Perspectivas e desafios para que o Brasil avance em governança pública e coprodução de serviços públicos

por Gabriel Marmentini, mestrando em Administração, Udesc Esag

Para avançar nas práticas de governança pública e coprodução de serviços públicos precisamos primeiro avançar para uma visão sistêmica em detrimento do pensamento cartesiano, que ao meu ver ainda prevalece no Brasil. Essa visão das partes e não do todo nos faz cada vez mais reducionistas, não conseguindo enxergar as verdadeiras raízes dos desafios que devemos enfrentar. Não é de agora que os problemas sociais estão ficando mais complexos e demandam um nível alto de agilidade e inovação nas soluções propostas. Vejo ser impossível esperar que isso aconteça mantendo a velha mentalidade de que o Estado deve resolver tudo sozinho.


Quando converso com as pessoas sobre a necessidade de mais participação social, poucas refletem sobre o seu papel enquanto cidadão, insistem em um discurso vitimista de que os pilantras estão no poder, as grandes corporações controlam tudo às escuras e não há nada que a sociedade faça que possa mudar, afinal, a culpa é toda daqueles. No entanto, penso que muito dos problemas que temos enquanto sociedade são advindos de nós mesmos. Nossos representantes apenas nos refletem, com lastros de um povo patrimonialista, coronelista, nepotista e orgulhoso de um jeitinho brasileiro. Sendo assim, fica difícil enxergar caminhos concretos de mudanças estruturantes e sistêmicas quando nosso principal ativo, o povo, se vitimiza, se conforma ou, ainda pior, se corrompe. Embora haja um belíssimo trabalho sendo feito por mais de 300 mil organizações da sociedade civil e por incontáveis pessoas que participam de causas e exercem sua cidadania de fato, ainda é uma amostra limitada, dado o tamanho da população brasileira. Como dito anteriormente, os problemas sociais são complexos e para que tenhamos êxito em melhorias significativas e escaláveis, precisamos de uma população inteira com a consciência cidadã fluindo, cientes de que participar deve ser um direito mas também um dever. Cientes de que participar requer preparo e tempo.

Pesquisas que medem o nível das democracias ao redor do mundo mostram que o Brasil precisa melhorar principalmente nos indicadores de cultura política e participação política. Neste contexto todo é que entram os conceitos de governança, coprodução e redes, seja como possíveis soluções para aprimorar nossa democracia, ou ainda como um paradoxo de conceitos que não sabemos colocar em prática. O paradoxo a que me refiro pode ser resumido em um questionamento: como canalizar teorias em atividades práticas sendo que as pessoas envolvidas apresentam uma lacuna enorme de cultura de participação? Por mais que o governo faça um papel de articulador e promova espaços de participação política, tenho a impressão de que uma amostra muito pequena de pessoas participaria de fato, dada a falta de legitimidade que essas “participações” demonstram em resultados práticos. Ou seja, além de termos baixos níveis de participação social, temos um governo que, em geral, está preocupado com o marketing e não com o bem comum, tornando os espaços de participação meros palcos. Isso fragiliza uma consolidação da cultura de participar, pois coloca em cheque sua legitimidade quando abre espaço para questões como “do que vale participar?”. O governo deve sim executar este papel e incentivar que a população se envolva, porém não dissociado do fomento de uma nova cultura cidadã, que preconize o sentimento de pertencimento e, considerando que a legitimidade do Estado vem das expectativas atendidas da sociedade, falta mostrar mais resultados para conquistar o povo que pouco crê. O Estado precisa perceber que as pessoas têm soluções e que é necessário dar espaço para que elas falem, sair do paradigma de “construir para” e partir para o “construir com”. Quando as pessoas perceberem que isso funciona, darão valor à participação. Talvez neste momento a cultura comece a mudar.


Para finalizar, não podemos deixar de mencionar o papel do mercado no conceito de governança, que também deve estar presente nesse espectro de participação social. Agora, estaria o mercado disposto a buscar o bem comum em detrimento dos seus interesses privados? Como equilibrar essas questões? Poocharoen e Ting (2015) nos confirmam que tanto a colaboração (entre organizações) como a coprodução (entre indivíduos) são dinâmicas e não estáveis. Como esperar que um Estado seja articulador dessas práticas sendo que sua cultura é de regulação e controle? Quanto mais leio e reflito sobre toda essa temática, me surgem mais perguntas e poucas respostas. O que me deixa otimista é que tudo está em constante mudança, algumas mais rápidas outras mais lentas. Osborne (2010) mostra que ao passo em que as reformas na administração pública foram acontecendo todos esses conceitos aqui discutidos foram se moldando, chegando no que temos hoje. Pode não ser o ideal mas já é um grande começo. Assim como Ana Maria Campos nos provocou com o título do seu artigo – Accountability: já podemos traduzi-la para o português?, penso em escrever um artigo futuramente com o seguinte título – Governança: estamos prontos?, por ora acredito que resposta seja não. Contudo, cabe a mim e demais colegas conduzirmos esta mudança.


Referências

OSBORNE, Stephen. P. The new public governance? Emerging perspectives on the theory and practice of public governance. Oxon and New York: Routledge, 2010. (Introduction: The (New) Public Governance: a suitable case for treatment? Pgs. 1-16).

POOCHAROEN, Ora-orn; TING, B. Collaboration, co-production, networks: convergence of theories. Public Management Review. Vol 17, n. 4, 587-614, 2015.

Entre o Estado e o Indivíduo, o que há? Reflexão a partir do filme “Eu, Daniel Blake”

por Paula Chies Schommer

Assisti recentemente o filme Eu, Daniel Blake (trailer), dirigido por Ken Loach. Fui ao cinema curiosa, pois vários amigos haviam comentando sobre a obra, que retrata em primeiro plano a relação entre um cidadão britânico e a burocracia para receber o seguro saúde enquanto afastado do trabalho para se recuperar de um infarto.

Gostei da história e da atuação dos atores, me emocionei e refleti bastante, mas senti certo incômodo com o tom e o cerne da crítica social presente no filme. Escrevi minhas impressões a um amigo, que me incentivou a publicá-las. Assim o faço agora, observando que o texto se dirige aos que já assistiram o filme. Portanto, aos que ainda não viram o filme e pretendem fazê-lo, sugiro não prosseguir com a leitura agora. Enfim, o que me ocorreu:

Somos mortais. Enquanto vivos, precisamos uns dos outros para sobreviver e para viver bem. Nem o Estado, enquanto entidade abstrata quase equivalente a Deus, na visão de alguns, nem a Sociedade, enquanto conjunto amplo abstrato, podem mudar isso ou serem responsabilizados por isso.

Somos seres multidimensionais. Uma boa vida, que inclui dores, frustrações e morte, depende de um delicado e dinâmico equilíbrio entre o que temos de natural/ambiental/físico, relacional/social, político, intelectual e espiritual. Há momentos em que estamos mais fortes, equilibrados, e assim podemos contribuir mais com outros. Há também momentos em que estamos mais frágeis ou desequilibrados, e aí precisamos pedir e aceitar receber mais ajuda.

O Estado, enquanto aparato legal, institucional e burocrático, por mais que funcione bem, não contempla ou satisfaz todas as nossas dimensões. Ainda bem. A Sociedade, por sua vez, é algo difuso, indefinido, contemplando todos, em múltiplas e dinâmicas relações. Quem faz a ponte entre indivíduo e sociedade é a Comunidade, em suas várias formas de articulação – família, vizinhança, igrejas, sindicatos, associações e grupos diversos.

Cada um de nós, em relações com outros, desenvolve suas múltiplas dimensões e define sua identidade ao longo da vida, em diferentes espaços e tipos de relações e organizações. Se nos isolamos, se participamos pouco da vida em comunidade, se não nos articulamos politicamente na comunidade, nos colocamos na condição de cliente, usuário, beneficiário, um número frente ao Estado e ao Mercado. Se não cultivamos relações afetivas, resumindo os “laços fortes” a uma pessoa (à esposa, no caso de Blake), nos limitamos afetivamente, e se essa única pessoa falta, ficamos perdidos. Se não nos adaptamos de alguma forma às mudanças em conhecimento e trabalho, tecnologias e formas de produção, se não buscamos alternativas para desenvolver nossos dons e talentos, inclusive produtivos, ficamos à margem.

Não coloco toda a responsabilidade no indivíduo, sim reforço o papel das comunidades – intermediadoras e articuladoras de indivíduos entre si e com o ambiente social mais amplo, em diferentes fases da vida. Nesse sentido, concordo com a análise de Leo Vinicius, em LeMonde Diplomatique Brasil: Nós, Daniel Blake, em lugar de Eu, Daniel Blake. Mas cada Eu tem muitos Nós envolvidos, não apenas a identidade como classe trabalhadora. Poderíamos, ainda, incluir o divino na equação, para além do que nos é possível alcançar como Eu e como Nós, humanos. Entretanto, acreditando-se ou não em Deus, o argumento central é o mesmo.

O aparato estatal e os servidores públicos podem e devem contribuir para incentivar, mobilizar e facilitar a cidadania e a mobilização comunitária, não as substituir. Também podem ser os garantidores de certas condições básicas a todos, mas não podem oferecer tudo o que desejamos.

Ser cidadão, por sua vez, é mais do que trabalhar, pagar impostos, cumprir regras, ser portador de direitos, beneficiário de programas e políticas ou usuário de serviços públicos. É ser sujeito de deveres e direitos, sujeito ativo em opinião, ação e articulação política. O que é trabalhoso e exigente. Além disso, cada um de nós não é apenas um cidadão, condição associada à nossa dimensão política. Há as demais dimensões para cultivar, desenvolver e harmonizar.

Daniel Blake declara que não quer ser reduzido a beneficiário, usuário ou cliente, quer ser cidadão. Ele trabalha, paga impostos, não joga lixo no chão, reclama dos que pervertem a ordem, é amigável com as pessoas e ajuda os outros – ótimo. Mas exerce a cidadania um tanto individualmente. Para além disso, resiste a ser ajudado, resiste a admitir que não pode fazer tudo sozinho (quando pede ajuda, recebe – não de todos, mas de muitos, que se mostram satisfeitos em ajudar) e, aparentemente, não participa de qualquer grupo mais regular, embora seja convidado. Sua família se resumia à esposa. Seus amigos são vizinhos ou colegas que ele encontra eventualmente. Até que aparece uma família – mãe e duas crianças recém-chegadas à cidade. Tornam-se amigos, visitam-se, ele os ajuda em vários aspectos e, depois de muita insistência, permite que o ajudem também.

Essa família está em uma condição difícil, mudou para a cidade porque era onde havia moradia oferecida pela assistência social. A mãe busca emprego e mal consegue garantir que os filhos não passem fome. Mas ela não se coloca como vítima do sistema. Observa que ignorou os conselhos da mãe e não quer que esta a veja sem dinheiro. Percebe que se enganou nas expectativas em relação aos pais de seus filhos. Admite que se tivesse estudado estaria em uma condição melhor. Ela aceita ajuda, às vezes um pouco constrangida, mas sabe que precisa e é grata. Oferece ajuda, pois mesmo quando estamos frágeis podemos ajudar os outros em algo. Vê a prostituição como legítima para garantir comida para os filhos.

É claro que seria mais fácil se houvesse mais empregos, se os benefícios sociais fossem mais generosos e eficientes e se os pais ajudassem a criar os filhos, mas ela não está abandonada pelo Estado ou pela Sociedade. Sente e sofre as consequências dos problemas e virtudes do sistema, das pessoas próximas e de suas próprias escolhas. Blake também não se vitimiza, só é um pouco resistente a mudanças e tem dificuldade de pedir e de aceitar ajuda.

A crítica ao serviço público (impessoal, fragmentado, mal desenhado, terceirizado, automatizado, ineficiente etc.), embora um tanto óbvia, é pertinente. Precisamos avançar muito no desenho e na entrega dos serviços públicos, na articulação entre agências, na atuação dos servidores.

O que me incomodou no filme, afinal, foi o manifesto lido sobre o caixão de nosso personagem título. Seria lido na audiência de apelação para receber o seguro, mas não deu tempo. Ali faria todo o sentido, pois o manifesto ressalta a condição de cidadão, que luta para ser respeitado como tal. O momento e o tom da leitura, porém, convertem o cidadão em vítima. O Estado – sua ineficiência, insensibilidade, inadequação – é responsabilizado pela morte de Blake.

Me perguntei: se ele tivesse sido bem atendido, se os serviços fossem bem planejados e executados, se os servidores fossem mais gentis e flexíveis, se ele tivesse recebido o benefício sem chateações – não teria morrido? Ele sofreu um primeiro infarto por que seu trabalho era estressante e pesado e ele era oprimido? Não me pareceu. A impressão que tive é que ele gostava de seu trabalho e tinha uma boa relação com os colegas. Ele teria se recuperado bem se não tivesse os desgostos com a burocracia? Talvez, mas me parece improvável. Eu apostaria mais que sua recuperação e gosto pela vida na nova condição dependeria de ele permitir ser cuidado, de cultivar relações com amigos, familiares, organizações comunitárias, talvez até o sindicato, a igreja, enfim, viver novas experiências, outras possibilidades.

O Estado pode ajudar a promover uma boa vida, pode garantir certas condições a todos, facilitar mais do que atrapalhar a cidadania. Mas o Estado não pode nos garantir vida plena. Quem cuida de cada um de nós, quem nos permite uma vida melhor somos Eu-Nós, em múltiplas e dinâmicas relações, com Deus presente para quem o admite.

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* Nota: minhas impressões e argumentos estão relacionados a pesquisas, aulas, atividades e debates em nosso curso de administração pública e grupo de pesquisa e aos ensinamentos de parceiros e mestres ao longo da vida, neste caso especialmente José Francisco Salm e Francisco G. Heidemann, a quem sou sempre e muito grata. Agradeço também ao Carlos Nunes pelo diálogo e incentivo para publicar este texto.

População em situação de rua: história invisíveis, preconceitos evidentes

Por Gabriel Marmentini, Luiza Stein da Silva e Willian Narzetti*

Quantas vezes você já passou por um local onde encontrou pelo menos um morador de rua? Talvez muitas. Dessas, quantas vezes você sentiu medo, nojo e/ou indiferença? Talvez a maioria. Não, não é só você que tem esses sentimentos. Trata-se de algo cultural, construído ao longo do tempo e difundido para a maioria dos brasileiros. Não conseguimos compreender as dores e necessidades dessas pessoas, e acaba sendo mais fácil julgar e se manter alheio a esse universo paralelo. Generalizações como: “quem está na rua é vagabundo”; “todos que moram na rua usam drogas e bebem”; “se um morador de rua tiver a oportunidade de roubar ele o fará” – são mais que comuns em nossa sociedade.
O quanto disso é verdade? O quanto nos blindamos de preconceitos e achismos?
Vamos discutir em dois artigos alguns desses pontos com o objetivo de gerar empatia e um novo olhar para essa população. Neste primeiro conteúdo, faremos uma introdução ao tema; e aprofundaremos questões como legislação vigente, papel do governo, e papel da sociedade civil. No segundo abordaremos um caso prático da cidade de Florianópolis.
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: O QUE É?
A nomenclatura correta do ponto de vista legal é população em situação de rua e não moradores de rua. Isso porque as políticas públicas mostram claramente um objetivo em retirar as pessoas da rua, ou seja, elas estão temporariamente nesta situação (ou ao menos deveriam). De acordo com o Decreto nº 7053 de 2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua, “considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.
QUEM ESTÁ NAS RUAS? QUANTOS SÃO?
O universo da população em situação de rua é heterogêneo, não cabendo generalizações. Ainda assim é possível perceber alguns padrões, como: i) o gênero predominante é o masculino; ii) a cor da pele  não-branca predomina; iii)  a maioria é analfabeto ou completou apenas o ensino fundamental; iv) grande parte está solteiro(a) ou divorciado(a); v) a grande maioria vive de trabalhos pontuais (bicos) ou esmola e sua renda mensal não passa de meio salário mínimo. Mesmo não representando um padrão, vale comentar que existem diversos imigrantes em situação de rua espalhados pelo Brasil. A razão principal disto é a vinda em busca de trabalho e melhores condições de vida que acabam sendo frustradas.
Outro ponto importante – que costuma ser um preconceito de muitos – é que poucas pessoas em situação de rua têm antecedentes criminais. Isto está longe de ser um padrão. Sobre a quantidade de pessoas em situação de rua, não há um número unificado no Brasil. Os locais que produzem esse levantamento populacional por meio de órgãos oficiais às vezes não condizem com números levantados por outras organizações, como as da sociedade civil ou pesquisadores autônomos. Em Curitiba, por exemplo, têm-se registros de 1,7 mil pessoas em situação de rua, embora outras pesquisas já tenham estimado mais de 10 mil. Em Florianópolis, o número estimado ultrapassa 450 pessoas nessa situação, baseado em informações do Centro POP. Já em São Paulo este número sobe para a casa dos 15 mil.
MOTIVOS PARA IREM PRA RUA
De fato, parte dos preconceitos que temos se confirmam, mas não é por isso que devemos generalizar. Notícias na mídia e artigos científicos mostram diversos motivos que já estão em nossas mentes, como: alcoolismo, drogas e condições financeiras. Contudo, há motivos como doenças mentais, ausência da família, separação conjugal, expectativa frustrada de trabalho em outra cidade e, até mesmo, dificuldade de se adaptar às rotinas e regras básicas da sociedade.
A VIDA NAS RUAS
A população em situação de rua está a todo momento se reinventando. A aparente escassez de dinheiro e comida é suprida com a criatividade na busca de trabalhos pontuais – os famosos bicos, nas parcerias informais estabelecidas com donos de restaurante que dão comida, na forma como utilizam restos de alimentos e utensílios para cozinhar seus pratos. O ser humano é realmente muito adaptável e essa população nos permite observar isso bem, sobretudo quando se trata das regras das ruas. Não estão escritas, não há fiscalização, ninguém assina nada e todos respeitam as regras. Os recém-chegados, por exemplo, muitas vezes acompanham alguém mais experiente por algum tempo para que aprenda todas essas práticas da vida nas ruas. Portanto, fica a impressão de que a dificuldade em estar nas ruas está menos na falta de comida, segurança ou dinheiro, mas sim no preconceito, frio e pouco acesso aos serviços básicos de saúde.
O PAPEL DO GOVERNO
A relação do governo com a causa da população em situação de rua sempre existiu, dado que sempre foi “função governamental” acolher e assistir as populações à margem da sociedade, além de um dever intrínseco de garantir a segurança e zelar pela ordem social. Entretanto, essa relação de assistência à população em situação de rua veio se consolidar como uma obrigação legal apenas a partir da vigência da Constituição Federal de 1988.
A CF de 1988 prevê como fundamentos, em seu artigo 1º, a Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana. Além disso, coloca como princípios e objetivos a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, o bem de todos e a prevalência dos direitos humanos. Olhando para a população em situação de rua, não é difícil perceber que esta se encaixa perfeitamente nas obrigações do Estado.
Para adequar-se à Constituição, o governo e demais organizações criaram, ao longo das últimas décadas, diversos mecanismos legais, a fim de atender às demandas dessa população. Em 2004, é promulgada a Política Nacional de Assistência Social, fruto de construção coletiva e ampliada, a qual dá início ao surgimento de uma série mecanismos e outras políticas descentralizadas, preocupadas com a assistência social como um todo, incluindo a população em situação de rua.
Em 2005, é feito o I Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua, o primeiro espaço de discussão oficial desta realidade. Em 2008, é apresentado o resultado da primeira Pesquisa Nacional da População em Situação de Rua. Já em 2009 é criada a Política Nacional para a População em Situação de Rua.
A política nacional estabelece os princípios e diretrizes de trabalho a serem aplicados pelos demais entes da federação ao atuarem junto à esta população. O artigo 2º da política aborda que esta será implementada de forma descentralizada e articulada entre a União e os demais entes federativos que a ela aderirem por meio de instrumento próprio. Suas diretrizes são: a promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; responsabilidade do poder público pela sua elaboração e financiamento; integração dos esforços do poder público e da sociedade civil para sua execução; entre outras. Com a política, fica assegurado, pelo menos no papel, o dever de atuação de estados e municípios nesta causa. Nota-se que seus princípios, diretrizes e objetivos propõem como solução à problemática da população em situação de rua, a assistência, o acolhimento e o fim da situação de rua para os cidadãos que nela se encontram.
Em Florianópolis, antes mesmo da assinatura da política nacional, a Lei Orgânica de Assistência Social já previa a atuação governamental com esta população. Dentro do arcabouço de serviços de responsabilidade da Secretaria de Assistência Social estão: Casas de acolhimento, Centro POP, Abordagem de rua, Assistência Psicossocial, entre outros.
Em atendimento à política nacional foi instituída em dezembro de 2011 a Política Municipal de Atendimento à População em Situação de Rua. Esta política tem por objetivo garantir os padrões éticos de dignidade e não-violência na concretização de necessidades humanas e dos direitos de cidadania à população em situação de rua, em conformidade com a Constituição Federal, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Ela prevê, ainda, ao longo de seu texto: A Rede de serviços e programas públicos de assistência; Os Princípios para garantia de direitos; e As Medidas para acolhimento e assistência à população em situação de rua.
A partir de conversas com voluntários que trabalham com a causa, tem-se a percepção de que a atuação governamental através destas políticas é muito fraca, sendo que os serviços disponibilizados à população em situação de rua continuam os mesmos que já previam as leis voltadas à assistência social como um todo. Ao analisar as leis, pode-se notar que estas possuem como foco a assistência social com o objetivo de erradicar a situação de rua nos municípios. Segundo especialistas da área, há uma negatividade muito grande, além de muitos pré-conceitos envolvendo esta população, vista por outros cidadãos como uma ameaça à segurança pública.
A partir dos conteúdos disponibilizados pelo Movimento Nacional da População de Rua, formado pelos próprios moradores e sociedade civil, percebe-se um contraponto ao arcabouço legal. A demanda mais forte trazida pela população em situação de rua é simplesmente a busca pelos direitos humanos: alimentar-se, tomar banho, ser visto e tratado com respeito, e ter o direito de estar na rua.
INICIATIVAS QUE DÃO CERTO E O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL
Com o objetivo de prover o mínimo necessário para uma vida digna nas ruas, diversos atores vêm se organizando e promovendo trabalhos e ações com a população em situação de rua. Dentre estes atores, ganham um papel de destaque as organizações da sociedade civil sem fins lucrativos e iniciativas governamentais, as quais podem ser encontradas em grande parte do território nacional, e também internacionais, e têm atuado em diversos eixos que envolvem a temática, desde a alimentação diária e à doação de roupas, até o acolhimento em casas provisórias.
            Há também cidadãos que individualmente iniciam uma ação, o empresário Fernando Barcelos, por exemplo, criou o projeto Geladeira Solidária. A ideia é contribuir com a alimentação dos moradores de rua de um bairro de Goiânia, com alimentos que muitas vezes iriam para o lixo. Qualquer pessoa pode colocar os alimentos na geladeira, é preciso apenas seguir algumas regras de conservação e tipos de alimentos a serem doados.
            Já a empreendedora Doniece Sandoval, que mora em San Francisco (EUA), teve a ideia de criar um ônibus com chuveiros, que fica rodando pela cidade, para que diversos moradores de rua possam tomar banho, é o projeto Lava Mae. Em Curitiba (PR), uma iniciativa do poder público deu aos moradores de rua dois guarda-volumes para que estes pudessem guardar seus pertences. Para utilizar o guarda-volumes, os moradores precisam fazer um cadastro em qualquer unidade de atendimento ao morador de rua da Fundação de Ação Social, o quadro de funcionários que cuida dos espaços é composto por ex-moradores de rua.
            A Fundação de Ação Social de Curitiba, vinculada ao poder público municipal, apresentou recentemente outra iniciativa bastante interessante. Um estudo muito completo acerca da população em situação de rua de Curitiba, extraindo perfil do morador, características geográficas, além de retratar a relação do morador com sua família. Esta pesquisa mostra, por exemplo, que a grande maioria da população de rua de Curitiba é composta por homens, e existe uma grande relação entre situação de rua com álcool, drogas, e conflitos familiares. Além disso, a pobreza e os baixos níveis de escolaridade são dominantes, e a maioria possui familiares vivendo na própria cidade ou na região metropolitana de Curitiba.
            Além destes, outros casos mostrando o importante papel exercido pela sociedade civil junto a essa causa podem ser encontrados em grande quantidade na internet. O interessante aqui é observarmos que há uma diferença relevante entre aquilo que é previsto pela legislação e aquilo que é colocado em prática pela sociedade civil, e até mesmo pelo governo. Atualmente, os serviços oferecidos em maior quantidade por estes atores estão voltados à alimentação e moradia provisória, além do acompanhamento por assistentes sociais. Ainda que haja uma intenção legal de retirar a pessoa da situação de rua, os serviços apenas conseguem prover um mínimo necessário para a sobrevivência desta pessoa. Muitas vezes por questões de escassez de recursos, a sociedade civil não consegue fazer mais, além disso, vários mecanismos públicos já se mostraram ineficientes para tal objetivo. 
TIRAR AS PESSOAS DA RUA É A MELHOR SOLUÇÃO?

Bom, há quem diga que os moradores de rua sempre vão existir. Sendo assim, será que é válido focalizar esforços para retirar tais pessoas da rua ou devemos compreender que o caminho é dar dignidade a elas provendo serviços básicos mesmo que queiram passar suas vidas nas ruas? Há uma necessidade emergente para se aprofundar o debate sobre as políticas públicas voltadas à população em situação de rua. Como apontado por Andrade, Costa e Marquetti (2014), as políticas públicas estão focalizadas na retirada das pessoas das ruas, o que não promove iniciativas pessoais e coletivas de transformação, mostrando-se como políticas impositivas, pois são pautadas pelo disciplinamento do comportamento social. Os mesmos autores dizem, citando Justo (2005), que morar nas ruas dá um novo sentido ao uso do espaço público, onde atos privados tornam-se públicos e o público, entendido como o espaço coletivo de circulação, torna-se espaço de morar. Portanto, a presença do morador de rua provoca um impacto, porque torna público seu mundo privado e torna privado o espaço público. Não temos essa resposta mas deixamos a pergunta como reflexão para os leitores.
QUER SABER MAIS?
Para conhecer um caso prático da cidade de Florianópolis, acesse o segundo artigo que produzimos sobre o tema clicando aqui. Também sugerimos a leitura de alguns artigos científicos que tratam do tema e nos ajudaram a entender melhor o assunto:
*Artigo escrito em Novembro de 2016 por Gabriel Marmentini, Luiza Stein e Willian Narzetti para a disciplina Governança e Redes de Coprodução do Bem Público, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer.

Controle Social: como atuar e por onde começar?

Por Jaime Luiz Klein*

O controle social, a despeito de insipiente, vem ganhando forças no Brasil, multiplicando-se as iniciativas individuais, em grupo (Movimento Cidadão Fiscal, etc.) ou por meio de ONG´s (Observatório Social, Vigilantes da Gestão Pública, Contas Abertas, etc.), fomentado principalmente pela situação que o país enfrenta, com grave crise moral e institucional, afetando a qualidade dos serviços púbicos e a saúde financeira dos Governos, que tem elevado o grau de percepção da corrupção e ineficiência pública dos cidadãos.
Há 5 anos atuando no controle social dos gastos públicos do Município de São José, o Observatório Social de São José (OSSJ) desenvolveu metodologia própria, com objetivos, programas e ações para fiscalizar a gestão pública, cujos resultados extraordinários, que já foram destaque na mídia nacional ( http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37526368 ) e internacional ( http://www.bbc.com/mundo/noticias-37657574 ) pela rede de notícias BBC, comprovam a sua efetividade.
Com base no “know how” da equipe técnica adquirida no período, composta principalmente com voluntários especialistas de várias áreas de formação e conhecimento, e no conjunto de ações desenvolvidas, foi possível agrupar as atividades em cinco programas e estimar a sua relevância no contexto do controle social desenvolvido pelo OSSJ, conforme destacado na representação gráfica.
Entre as ações mais relevantes para a fiscalização da gestão pública, que representa 50% da atuação, constituindo-se a base da pirâmide, encontra-se o fomento à Transparência Pública, inclusive com o uso da Lei de Acesso à Informação, bem como o chamado para que o cidadão, por meio do controle social, exerça a sua cidadania, especialmente denunciando nas Ouvidorias do Ministério Público e Tribunal de Contas os indícios de irregularidades que tem ou venha a ter conhecimento.
Cidadania envolve um tripé. De acordo com o Movimento Cidadão Fiscal, não basta apenas votar e pagar impostos, também temos que cobrar, fiscalizar e denunciar. De acordo com o ex-embaixador britânico no Brasil, Alex Ellis, veiculada pela BBC Brasil, o que mais o impressionou durante o período foi a “resiliência do brasileiro”, que “toleram coisas que não deveriam ser toleradas”. O conhecimento de ilegalidades e a omissão em comunicar os fatos às autoridades é uma dessas situações, pois, infelizmente, muitos ainda consideram que a denúncia não é um ato de cidadania.
Ressalta-se que a transparência, entendida como a disponibilização ativa dos dados e documentos no Portal de Transparência, que é o pressuposto do controle social, por si só, já faz com que o gestor seja obrigado a implementar normas, fluxos e sistemas para produção de dados, tornando-o, em tese, mais racional e eficiente, e, também, fará com que o mau gestor pense e repense suas atitudes, que estarão permanentemente patentes diante da sociedade e, sobretudo, dos que tomarem consciência que precisam fiscalizar os recursos públicos e denunciar irregularidades.
No ápice da pirâmide, com 7%, figura o programa que se constitui o objetivo principal do controle social, a cereja do bolo, no adágio popular: a avaliação da efetividade dos serviços públicos. Não adianta os Governos serem transparentes, terem boas leis, serem eficientes na arrecadação e racionais na despesa, se, no final, não há merenda nas escolas, não há vagas em creche, não há médicos nos postos de saúde, etc. A despeito daquilo ser importante, constituem-se apenas de meios para se atingir estes fins.
Por fim, quem sabe você deve estar se perguntando se o controle social não deveria começar atuar pelos serviços públicos, atribuindo-lhes mais relevância, já que afetam diretamente à população? Por que, segundo a percepção deste voluntário, recebeu apenas 7% da atenção devida pela ONG? A resposta é simples: a despeito de ter recebido pouca atenção direta, todos os demais programas, indiretamente, contribuem para a melhoria da qualidade e ampliação dos serviços públicos. Desse modo, os serviços públicos recebem não apenas 7% de atenção, mas 100%. Para aferir isso, basta fazermos um exercício: Qual a resposta que o gestor público dá quando é demandado a aumentar os serviços públicos? Em regra, “não há recursos”. Dependendo de onde se começa a fiscalizar, têm-se ou não o argumento de que há sim recursos disponíveis e, ainda, mostra-se onde ele está ou em que o governo está gastando de forma irracional e até desnecessariamente.
* Por Jaime Luiz Klein, voluntário e vice-presidente do Observatório Social de São José (OSSJ) e idealizador do Movimento Cidadão Fiscal – Indo Além de Contribuinte e Eleitor.

A informação melhora a vida nas cidades?

Artigo publicado no Diário Catarinense em 29 de Agosto de 2016.

A INFORMAÇÃO MELHORA A VIDA NAS CIDADES?

Paula Chies Schommer
Professora de Administração Pública da Udesc Esag
O processo eleitoral é um momento rico para que cidadãos e políticos se envolvam em um diálogo aberto, identificando tendências e desafios e comprometendo-se a enfrentá-los. A informação pode contribuir para a política, a cidadania e a gestão pública, de forma a melhorar a vida nas cidades.
Mas isso não é automático, depende da qualidade dessa informação e do uso que se faz dela. O primeiro desafio é reunir dados fidedignos e variados, gerando informação tecnicamente qualificada e politicamente sensível ao que é relevante em cada contexto. Depois, transformá-los em indicadores e índices e torná-los disponíveis a todos.
Isto já é um grande feito, mas não basta. Nem sempre o conhecimento sobre um problema é considerado para resolvê-lo. A informação também pode ser usada para confundir, manipular e controlar. Por isso, é crucial que seja empregada de maneira democrática, contribuindo para um debate político fundamentado, para decisões e ações efetivas e para uma cidadania vigilante e ativa. Há que conectar informação, diálogo e ação.
Em Santa Catarina, temos iniciativas que buscam contribuir para isso. Uma delas é o Sistema de Indicadores de Desenvolvimento Municipal Sustentável – SIDEMS (indicadores.fecam.org.br), trabalho de uma rede de organizações associativas, acadêmicas, empresariais e públicas, lideradas pela Federação Catarinense de Municípios – FECAM. A Rede SIDEMS disponibiliza os dados e a análise de cada um dos municípios catarinenses, estimulando partidos e candidatos a considerar esta informação em seus planos de governo e no diálogo com a população.
A nós, cidadãos, cabe usar o conhecimento para identificar tendências e desafios; qualificar o diálogo envolvendo políticos, servidores e toda a sociedade em uma conversa madura sobre nossas cidades; evitar expectativas irreais e promessas impossíveis; participar da definição de metas razoáveis para o curso de um mandato; monitorá-las ao longo do tempo e produzir novos dados para aprimorar os planos e decisões cotidianas na gestão pública.
Aí sim, poderemos dizer que a informação melhora a vida em nossas cidades.

Mais vigilância, menos medo?



“We need to be more vigilant, but we cannot live in fear.”

Esta frase do Ministro do Interior da Alemanha, no texto da BBC News – Merkel and the days of terror, por Gavin Hewitt – tem a ver com o que penso sobre controle e accountability, em geral. 
O controle, a vigilância, a accountability são necessários. O exercício do poder precisa ser controlado, contrabalançado, equilibrado com outras formas de poder (contrapoder). Mas não são fins em si; não a serviço do medo e do isolamento, sim a serviço da confiança nas relações, a serviço da liberdade e da alegria de conviver. 
É desafiador: como ser mais vigilante e não se entregar ao medo e à desconfiança? Como controlar e ser controlado e favorecer a confiança, o diálogo e a convivência? 
Delicado equilíbrio.

* Lembrei também da famosa frase: “O preço da liberdade é a eterna vigilância” (autoria atribuída a Thomas Jefferson, Aldous Huwley, Patrick Henry, talvez outros mais). 
** E de Aurélio Schommer, que se dedica a vigiar seus pressupostos. Talvez a mais importante das vigilâncias.

A energia dos movimentos sociais: o combustível para a redefinição do papel da administração pública



Opinião

Por Luiz Filipe Goldfeder Reinecke, Mariah Terezinha Nascimento Pereira, Tarsilla Noemi Bertoli Alexandrino e Thiago Magalhães*

A administração pública passa por um momento na qual é reivindicada por transformações econômicas, sociais e políticas. Movimentos sociais, protestos e manifestações pelos diversos meios e formas nas comunidades mundo a fora, como a Primavera Árabe, os movimentos occupy, nos Estados Unidos e na Europa e as manifestações de julho de 2013, de 2015 e 2016 no Brasil, as quais no contexto nacional contribuíram para o impeachment da presidente Dilma Rousseff, são reflexo dessas reivindicações.

Manoel Castells, sociólogo espanhol, afirma que tais movimentos retratam esse sentimento de indignação e esperança, relacionados também ao anseio por maior participação e exercício da cidadania. São mudanças, relacionadas aos indivíduos e seus interesses predominantes, que refletem na sociedade contemporânea e no setor público como também defende o economista Albert Otto Hirschman em seu famoso livro “As paixões e os interesses: argumentos políticos a favor do capitalismo.”


A Administração Pública, de provedora absoluta de serviços públicos oferecidos pelo aparato burocrático do Estado ao compartilhamento de responsabilidades com o mercado para melhorar o equilíbrio fiscal, instiga transformações e também é instigada a se transformar. No contexto atual, as mudanças desejadas envolvem as demandas comunitárias que vão além de problemas e soluções comuns relacionadas à burocracia e ao mercado. Nesse aspecto, essas demandas correspondem a uma forma de pobreza, como aquela descrita pelo sociólogo Pedro Demo, relacionada à política, podendo ser entendidas como a penúria de modelos de administração pública que correspondam a modos de gestão mais participativos, como o da gestão social, atendendo ao que o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos delineia como a multidimensionalidade humana. Leia mais aqui. 

Na Grécia Antiga, a cidade era denominada “pólis” e havia uma concepção ideal de que os cidadãos eram responsáveis pelo governo. Suas ações consistiam na tomada de decisão em espaços públicos, também chamados “ágoras” – que efetivavam a participação política dos sujeitos na vida da cidade. Na concepção de Aristóteles, famoso filósofo grego em sua obra “A Política”, a cidade deveria dar condições mínimas para o desenvolvimento da cidadania por seus cidadãos.

O termo “cidadão”, é oriundo do sujeito que habita a cidade e que, consequentemente, faz uso de bens e serviços assegurados pelo Estado. Moacir Gadotti, professor da Universidade de São Paulo que estuda relações entre educação, poder, sociedade, entre outros temas, define cidadão como sendo o indivíduo que usufrui dos direitos da cidade. Por outro lado, Robert Denhardt, estudioso das Teorias de Administração Pública, trazendo dos gregos o papel do cidadão, coloca também em discussão o resgate do papel ativo do cidadão, ou como ele descreve: cidadania ativa. Nesta visão, o cidadão também é corresponsável pelas atividades da cidade, onde o serviço público nada mais é do que uma extensão da cidadania.


Diante do contexto apresentado, constata-se que vivemos atualmente a ebulição dos movimentos sociais e da organização da sociedade civil no sentido de questionar o Poder Público.  Assim sendo, surgem questionamentos sobre a posição que o Administrador Público deve ter frente a estas mudanças. E da mesma maneira, que posicionamento, nós, Cidadãos, devemos adotar neste sentido?
Além disso, como é possível aproveitar estas mudanças no cenário nacional para promoção de mudanças na Administração Pública? Quais são as experiências que possibilitam estas mudanças e quais precisam ser superadas?


Em busca de respostas…

As expectativas criadas pela população estão sendo transformadas em ações no mundo concreto e no mundo virtual, muitos deles em forma de manifestos em que os cidadãos encontram novas formas de se organizar, fazendo uso de habilidades e competências individuais em prol do interesse coletivo. Das mobilizações de junho de 2013 onde haviam movimentos mais difusos e diversas bandeiras, o que vemos é talvez um processo de amadurecimento da própria sociedade civil que cria formas mais organizadas de protestos, ações mais coordenadas como também bandeiras mais específicas.

Atualmente, isto vem ficando evidente nos grupos que se constituíram, por exemplo, nas escolas paulistas e cariocas brasileiras, em que o corpo discente está promovendo atividades de ocupação das instituições, buscando dialogar com o Poder Público em parceria com o corpo docente e a comunidade escolarEstão fazendo uso de diversos instrumentos para divulgar suas demandas e necessidades, sobretudo as redes sociais que têm servido como suporte efetivo para comunicação com a sociedade. Da mesma forma, movimentos como o Movimento Brasil Livre (MBL) desenvolve e organiza protestos e pressiona autoridades políticas em prol de bandeiras e agendas mais neoliberais no país, construindo agendas neste sentido.

Ao mesmo tempo em que passamos por um momento de muitas dúvidas de como agora alimentado pelo cenário nebuloso do futuro, a incerteza é algo inerente à esfera pública. O que a sociedade vem passando não é uma tempestade ou uma trovoada, como muitos viam as mobilizações de 2013, mas sim terremotos que fazem chacoalhar as estruturas sociais, como foi salientado pela urbanista e professora da Universidade de São Paulo a professora Raquel Rolnik em seu estudo sobre a participação cidadã e o futuro das cidades.

Fica cada vez mais claro que estamos vivenciando um momento de ruptura do velho paradigma proposto por  Harman e Horman, em que micro revoluções estão expressas pelo valor cobrado no transporte público ou na qualidade da alimentação escolar, e também num processo bottom-up (de baixo para cima) com a construção de novas agendas públicas por cidadãos que antes era considerados meros receptores de serviços públicos e hoje estão buscando se colocar no papel de atores ativos na construção da cidade.

Neste mesmo sentido, temos também um desafio de redefinir o papel da Administração Pública e de como ela aproveitará esta energia toda que está sendo gerada por estas ondas de movimentos que estão ocorrendo por todo o país. Estamos num momento em que a crise política – expressa no processo de impeachment- e a crise econômica que assombra todo o mercado faz emergir a necessidade de uma repactuação também com a sociedade civil organizada e “desorganizada” que clama por mudanças. A população traz propostas – por meio de suas agendas – que podem ser incorporadas na agenda pública, bem como implementadas por meio da coprodução dos serviços públicos, conforme proposto pelo professor José Francisco Salm da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, em seus estudos sobre a coprodução do bem público.

Assim sendo, buscamos respostas, quando, na verdade, temos sob nossos olhos diversas alternativas de iniciativa popular que transformam o sentimento de abandono pela administração pública em movimentos da sociedade civil. Estas medidas para discutir o bem público, formular possibilidades, construir e realizar ações efetivas e “colocar a mão na massa” são formas de cidadania com as quais precisamos dialogar, compreender e participar.


* Texto elaborado no contexto da disciplina Coprodução do Bem Público, do Programa de Pós-Graduação em Administração da Udesc Esag.

Referências

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BURIGO, V; MAGALHÃES, T.G. O controle social no conselho municipal do idoso de Florianópolis: uma análise a partir dos modelos de administração pública, dos modelos de coprodução dos serviços públicos e dos modos de gestão estratégica e social. Revista de Ciências da Administração,v. 17, Edição Especial, p. 149-164, 2015.
CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 2013.
DENHARDT, Robert. Teorias de Administração Pública. São Paulo: Cengage Learning, 2012.
DEMO, P. Pobreza da Pobreza. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
GADOTTI, Moacir. Escola cidadã. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2003.
HARMAN, Willis; HORMANN, John. O Colapso do Velho Paradigma. In: O novo paradigma nos negócios: estratégias emergentes para liderança e mudança organizacional. São Paulo: Cultrix, 1996.
HIRSCHMAN, Albert O. As Paixões e os interesses. Rio de Janeiro: Record, 2002
MAGALHÃES, Thiago Gonçalves. Desenvolvimento da Competência Cidadã: um estudo com os formandos e egressos do curso de Administração da Universidade Federal de Santa Catarina. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Administração – UFSC, Florianópolis,  2015.
RAMOS, Alberto Guerreiro. A nova ciência das organizações: uma reconceitualização da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1989.
ROLNIK, Raquel. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações. In: MARICATO, Ermínia [org.]. Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1. ed. São Paulo: Botempo, 2013.
SALM, José Francisco; MENEGASSO, Maria Ester. Os modelos de administração pública como estratégias complementares para a coprodução do bem público. Revista de Ciências da Administração, Florianópolis, p. 83-104, jan. 2009.

SALM, José Francisco. Coprodução de bens e serviços públicos. In: BULLOUSA, Rosana de Freitas (org.). Dicionário para a formação em Gestão Social. Salvador: CIAGS/UFBA, 2014. p. 42-44.