização em relação às ações adotadas pela instituição e pelos funcionários, em consonância com os princípios adotados pela administração pública, completa Rodrigo.
Compliance implica em mais burocracia?
Rodrigo explicou que, quando falamos em inserir uma política de integridade e controle, estamos colocando um processo a mais na gestão. Existe um dilema entre eficiência e controle. Então, quando se pretende inserir em um processo um obstáculo a mais, nesse sentido, como princípio, compliance é uma burocracia. “Compliance é a legalidade, é o cumpra-se… é um conjunto de normas e procedimentos obrigatórios que me diz por onde seguir. Logo, em um sentido mais restrito, é uma burocracia”.
Cabe considerar, porém, que toda organização, em particular no âmbito público, tem suas normativas, regulamentos e controles internos. “O que precisamos entender é que programas de compliance (integridade) devem ser utilizados de maneira inteligente, como uma ferramenta que sirva para amparar as decisões do gestor e não de maneira a engessar a administração pública. Essas ferramentas devem trazer cada vez mais legitimidade à tomada de decisão. Se servirem apenas como uma etapa burocrática a mais, não estarão cumprindo seu papel de maneira eficiente”.
O tema ainda é recente no Brasil. Porém, percebe-se um movimento no sentido de colocar em prática os programas com vistas a melhorar o desenvolvimento do serviço público, a eficiência e garantir ao servidor segurança para tomada de decisão.
*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Sabrina Sayuri Arakaki e Lidiana Sagaz Silva Alves, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.
REFERÊNCIAS:
CANDELORO, Ana Paula; RIZZO, Maria Balbina Martins De; PINHO, Vinícius.
Compliance 360°. Trevisan; 2012.
CASTRO, P. R.; AMARAL, J. V.; GUERREIRO, Reinaldo. Aderência ao programa de integridade da lei anticorrupção brasileira e implantação de controles internos. R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, v. 30, n. 80, mai./ago. 2019, p. 186-201.
GIANELLO, Matheus Lothaller; Aplicação do compliance na administração pública;. São Paulo, 2018.
CGU- CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Manual para implementação de programas de integridade: orientações para o setor público. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/integridade/arquivos/manual_profip.pdf. Acesso em: 11 ago. 2020.
MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil – consolidação e perspectivas. Ed. SaintPaul, 2008.
PARA SABER MAIS SOBRE COMPLIANCE E INTEGRIDADE:
Accountability: pilar da integridade no serviço público
Compliance, ética e transparência
Compliance na administração pública
Compliance no setor público: necessário, mas suficiente?
SOBRE ELEMENTOS DE PROGRAMAS DE COMPLIANCE:
Segundo Matheus Gianello (2018), mesmo com a peculiaridade e especificidade de organizações distintas, os programas de compliance compreendem sete elementos fundamentais e indispensáveis.
O primeiro deles é a padronização de condutas de acordo com os procedimentos internos da organização.
O segundo é a realização de treinamentos visando influenciar a cultura organizacional. Cabe difundir o reconhecimento que as políticas são aplicáveis a todos dentro da instituição independente do cargo ocupado e demonstrar que desde o CEO da empresa, ou o Prefeito de uma cidade, todos estão comprometidos com a novas políticas. Quanto maior autonomia maior as chances de sucesso do programa.
Como terceiro elemento, surge o desenvolvimento da educação dos servidores, para que saibam como agir diante de situações de conflito. Logo, além de treinamentos, pode haver palestras, considerando o perfil dos funcionários e da organização. Os treinamentos são importantes para o desenvolvimento da cultura da integridade, relacionando-se com o conhecimento sobre as normativas da organização, enquanto o desenvolvimento tem como característica a internalização dessa cultura para saber como e quando deve ser utilizada.
No que tange ao controle, o compliance (ou integridade) envolve tanto o monitoramentodiário para controle operacional, como a auditoria, que é uma ação mais pontual com escopo e critérios pré-definidos.
Um ponto que costuma ser desafiador, embora importante, é o incentivo e a criação de um canal de denúncias, assegurando-se que não haverá retaliação e que as práticas denunciadas serão investigadas de forma anônima.
As medidas disciplinares são o sexto elemento fundamental. É aconselhável que elas já estejam definidas em caso do descumprimento das normas. O grau de seriedade da infração deve ser levado em consideração no momento da aplicação da punição.
Por fim, o sétimo elemento é a prevenção e reação, a garantia de que estes elementos sejam respeitados e que haja a demonstração de que o esforço mútuo está gerando resultados para a prevenção de atos ilícitos.