Smart Cities: os caminhos que levam uma cidade a ser inteligente

Por Luciano Valentim Silva, Natasha Cristine Costa e Raquel Brancher*

Grande parte das definições de Smart Cities as apresenta como sistemas de pessoas interagindo e usando energia, materiais, serviços e financiamento para catalisar o desenvolvimento econômico e contribuir para a melhoria da qualidade de vida. Essas interações são consideradas inteligentes por fazer uso estratégico de infraestrutura, serviços, informação e comunicação com planejamento e gestão urbana para dar resposta às necessidades sociais e econômicas da sociedade.

De acordo com o Cities in Motion Index, do IESE Business School na Espanha, dez dimensões indicam o nível de inteligência de uma cidade: governança, administração pública, planejamento urbano, tecnologia, meio-ambiente, conexões internacionais, coesão social, transporte e mobilidade, capital humano e economia.

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         (Fonte: FGV Projetos – Link: http://fgvprojetos.fgv.br/noticias/o-que-e-uma-cidade-inteligente)

Mas até que ponto esses elementos realmente definem o que são as Smart Cities? Como medimos e avaliamos se uma cidade é inteligente? Quais dimensões devem ser consideradas?

Nesse sentido, Castelnovo, Misuraca e Savoldelli (2016) propuseram um modelo de análise que não se preocupa apenas com a definição do que é uma Smart City, nem quais dimensões devem ser consideradas, mas em como essas dimensões interagem entre si, e de que forma acontece a governança desse sistema complexo.

Essa análise parte do pressuposto de que as cidades inteligentes são aquelas que não veem a tecnologia como ponto central, mas que a utilizam para simplificar e melhorar as operações do governo, facilitando a interação entre o Estado, cidadãos e demais interessados, permitindo a participação cidadã e garantindo a inclusão e igualdade de oportunidade para todos.

Para que essa interação entre as dimensões seja possível, como também o envolvimento dos cidadãos, as estruturas governamentais devem ser flexíveis, incentivando a participação, tanto na implementação, como no monitoramento e na avaliação dos serviços.

Ao aproximar a sociedade das discussões, os agentes públicos criam laços de confiança com os cidadãos e, além disso, estimulam a participação e o sentimento de pertencimento, e compartilham a responsabilidade na produção dos bens e serviços públicos. Este envolvimento dos cidadãos não é apenas uma forma de legitimar as ações e a tomada de decisão, mas pode ser visto como um processo de inovação social que permite coproduzir valor público.

Os modelos internacionais de Smart Cities, ao lado de outras iniciativas adotadas em diversas cidades ao redor do mundo, sugerem de que forma a inovação, a tecnologia e a otimização na gestão de recursos podem servir de norte para o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida da população urbana brasileira.

Apresentamos, na sequência, projetos de sucesso de duas Smart Cities bem-conceituadas mundialmente, Amsterdam Smart City e Montréal Smart City. No primeiro caso, a funcionalidade da cidade inteligente de Amsterdam está na divisão dos temas para resolução dos problemas e melhoria dos serviços da cidade. Os temas são: Infra-estrutura e Tecnologia; Energia, Água e Resíduos; Mobilidade; Cidade Circular; Governança e Educação; e Cidadãos e Vida (Fonte: https://amsterdamsmartcity.com/)

Observa-se que na “aba” Projetos (impressão de tela abaixo) qualquer pessoa tem acesso às informações sobre o desenvolvimento da cidade inteligente, é possível conferir os projetos que estão sendo executados e também enviar o seu próprio projeto. Exige-se apenas que este contribua para o desenvolvimento urbano inteligente e se refira a um dos seis temas da plataforma.


A seguir, observa-se algumas ações desta cidade inteligente:

Amsterdam Smart City
Projetos
Objetivos
Smart Flow
Solução que visa guiar o fluxo de carros e pedestres dentro da cidade de uma forma mais inteligente, fornece aos motoristas conselhos para os melhores e mais baratos lugares para estacionar. Também fornece aos visitantes e turistas orientação para evitar multidões e longas filas de espera.
Powow
Aplicativo que funciona como um canal de comunicação inteligente que busca trazer transparência e facilidade de comunicação entre os cidadãos e os serviços públicos durante emergências e transmissão de informações (para um bairro-alvo).
Co-Criando Espaços Urbanos Responsáveis
O projeto reúne designers urbanos, desenvolvedores de conceitos interativos e interessados locais para explorar o desenvolvimento de espaços urbanos responsivos, que possam se adaptar aos seus utilizadores em tempo real, melhorando substancialmente a qualidade residencial do local e a percepção de segurança dos utilizadores.
Fundo de Sustentabilidade de Amsterdam
Seleciona tipos de projetos que são elegíveis para financiamento. Considera a instalação de painéis solares em telhados, instalação de armazenamento de calor/frio, edifícios sustentáveis com uma cooperativa de energia ou, por exemplo, a reciclagem de matérias-primas. Qualquer pessoa pode apresentar um pedido para o Fundo: iniciativas de moradores, empresas e instituições sociais.
Civocracy
Uma plataforma on-line que envolve os cidadãos em questões políticas e sociais. Possibilita que os cidadãos aprendam mais sobre o assunto e expressem suas opiniões, mostra os melhores argumentos, notícias relevantes, e também dá uma visão geral de todas as maneiras que você pode ser ativamente envolvido, como assistir a uma reunião de prefeitura ou se inscrever como um voluntário.
Smart Students
Neste projeto, estudantes da Universidade de Ciências Aplicadas de Amsterdã planejam estudar como os moradores de Nieuw-West reagem a soluções inteligentes para seu ambiente.
Comissão Democratização e descentralização
Aprofundar a relação com a comunidade de Amsterdam, renovar o orgulho de suas universidades.


No caso de Montreal Smart City, a proposta é de trabalhar em nove áreas-chave, tendo como objetivo principal tornar Montreal líder de renome mundial entre cidades inteligentes e digitais até 2017. As áreas-chave para resolução dos problemas e melhoria dos serviços da cidade são: Desenvolver a rede de telecomunicações; Definir dados abertos; Atualizar a arquitetura tecnológica; Codesenvolver soluções com a comunidade; Otimizar viagens; Crescimento dos serviços digitais disponíveis; Desenvolver sites de inovação e aprendizagem; Reforçar uma cultura de transparência e responsabilização, e Promover um setor emergente e de última geração. (Fonte: http://villeintelligente. montreal.ca/en):

Assim como no exemplo anterior, na “aba” Projetos é possível verificar as informações de todos os projetos já em andamento, e na “aba” Colaborativo o usuário pode descobrir projetos, monitorar seus resultados e contribuir para seu desenvolvimento. Mas diferentemente daquela primeira, não há possibilidade dos cidadãos encaminharem projetos.

A partir de um esforço conjunto do governo e de seus cidadãos, se firmou o compromisso de tornar Montreal uma cidade inteligente de classe mundial até 2017, e desta forma criou-se o Smart e Digital City Office na primavera de 2014. Sendo assim, foi organizado um diálogo civil com parceiros institucionais e do setor privado, funcionários municipais e a população em geral. Partindo das discussões das melhores práticas e visando as reais necessidades da cidade, o comitê executivo elaborou e adotou o Plano de Ação Smart 2015-2017 de Montreal Smart e Digital City. Este documento determina os mais de trinta projetos concluídos ou em andamento.


Na sequência, apresentam-se algumas ações desta “cidade inteligente”:

Montreal Smart City
Projetos
Objetivos
Ver orçamento
Ferramenta on-line para permitir aos cidadãos um maior acesso ao orçamento municipal. Aproveitando-se da apresentação do Orçamento 2016 da cidade de Montreal, foi lançado em 25 de novembro de 2016 a primeira versão de sua nova ferramenta de visualização chamado “Orçamento Visão Geral”, que permite aos cidadãos compreender melhor e de forma simplificada o acesso à informação financeira relacionada com o orçamento municipal.
Cidadãos testadores
Um grupo de cidadãos faz testes de aplicações e serviços públicos digitais destinados a eles. São atividades de cocriação, testes de aplicativos, serviços ou produtos recém-desenvolvidos, etc.
Montreal quer entender melhor as necessidades e expectativas dos utilizadores, o montante dos projetos, e mantê-los envolvidos durante todo o desenvolvimento
Visita da segurança pública
Divulgação de dados relacionados à segurança pública (resposta de emergência, dados sobre o crime, incêndio, dados de segurança, etc.) e desenvolvimento de uma ferramenta de visualização de pesquisa para os novos dados e aqueles disponíveis em dados abertos.
Fundos de investimento
Intelligent Capital Mtl, um grupo formado inicialmente por empresas de capital de risco, 23 grupos financeiros e corporações. Estes 23 membros disponibilizam o montante de US$ 100 milhões em capital privado para financiar empresas inovadoras que não contribuem apenas para construir a cidade inteligente, mas também para o desenvolvimento do conhecimento e a criação de emprego na metrópole.

Ainda neste sentido, existe uma iniciativa capitaneada por diversas empresas e organizações públicas e privadas, que vem apresentando como resultado um ranking anual, denominado “Ranking Connected Smart Cities”. Este projeto foi desenvolvido com o intuito de elencar as cidades brasileiras que possuem iniciativas relevantes para o desenvolvimento das cidades, promovendo um crescimento sustentável e conectado, rumo ao conceito de uma cidade inteligente. Trata-se de um estudo único no Brasil, que tem por meta propor um crescimento balanceado, de modo a possibilitar um avanço qualitativo em áreas deficientes, tão comuns nos espaços urbanos brasileiros.

A última edição do ranking foi elaborada em junho de 2016, com a participação de mais de setecentos municípios, que foram avaliados a partir de um total de setenta e três indicadores, distribuídos em onze áreas ou setores, como mobilidade, tecnologia, saúde, segurança e educação. Ainda que esta categorização não indique com precisão o grau efetivo de desenvolvimento apresentado pelas cidades mais bem posicionadas, podem ser observados aspectos interessantes. Por exemplo, destacam-se nas primeiras colocações as capitais brasileiras, além de um grupo de cidades do interior do estado de São Paulo. As regiões sul e sudeste chegaram a atingir o percentual de oitenta por cento dentre as cinquenta melhor classificadas.

Os fatores determinantes para conquistar uma posição de destaque neste ranking resultam de um equilíbrio entre o avanço tecnológico e um bom desempenho nos índices socioeconômicos da população, de forma a proporcionar um incremento profícuo e consolidado na qualidade de vida dos moradores destes municípios.

Já existem cidades no Brasil dando os primeiros passos para se tornar uma “Smart City”, contudo, é importante que tanto os munícipes quanto os administradores públicos tenham consciência de que é necessário muito mais do que soluções tecnológicas para que uma cidade possa ser considerada inteligente.

É importante que exista engajamento mútuo e forte investimento em setores essenciais para a população, como educação, infraestrutura, saúde e segurança. E até mesmo mudanças culturais podem ser necessárias, de forma a viabilizar, em um futuro próximo, cidades de fato inteligentes. Conforme afirma Roberts (2004), a participação dos cidadãos é intrinsicamente valiosa porque desenvolve as mais altas capacidades humanas e promove um caráter moral ativo, de espírito público. Quanto maior for a participação, mais pessoas são atraídas para esse processo, o que o torna mais democrático e inteligente. Em outras palavras, a participação é um importante mecanismo de mudança e transformação social.

Referências

CASTELNOVO,W.; MISURACA,G. ; SAVOLDELLI,A. Smart Cities Governance: The Need for a Holistic Approach to Assessing Urban Participatory Policy Making. Social Science Computer Review, 2016, Vol.34(6), pp.724-739.

ROBERTS, N. Public Deliberation in an age of direct citizen participation. American Review of Public Administration, v. 34, n. 4, p. 315-353, Dec. 2004.

Links:

http://ranking.connectedsmartcities.com.br/

* Texto produzido por Luciano Valentim Silva, Natasha Cristine Costa e Raquel Brancher, em 2016, no contexto da disciplina Governança e Redes de Coprodução do Bem Público, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no Mestrado Profissional em Administração da Udesc Esag.

Raquel Brancher é graduada em administração pública pela Udesc Esag e atualmente é acadêmica do mestrado em administração pela UFSC. 

Natasha Cristine Costa é graduada em administração pública pela Udesc Esag e atualmente é analista de licitações e contratos da gerência de serviços de engenharia da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina – FIESC
Luciano Valentim Silva é graduado em administração pela Udesc Esag e atualmente é auditor federal de finanças e controle do Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União – CGU.

Perspectivas e desafios para que o Brasil avance em governança pública e coprodução de serviços públicos

por Gabriel Marmentini, mestrando em Administração, Udesc Esag

Para avançar nas práticas de governança pública e coprodução de serviços públicos precisamos primeiro avançar para uma visão sistêmica em detrimento do pensamento cartesiano, que ao meu ver ainda prevalece no Brasil. Essa visão das partes e não do todo nos faz cada vez mais reducionistas, não conseguindo enxergar as verdadeiras raízes dos desafios que devemos enfrentar. Não é de agora que os problemas sociais estão ficando mais complexos e demandam um nível alto de agilidade e inovação nas soluções propostas. Vejo ser impossível esperar que isso aconteça mantendo a velha mentalidade de que o Estado deve resolver tudo sozinho.


Quando converso com as pessoas sobre a necessidade de mais participação social, poucas refletem sobre o seu papel enquanto cidadão, insistem em um discurso vitimista de que os pilantras estão no poder, as grandes corporações controlam tudo às escuras e não há nada que a sociedade faça que possa mudar, afinal, a culpa é toda daqueles. No entanto, penso que muito dos problemas que temos enquanto sociedade são advindos de nós mesmos. Nossos representantes apenas nos refletem, com lastros de um povo patrimonialista, coronelista, nepotista e orgulhoso de um jeitinho brasileiro. Sendo assim, fica difícil enxergar caminhos concretos de mudanças estruturantes e sistêmicas quando nosso principal ativo, o povo, se vitimiza, se conforma ou, ainda pior, se corrompe. Embora haja um belíssimo trabalho sendo feito por mais de 300 mil organizações da sociedade civil e por incontáveis pessoas que participam de causas e exercem sua cidadania de fato, ainda é uma amostra limitada, dado o tamanho da população brasileira. Como dito anteriormente, os problemas sociais são complexos e para que tenhamos êxito em melhorias significativas e escaláveis, precisamos de uma população inteira com a consciência cidadã fluindo, cientes de que participar deve ser um direito mas também um dever. Cientes de que participar requer preparo e tempo.

Pesquisas que medem o nível das democracias ao redor do mundo mostram que o Brasil precisa melhorar principalmente nos indicadores de cultura política e participação política. Neste contexto todo é que entram os conceitos de governança, coprodução e redes, seja como possíveis soluções para aprimorar nossa democracia, ou ainda como um paradoxo de conceitos que não sabemos colocar em prática. O paradoxo a que me refiro pode ser resumido em um questionamento: como canalizar teorias em atividades práticas sendo que as pessoas envolvidas apresentam uma lacuna enorme de cultura de participação? Por mais que o governo faça um papel de articulador e promova espaços de participação política, tenho a impressão de que uma amostra muito pequena de pessoas participaria de fato, dada a falta de legitimidade que essas “participações” demonstram em resultados práticos. Ou seja, além de termos baixos níveis de participação social, temos um governo que, em geral, está preocupado com o marketing e não com o bem comum, tornando os espaços de participação meros palcos. Isso fragiliza uma consolidação da cultura de participar, pois coloca em cheque sua legitimidade quando abre espaço para questões como “do que vale participar?”. O governo deve sim executar este papel e incentivar que a população se envolva, porém não dissociado do fomento de uma nova cultura cidadã, que preconize o sentimento de pertencimento e, considerando que a legitimidade do Estado vem das expectativas atendidas da sociedade, falta mostrar mais resultados para conquistar o povo que pouco crê. O Estado precisa perceber que as pessoas têm soluções e que é necessário dar espaço para que elas falem, sair do paradigma de “construir para” e partir para o “construir com”. Quando as pessoas perceberem que isso funciona, darão valor à participação. Talvez neste momento a cultura comece a mudar.


Para finalizar, não podemos deixar de mencionar o papel do mercado no conceito de governança, que também deve estar presente nesse espectro de participação social. Agora, estaria o mercado disposto a buscar o bem comum em detrimento dos seus interesses privados? Como equilibrar essas questões? Poocharoen e Ting (2015) nos confirmam que tanto a colaboração (entre organizações) como a coprodução (entre indivíduos) são dinâmicas e não estáveis. Como esperar que um Estado seja articulador dessas práticas sendo que sua cultura é de regulação e controle? Quanto mais leio e reflito sobre toda essa temática, me surgem mais perguntas e poucas respostas. O que me deixa otimista é que tudo está em constante mudança, algumas mais rápidas outras mais lentas. Osborne (2010) mostra que ao passo em que as reformas na administração pública foram acontecendo todos esses conceitos aqui discutidos foram se moldando, chegando no que temos hoje. Pode não ser o ideal mas já é um grande começo. Assim como Ana Maria Campos nos provocou com o título do seu artigo – Accountability: já podemos traduzi-la para o português?, penso em escrever um artigo futuramente com o seguinte título – Governança: estamos prontos?, por ora acredito que resposta seja não. Contudo, cabe a mim e demais colegas conduzirmos esta mudança.


Referências

OSBORNE, Stephen. P. The new public governance? Emerging perspectives on the theory and practice of public governance. Oxon and New York: Routledge, 2010. (Introduction: The (New) Public Governance: a suitable case for treatment? Pgs. 1-16).

POOCHAROEN, Ora-orn; TING, B. Collaboration, co-production, networks: convergence of theories. Public Management Review. Vol 17, n. 4, 587-614, 2015.

Entre o Estado e o Indivíduo, o que há? Reflexão a partir do filme “Eu, Daniel Blake”

por Paula Chies Schommer

Assisti recentemente o filme Eu, Daniel Blake (trailer), dirigido por Ken Loach. Fui ao cinema curiosa, pois vários amigos haviam comentando sobre a obra, que retrata em primeiro plano a relação entre um cidadão britânico e a burocracia para receber o seguro saúde enquanto afastado do trabalho para se recuperar de um infarto.

Gostei da história e da atuação dos atores, me emocionei e refleti bastante, mas senti certo incômodo com o tom e o cerne da crítica social presente no filme. Escrevi minhas impressões a um amigo, que me incentivou a publicá-las. Assim o faço agora, observando que o texto se dirige aos que já assistiram o filme. Portanto, aos que ainda não viram o filme e pretendem fazê-lo, sugiro não prosseguir com a leitura agora. Enfim, o que me ocorreu:

Somos mortais. Enquanto vivos, precisamos uns dos outros para sobreviver e para viver bem. Nem o Estado, enquanto entidade abstrata quase equivalente a Deus, na visão de alguns, nem a Sociedade, enquanto conjunto amplo abstrato, podem mudar isso ou serem responsabilizados por isso.

Somos seres multidimensionais. Uma boa vida, que inclui dores, frustrações e morte, depende de um delicado e dinâmico equilíbrio entre o que temos de natural/ambiental/físico, relacional/social, político, intelectual e espiritual. Há momentos em que estamos mais fortes, equilibrados, e assim podemos contribuir mais com outros. Há também momentos em que estamos mais frágeis ou desequilibrados, e aí precisamos pedir e aceitar receber mais ajuda.

O Estado, enquanto aparato legal, institucional e burocrático, por mais que funcione bem, não contempla ou satisfaz todas as nossas dimensões. Ainda bem. A Sociedade, por sua vez, é algo difuso, indefinido, contemplando todos, em múltiplas e dinâmicas relações. Quem faz a ponte entre indivíduo e sociedade é a Comunidade, em suas várias formas de articulação – família, vizinhança, igrejas, sindicatos, associações e grupos diversos.

Cada um de nós, em relações com outros, desenvolve suas múltiplas dimensões e define sua identidade ao longo da vida, em diferentes espaços e tipos de relações e organizações. Se nos isolamos, se participamos pouco da vida em comunidade, se não nos articulamos politicamente na comunidade, nos colocamos na condição de cliente, usuário, beneficiário, um número frente ao Estado e ao Mercado. Se não cultivamos relações afetivas, resumindo os “laços fortes” a uma pessoa (à esposa, no caso de Blake), nos limitamos afetivamente, e se essa única pessoa falta, ficamos perdidos. Se não nos adaptamos de alguma forma às mudanças em conhecimento e trabalho, tecnologias e formas de produção, se não buscamos alternativas para desenvolver nossos dons e talentos, inclusive produtivos, ficamos à margem.

Não coloco toda a responsabilidade no indivíduo, sim reforço o papel das comunidades – intermediadoras e articuladoras de indivíduos entre si e com o ambiente social mais amplo, em diferentes fases da vida. Nesse sentido, concordo com a análise de Leo Vinicius, em LeMonde Diplomatique Brasil: Nós, Daniel Blake, em lugar de Eu, Daniel Blake. Mas cada Eu tem muitos Nós envolvidos, não apenas a identidade como classe trabalhadora. Poderíamos, ainda, incluir o divino na equação, para além do que nos é possível alcançar como Eu e como Nós, humanos. Entretanto, acreditando-se ou não em Deus, o argumento central é o mesmo.

O aparato estatal e os servidores públicos podem e devem contribuir para incentivar, mobilizar e facilitar a cidadania e a mobilização comunitária, não as substituir. Também podem ser os garantidores de certas condições básicas a todos, mas não podem oferecer tudo o que desejamos.

Ser cidadão, por sua vez, é mais do que trabalhar, pagar impostos, cumprir regras, ser portador de direitos, beneficiário de programas e políticas ou usuário de serviços públicos. É ser sujeito de deveres e direitos, sujeito ativo em opinião, ação e articulação política. O que é trabalhoso e exigente. Além disso, cada um de nós não é apenas um cidadão, condição associada à nossa dimensão política. Há as demais dimensões para cultivar, desenvolver e harmonizar.

Daniel Blake declara que não quer ser reduzido a beneficiário, usuário ou cliente, quer ser cidadão. Ele trabalha, paga impostos, não joga lixo no chão, reclama dos que pervertem a ordem, é amigável com as pessoas e ajuda os outros – ótimo. Mas exerce a cidadania um tanto individualmente. Para além disso, resiste a ser ajudado, resiste a admitir que não pode fazer tudo sozinho (quando pede ajuda, recebe – não de todos, mas de muitos, que se mostram satisfeitos em ajudar) e, aparentemente, não participa de qualquer grupo mais regular, embora seja convidado. Sua família se resumia à esposa. Seus amigos são vizinhos ou colegas que ele encontra eventualmente. Até que aparece uma família – mãe e duas crianças recém-chegadas à cidade. Tornam-se amigos, visitam-se, ele os ajuda em vários aspectos e, depois de muita insistência, permite que o ajudem também.

Essa família está em uma condição difícil, mudou para a cidade porque era onde havia moradia oferecida pela assistência social. A mãe busca emprego e mal consegue garantir que os filhos não passem fome. Mas ela não se coloca como vítima do sistema. Observa que ignorou os conselhos da mãe e não quer que esta a veja sem dinheiro. Percebe que se enganou nas expectativas em relação aos pais de seus filhos. Admite que se tivesse estudado estaria em uma condição melhor. Ela aceita ajuda, às vezes um pouco constrangida, mas sabe que precisa e é grata. Oferece ajuda, pois mesmo quando estamos frágeis podemos ajudar os outros em algo. Vê a prostituição como legítima para garantir comida para os filhos.

É claro que seria mais fácil se houvesse mais empregos, se os benefícios sociais fossem mais generosos e eficientes e se os pais ajudassem a criar os filhos, mas ela não está abandonada pelo Estado ou pela Sociedade. Sente e sofre as consequências dos problemas e virtudes do sistema, das pessoas próximas e de suas próprias escolhas. Blake também não se vitimiza, só é um pouco resistente a mudanças e tem dificuldade de pedir e de aceitar ajuda.

A crítica ao serviço público (impessoal, fragmentado, mal desenhado, terceirizado, automatizado, ineficiente etc.), embora um tanto óbvia, é pertinente. Precisamos avançar muito no desenho e na entrega dos serviços públicos, na articulação entre agências, na atuação dos servidores.

O que me incomodou no filme, afinal, foi o manifesto lido sobre o caixão de nosso personagem título. Seria lido na audiência de apelação para receber o seguro, mas não deu tempo. Ali faria todo o sentido, pois o manifesto ressalta a condição de cidadão, que luta para ser respeitado como tal. O momento e o tom da leitura, porém, convertem o cidadão em vítima. O Estado – sua ineficiência, insensibilidade, inadequação – é responsabilizado pela morte de Blake.

Me perguntei: se ele tivesse sido bem atendido, se os serviços fossem bem planejados e executados, se os servidores fossem mais gentis e flexíveis, se ele tivesse recebido o benefício sem chateações – não teria morrido? Ele sofreu um primeiro infarto por que seu trabalho era estressante e pesado e ele era oprimido? Não me pareceu. A impressão que tive é que ele gostava de seu trabalho e tinha uma boa relação com os colegas. Ele teria se recuperado bem se não tivesse os desgostos com a burocracia? Talvez, mas me parece improvável. Eu apostaria mais que sua recuperação e gosto pela vida na nova condição dependeria de ele permitir ser cuidado, de cultivar relações com amigos, familiares, organizações comunitárias, talvez até o sindicato, a igreja, enfim, viver novas experiências, outras possibilidades.

O Estado pode ajudar a promover uma boa vida, pode garantir certas condições a todos, facilitar mais do que atrapalhar a cidadania. Mas o Estado não pode nos garantir vida plena. Quem cuida de cada um de nós, quem nos permite uma vida melhor somos Eu-Nós, em múltiplas e dinâmicas relações, com Deus presente para quem o admite.

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* Nota: minhas impressões e argumentos estão relacionados a pesquisas, aulas, atividades e debates em nosso curso de administração pública e grupo de pesquisa e aos ensinamentos de parceiros e mestres ao longo da vida, neste caso especialmente José Francisco Salm e Francisco G. Heidemann, a quem sou sempre e muito grata. Agradeço também ao Carlos Nunes pelo diálogo e incentivo para publicar este texto.

População em situação de rua: história invisíveis, preconceitos evidentes

Por Gabriel Marmentini, Luiza Stein da Silva e Willian Narzetti*

Quantas vezes você já passou por um local onde encontrou pelo menos um morador de rua? Talvez muitas. Dessas, quantas vezes você sentiu medo, nojo e/ou indiferença? Talvez a maioria. Não, não é só você que tem esses sentimentos. Trata-se de algo cultural, construído ao longo do tempo e difundido para a maioria dos brasileiros. Não conseguimos compreender as dores e necessidades dessas pessoas, e acaba sendo mais fácil julgar e se manter alheio a esse universo paralelo. Generalizações como: “quem está na rua é vagabundo”; “todos que moram na rua usam drogas e bebem”; “se um morador de rua tiver a oportunidade de roubar ele o fará” – são mais que comuns em nossa sociedade.
O quanto disso é verdade? O quanto nos blindamos de preconceitos e achismos?
Vamos discutir em dois artigos alguns desses pontos com o objetivo de gerar empatia e um novo olhar para essa população. Neste primeiro conteúdo, faremos uma introdução ao tema; e aprofundaremos questões como legislação vigente, papel do governo, e papel da sociedade civil. No segundo abordaremos um caso prático da cidade de Florianópolis.
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: O QUE É?
A nomenclatura correta do ponto de vista legal é população em situação de rua e não moradores de rua. Isso porque as políticas públicas mostram claramente um objetivo em retirar as pessoas da rua, ou seja, elas estão temporariamente nesta situação (ou ao menos deveriam). De acordo com o Decreto nº 7053 de 2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua, “considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.
QUEM ESTÁ NAS RUAS? QUANTOS SÃO?
O universo da população em situação de rua é heterogêneo, não cabendo generalizações. Ainda assim é possível perceber alguns padrões, como: i) o gênero predominante é o masculino; ii) a cor da pele  não-branca predomina; iii)  a maioria é analfabeto ou completou apenas o ensino fundamental; iv) grande parte está solteiro(a) ou divorciado(a); v) a grande maioria vive de trabalhos pontuais (bicos) ou esmola e sua renda mensal não passa de meio salário mínimo. Mesmo não representando um padrão, vale comentar que existem diversos imigrantes em situação de rua espalhados pelo Brasil. A razão principal disto é a vinda em busca de trabalho e melhores condições de vida que acabam sendo frustradas.
Outro ponto importante – que costuma ser um preconceito de muitos – é que poucas pessoas em situação de rua têm antecedentes criminais. Isto está longe de ser um padrão. Sobre a quantidade de pessoas em situação de rua, não há um número unificado no Brasil. Os locais que produzem esse levantamento populacional por meio de órgãos oficiais às vezes não condizem com números levantados por outras organizações, como as da sociedade civil ou pesquisadores autônomos. Em Curitiba, por exemplo, têm-se registros de 1,7 mil pessoas em situação de rua, embora outras pesquisas já tenham estimado mais de 10 mil. Em Florianópolis, o número estimado ultrapassa 450 pessoas nessa situação, baseado em informações do Centro POP. Já em São Paulo este número sobe para a casa dos 15 mil.
MOTIVOS PARA IREM PRA RUA
De fato, parte dos preconceitos que temos se confirmam, mas não é por isso que devemos generalizar. Notícias na mídia e artigos científicos mostram diversos motivos que já estão em nossas mentes, como: alcoolismo, drogas e condições financeiras. Contudo, há motivos como doenças mentais, ausência da família, separação conjugal, expectativa frustrada de trabalho em outra cidade e, até mesmo, dificuldade de se adaptar às rotinas e regras básicas da sociedade.
A VIDA NAS RUAS
A população em situação de rua está a todo momento se reinventando. A aparente escassez de dinheiro e comida é suprida com a criatividade na busca de trabalhos pontuais – os famosos bicos, nas parcerias informais estabelecidas com donos de restaurante que dão comida, na forma como utilizam restos de alimentos e utensílios para cozinhar seus pratos. O ser humano é realmente muito adaptável e essa população nos permite observar isso bem, sobretudo quando se trata das regras das ruas. Não estão escritas, não há fiscalização, ninguém assina nada e todos respeitam as regras. Os recém-chegados, por exemplo, muitas vezes acompanham alguém mais experiente por algum tempo para que aprenda todas essas práticas da vida nas ruas. Portanto, fica a impressão de que a dificuldade em estar nas ruas está menos na falta de comida, segurança ou dinheiro, mas sim no preconceito, frio e pouco acesso aos serviços básicos de saúde.
O PAPEL DO GOVERNO
A relação do governo com a causa da população em situação de rua sempre existiu, dado que sempre foi “função governamental” acolher e assistir as populações à margem da sociedade, além de um dever intrínseco de garantir a segurança e zelar pela ordem social. Entretanto, essa relação de assistência à população em situação de rua veio se consolidar como uma obrigação legal apenas a partir da vigência da Constituição Federal de 1988.
A CF de 1988 prevê como fundamentos, em seu artigo 1º, a Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana. Além disso, coloca como princípios e objetivos a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, o bem de todos e a prevalência dos direitos humanos. Olhando para a população em situação de rua, não é difícil perceber que esta se encaixa perfeitamente nas obrigações do Estado.
Para adequar-se à Constituição, o governo e demais organizações criaram, ao longo das últimas décadas, diversos mecanismos legais, a fim de atender às demandas dessa população. Em 2004, é promulgada a Política Nacional de Assistência Social, fruto de construção coletiva e ampliada, a qual dá início ao surgimento de uma série mecanismos e outras políticas descentralizadas, preocupadas com a assistência social como um todo, incluindo a população em situação de rua.
Em 2005, é feito o I Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua, o primeiro espaço de discussão oficial desta realidade. Em 2008, é apresentado o resultado da primeira Pesquisa Nacional da População em Situação de Rua. Já em 2009 é criada a Política Nacional para a População em Situação de Rua.
A política nacional estabelece os princípios e diretrizes de trabalho a serem aplicados pelos demais entes da federação ao atuarem junto à esta população. O artigo 2º da política aborda que esta será implementada de forma descentralizada e articulada entre a União e os demais entes federativos que a ela aderirem por meio de instrumento próprio. Suas diretrizes são: a promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; responsabilidade do poder público pela sua elaboração e financiamento; integração dos esforços do poder público e da sociedade civil para sua execução; entre outras. Com a política, fica assegurado, pelo menos no papel, o dever de atuação de estados e municípios nesta causa. Nota-se que seus princípios, diretrizes e objetivos propõem como solução à problemática da população em situação de rua, a assistência, o acolhimento e o fim da situação de rua para os cidadãos que nela se encontram.
Em Florianópolis, antes mesmo da assinatura da política nacional, a Lei Orgânica de Assistência Social já previa a atuação governamental com esta população. Dentro do arcabouço de serviços de responsabilidade da Secretaria de Assistência Social estão: Casas de acolhimento, Centro POP, Abordagem de rua, Assistência Psicossocial, entre outros.
Em atendimento à política nacional foi instituída em dezembro de 2011 a Política Municipal de Atendimento à População em Situação de Rua. Esta política tem por objetivo garantir os padrões éticos de dignidade e não-violência na concretização de necessidades humanas e dos direitos de cidadania à população em situação de rua, em conformidade com a Constituição Federal, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Ela prevê, ainda, ao longo de seu texto: A Rede de serviços e programas públicos de assistência; Os Princípios para garantia de direitos; e As Medidas para acolhimento e assistência à população em situação de rua.
A partir de conversas com voluntários que trabalham com a causa, tem-se a percepção de que a atuação governamental através destas políticas é muito fraca, sendo que os serviços disponibilizados à população em situação de rua continuam os mesmos que já previam as leis voltadas à assistência social como um todo. Ao analisar as leis, pode-se notar que estas possuem como foco a assistência social com o objetivo de erradicar a situação de rua nos municípios. Segundo especialistas da área, há uma negatividade muito grande, além de muitos pré-conceitos envolvendo esta população, vista por outros cidadãos como uma ameaça à segurança pública.
A partir dos conteúdos disponibilizados pelo Movimento Nacional da População de Rua, formado pelos próprios moradores e sociedade civil, percebe-se um contraponto ao arcabouço legal. A demanda mais forte trazida pela população em situação de rua é simplesmente a busca pelos direitos humanos: alimentar-se, tomar banho, ser visto e tratado com respeito, e ter o direito de estar na rua.
INICIATIVAS QUE DÃO CERTO E O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL
Com o objetivo de prover o mínimo necessário para uma vida digna nas ruas, diversos atores vêm se organizando e promovendo trabalhos e ações com a população em situação de rua. Dentre estes atores, ganham um papel de destaque as organizações da sociedade civil sem fins lucrativos e iniciativas governamentais, as quais podem ser encontradas em grande parte do território nacional, e também internacionais, e têm atuado em diversos eixos que envolvem a temática, desde a alimentação diária e à doação de roupas, até o acolhimento em casas provisórias.
            Há também cidadãos que individualmente iniciam uma ação, o empresário Fernando Barcelos, por exemplo, criou o projeto Geladeira Solidária. A ideia é contribuir com a alimentação dos moradores de rua de um bairro de Goiânia, com alimentos que muitas vezes iriam para o lixo. Qualquer pessoa pode colocar os alimentos na geladeira, é preciso apenas seguir algumas regras de conservação e tipos de alimentos a serem doados.
            Já a empreendedora Doniece Sandoval, que mora em San Francisco (EUA), teve a ideia de criar um ônibus com chuveiros, que fica rodando pela cidade, para que diversos moradores de rua possam tomar banho, é o projeto Lava Mae. Em Curitiba (PR), uma iniciativa do poder público deu aos moradores de rua dois guarda-volumes para que estes pudessem guardar seus pertences. Para utilizar o guarda-volumes, os moradores precisam fazer um cadastro em qualquer unidade de atendimento ao morador de rua da Fundação de Ação Social, o quadro de funcionários que cuida dos espaços é composto por ex-moradores de rua.
            A Fundação de Ação Social de Curitiba, vinculada ao poder público municipal, apresentou recentemente outra iniciativa bastante interessante. Um estudo muito completo acerca da população em situação de rua de Curitiba, extraindo perfil do morador, características geográficas, além de retratar a relação do morador com sua família. Esta pesquisa mostra, por exemplo, que a grande maioria da população de rua de Curitiba é composta por homens, e existe uma grande relação entre situação de rua com álcool, drogas, e conflitos familiares. Além disso, a pobreza e os baixos níveis de escolaridade são dominantes, e a maioria possui familiares vivendo na própria cidade ou na região metropolitana de Curitiba.
            Além destes, outros casos mostrando o importante papel exercido pela sociedade civil junto a essa causa podem ser encontrados em grande quantidade na internet. O interessante aqui é observarmos que há uma diferença relevante entre aquilo que é previsto pela legislação e aquilo que é colocado em prática pela sociedade civil, e até mesmo pelo governo. Atualmente, os serviços oferecidos em maior quantidade por estes atores estão voltados à alimentação e moradia provisória, além do acompanhamento por assistentes sociais. Ainda que haja uma intenção legal de retirar a pessoa da situação de rua, os serviços apenas conseguem prover um mínimo necessário para a sobrevivência desta pessoa. Muitas vezes por questões de escassez de recursos, a sociedade civil não consegue fazer mais, além disso, vários mecanismos públicos já se mostraram ineficientes para tal objetivo. 
TIRAR AS PESSOAS DA RUA É A MELHOR SOLUÇÃO?

Bom, há quem diga que os moradores de rua sempre vão existir. Sendo assim, será que é válido focalizar esforços para retirar tais pessoas da rua ou devemos compreender que o caminho é dar dignidade a elas provendo serviços básicos mesmo que queiram passar suas vidas nas ruas? Há uma necessidade emergente para se aprofundar o debate sobre as políticas públicas voltadas à população em situação de rua. Como apontado por Andrade, Costa e Marquetti (2014), as políticas públicas estão focalizadas na retirada das pessoas das ruas, o que não promove iniciativas pessoais e coletivas de transformação, mostrando-se como políticas impositivas, pois são pautadas pelo disciplinamento do comportamento social. Os mesmos autores dizem, citando Justo (2005), que morar nas ruas dá um novo sentido ao uso do espaço público, onde atos privados tornam-se públicos e o público, entendido como o espaço coletivo de circulação, torna-se espaço de morar. Portanto, a presença do morador de rua provoca um impacto, porque torna público seu mundo privado e torna privado o espaço público. Não temos essa resposta mas deixamos a pergunta como reflexão para os leitores.
QUER SABER MAIS?
Para conhecer um caso prático da cidade de Florianópolis, acesse o segundo artigo que produzimos sobre o tema clicando aqui. Também sugerimos a leitura de alguns artigos científicos que tratam do tema e nos ajudaram a entender melhor o assunto:
*Artigo escrito em Novembro de 2016 por Gabriel Marmentini, Luiza Stein e Willian Narzetti para a disciplina Governança e Redes de Coprodução do Bem Público, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer.

Controle Social: como atuar e por onde começar?

Por Jaime Luiz Klein*

O controle social, a despeito de insipiente, vem ganhando forças no Brasil, multiplicando-se as iniciativas individuais, em grupo (Movimento Cidadão Fiscal, etc.) ou por meio de ONG´s (Observatório Social, Vigilantes da Gestão Pública, Contas Abertas, etc.), fomentado principalmente pela situação que o país enfrenta, com grave crise moral e institucional, afetando a qualidade dos serviços púbicos e a saúde financeira dos Governos, que tem elevado o grau de percepção da corrupção e ineficiência pública dos cidadãos.
Há 5 anos atuando no controle social dos gastos públicos do Município de São José, o Observatório Social de São José (OSSJ) desenvolveu metodologia própria, com objetivos, programas e ações para fiscalizar a gestão pública, cujos resultados extraordinários, que já foram destaque na mídia nacional ( http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37526368 ) e internacional ( http://www.bbc.com/mundo/noticias-37657574 ) pela rede de notícias BBC, comprovam a sua efetividade.
Com base no “know how” da equipe técnica adquirida no período, composta principalmente com voluntários especialistas de várias áreas de formação e conhecimento, e no conjunto de ações desenvolvidas, foi possível agrupar as atividades em cinco programas e estimar a sua relevância no contexto do controle social desenvolvido pelo OSSJ, conforme destacado na representação gráfica.
Entre as ações mais relevantes para a fiscalização da gestão pública, que representa 50% da atuação, constituindo-se a base da pirâmide, encontra-se o fomento à Transparência Pública, inclusive com o uso da Lei de Acesso à Informação, bem como o chamado para que o cidadão, por meio do controle social, exerça a sua cidadania, especialmente denunciando nas Ouvidorias do Ministério Público e Tribunal de Contas os indícios de irregularidades que tem ou venha a ter conhecimento.
Cidadania envolve um tripé. De acordo com o Movimento Cidadão Fiscal, não basta apenas votar e pagar impostos, também temos que cobrar, fiscalizar e denunciar. De acordo com o ex-embaixador britânico no Brasil, Alex Ellis, veiculada pela BBC Brasil, o que mais o impressionou durante o período foi a “resiliência do brasileiro”, que “toleram coisas que não deveriam ser toleradas”. O conhecimento de ilegalidades e a omissão em comunicar os fatos às autoridades é uma dessas situações, pois, infelizmente, muitos ainda consideram que a denúncia não é um ato de cidadania.
Ressalta-se que a transparência, entendida como a disponibilização ativa dos dados e documentos no Portal de Transparência, que é o pressuposto do controle social, por si só, já faz com que o gestor seja obrigado a implementar normas, fluxos e sistemas para produção de dados, tornando-o, em tese, mais racional e eficiente, e, também, fará com que o mau gestor pense e repense suas atitudes, que estarão permanentemente patentes diante da sociedade e, sobretudo, dos que tomarem consciência que precisam fiscalizar os recursos públicos e denunciar irregularidades.
No ápice da pirâmide, com 7%, figura o programa que se constitui o objetivo principal do controle social, a cereja do bolo, no adágio popular: a avaliação da efetividade dos serviços públicos. Não adianta os Governos serem transparentes, terem boas leis, serem eficientes na arrecadação e racionais na despesa, se, no final, não há merenda nas escolas, não há vagas em creche, não há médicos nos postos de saúde, etc. A despeito daquilo ser importante, constituem-se apenas de meios para se atingir estes fins.
Por fim, quem sabe você deve estar se perguntando se o controle social não deveria começar atuar pelos serviços públicos, atribuindo-lhes mais relevância, já que afetam diretamente à população? Por que, segundo a percepção deste voluntário, recebeu apenas 7% da atenção devida pela ONG? A resposta é simples: a despeito de ter recebido pouca atenção direta, todos os demais programas, indiretamente, contribuem para a melhoria da qualidade e ampliação dos serviços públicos. Desse modo, os serviços públicos recebem não apenas 7% de atenção, mas 100%. Para aferir isso, basta fazermos um exercício: Qual a resposta que o gestor público dá quando é demandado a aumentar os serviços públicos? Em regra, “não há recursos”. Dependendo de onde se começa a fiscalizar, têm-se ou não o argumento de que há sim recursos disponíveis e, ainda, mostra-se onde ele está ou em que o governo está gastando de forma irracional e até desnecessariamente.
* Por Jaime Luiz Klein, voluntário e vice-presidente do Observatório Social de São José (OSSJ) e idealizador do Movimento Cidadão Fiscal – Indo Além de Contribuinte e Eleitor.

A informação melhora a vida nas cidades?

Artigo publicado no Diário Catarinense em 29 de Agosto de 2016.

A INFORMAÇÃO MELHORA A VIDA NAS CIDADES?

Paula Chies Schommer
Professora de Administração Pública da Udesc Esag
O processo eleitoral é um momento rico para que cidadãos e políticos se envolvam em um diálogo aberto, identificando tendências e desafios e comprometendo-se a enfrentá-los. A informação pode contribuir para a política, a cidadania e a gestão pública, de forma a melhorar a vida nas cidades.
Mas isso não é automático, depende da qualidade dessa informação e do uso que se faz dela. O primeiro desafio é reunir dados fidedignos e variados, gerando informação tecnicamente qualificada e politicamente sensível ao que é relevante em cada contexto. Depois, transformá-los em indicadores e índices e torná-los disponíveis a todos.
Isto já é um grande feito, mas não basta. Nem sempre o conhecimento sobre um problema é considerado para resolvê-lo. A informação também pode ser usada para confundir, manipular e controlar. Por isso, é crucial que seja empregada de maneira democrática, contribuindo para um debate político fundamentado, para decisões e ações efetivas e para uma cidadania vigilante e ativa. Há que conectar informação, diálogo e ação.
Em Santa Catarina, temos iniciativas que buscam contribuir para isso. Uma delas é o Sistema de Indicadores de Desenvolvimento Municipal Sustentável – SIDEMS (indicadores.fecam.org.br), trabalho de uma rede de organizações associativas, acadêmicas, empresariais e públicas, lideradas pela Federação Catarinense de Municípios – FECAM. A Rede SIDEMS disponibiliza os dados e a análise de cada um dos municípios catarinenses, estimulando partidos e candidatos a considerar esta informação em seus planos de governo e no diálogo com a população.
A nós, cidadãos, cabe usar o conhecimento para identificar tendências e desafios; qualificar o diálogo envolvendo políticos, servidores e toda a sociedade em uma conversa madura sobre nossas cidades; evitar expectativas irreais e promessas impossíveis; participar da definição de metas razoáveis para o curso de um mandato; monitorá-las ao longo do tempo e produzir novos dados para aprimorar os planos e decisões cotidianas na gestão pública.
Aí sim, poderemos dizer que a informação melhora a vida em nossas cidades.

Mais vigilância, menos medo?



“We need to be more vigilant, but we cannot live in fear.”

Esta frase do Ministro do Interior da Alemanha, no texto da BBC News – Merkel and the days of terror, por Gavin Hewitt – tem a ver com o que penso sobre controle e accountability, em geral. 
O controle, a vigilância, a accountability são necessários. O exercício do poder precisa ser controlado, contrabalançado, equilibrado com outras formas de poder (contrapoder). Mas não são fins em si; não a serviço do medo e do isolamento, sim a serviço da confiança nas relações, a serviço da liberdade e da alegria de conviver. 
É desafiador: como ser mais vigilante e não se entregar ao medo e à desconfiança? Como controlar e ser controlado e favorecer a confiança, o diálogo e a convivência? 
Delicado equilíbrio.

* Lembrei também da famosa frase: “O preço da liberdade é a eterna vigilância” (autoria atribuída a Thomas Jefferson, Aldous Huwley, Patrick Henry, talvez outros mais). 
** E de Aurélio Schommer, que se dedica a vigiar seus pressupostos. Talvez a mais importante das vigilâncias.