Coprodução do controle: a necessidade e a possibilidade de os Tribunais de Contas irem além na abertura de suas portas

Por Anna Clara Leite Pestana, Fabiano Domingos Bernardo e Renato Costa*

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública deve ser exercida pelo Poder Legislativo com o auxílio dos Tribunais de Contas, órgãos técnicos especializados, com autonomia orçamentária, administrativa e financeira e independência funcional em relação aos três Poderes da República. Dessa forma, fica a cargo do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, das Câmaras de Vereadores e do Sistema de Tribunais de Contas brasileiro, formado por 32 (trinta e dois) órgãos colegiados no país, o controle externo – de despesas e de receitas – do Estado e demais recursos a ele vinculados, mesmo que delegados a terceiros.

Embora com suas atribuições bem definidas no ordenamento jurídico brasileiro, as Cortes de Contas ainda são estruturas pouco conhecidas da República e têm sido questionadas por diversos setores da sociedade. Dentre os questionamentos, destaca-se a baixíssima abertura desses órgãos à participação dos cidadãos no planejamento e no exercício de suas atividades, fragilidade ainda mais evidente durante a pandemia da Covid-19.

Em vista disso, os Tribunais de Contas devem buscar novas formas de atuação, fundadas na comunicação e na articulação com o cidadão e demais atores que compõem a esfera pública, com vistas a proporcionar o exercício de um controle que, para além do caráter punitivo, privilegie a colaboração para o pleno e célere atendimento das demandas sociais.

Essa atuação conjunta entre o cidadão (usuário do serviço público), agentes privados e o poder público é denominada coprodução. A coprodução de bens e serviços públicos baseia-se em um engajamento mútuo e ativo entre governantes e cidadãos, individualmente ou por meio de organizações associativas ou econômicas, organizadas em parcerias ou redes, e com compartilhamento de responsabilidades e poder (SALM, 2014, p. 42). A coprodução tende a contribuir tanto para reduzir custos, gerar eficiência econômica na produção de bens e serviços públicos e permitir atendimento a diversos tipos de necessidades, dificilmente passíveis de serem contemplados por estratégias mais centralizadas ou orquestradas (perspectiva econômica), como para gerar participação cidadã, emancipação política, aprendizagem social e desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas (perspectiva política) (SCHOMMER et al., 2011).

A coprodução é uma forma de gerar sinergia a partir da atuação do poder público com o engajamento cidadão (OSTROM, 1996). Essa sinergia pode ser um estímulo para impulsionar a atuação do sistema de controle externo brasileiro, num contexto em que sinergia é considerada a ação coletiva de diversos agentes que buscam obter um desempenho melhor do que aquele demonstrado isoladamente.

Com relação à motivação do cidadão, a coprodução tem como fundamento a ideia de que o ser humano se realiza plenamente quando desenvolve suas múltiplas naturezas. Guerreiro Ramos (1989), quando tratava da multidimensionalidade do ser humano, observava que o cidadão sente a necessidade de participar da vida pública, fazer parte da sociedade, fazer valer o seu caráter político, algo favorecido em contextos democráticos. 

Nesse contexto, a abertura dos Tribunais de Contas aos cidadãos, aos agentes públicos e à iniciativa privada é capaz de trazer ganhos a todos os envolvidos. De início, mencione-se que a efetiva colaboração entre esses atores possibilitaria a coprodução de soluções para os desafios enfrentados pelos gestores públicos, resultando no fortalecimento do papel orientador, pedagógico e preventivo das Cortes de Contas, em mais segurança ao administrador público na tomada de decisão e no aprimoramento da prestação dos serviços à sociedade. Além disso, quando do exercício da função fiscalizadora, os Tribunais de Contas teriam o auxílio do cidadão, que, por estar mais próximo da prestação do serviço público, é capaz de identificar de imediato falhas ou irregularidades que demandariam uma atuação coercitiva.

Na busca de uma atuação mais efetiva, envolvendo o cidadão no controle público, alguns Tribunais de Contas têm fomentado iniciativas em que se podem perceber elementos de coprodução. Exemplo disso foi a Auditoria Operacional do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE/SC) – processo n. RLA-15/00519054 – que visou analisar os investimentos em educação do Município de Anita Garibaldi: educação infantil e ensino fundamental, que além dos procedimentos legais e rotineiros da fiscalização em questão, realizou Audiência Pública em Anita Garibaldi com a participação de 164 munícipes (professores, pais de alunos, alunos, servidores, outros integrantes da comunidade e autoridades locais), debatendo a infraestrutura, transporte escolar, merenda escolar, valorização dos profissionais do magistério e gestão democrática da educação municipal.

Elementos que favorecem a coprodução também podem ser observados no Acordo de Cooperação Técnica nº 007/2019, relacionado ao projeto “TCE Educação” do TCE/SC, com o desenvolvimento de painéis eletrônicos de acompanhamento da execução dos planos estadual e municipais de educação a partir de uma base comum de dados para fins de gestão, controle e incentivo ao controle social. Participam do referido acordo, além da Corte de Contas catarinense, o Ministério Público estadual (MPSC), o Ministério Público de Contas (MPC/SC), a Assembleia Legislativa (Alesc), o Governo do Estado por meio da Secretaria da Educação, a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), a Federação Catarinense dos Municípios (Fecam), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação de Santa Catarina (Undime/SC), o Conselho Estadual de Educação (CEE/SC) e a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação em Santa Catarina (Uncme/SC).

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Ainda, cita-se o projeto “TCE/SC na Escola”, um concurso de redação/crônica, em parceria com a Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED/SC), aberto, desde 2010, aos estudantes do ensino médio da rede pública estadual, para aproximar os participantes à missão do TCE/SC.

Elementos de coprodução também podem ser observados na participação do TCE/SC em um projeto envolvendo o Fundo para Infância e Adolescência (FIA), denominado “Campanha Unificada FIA”, no qual diversos atores da sociedade civil e do setor público se uniram com o objetivo de impulsionar a captação de recursos para o fundo e de promover a concentração de esforços na execução da política pública voltada para a garantia dos direitos da criança e do adolescente. A sinergia resultante da participação entre cidadãos e poder público neste projeto proporcionou: aumentos consideráveis no volume de recursos captados de doações de pessoas físicas e jurídicas; alterações normativas para melhor operacionalização do fundo; e maior atenção dos gestores estaduais e municipais nos benefícios que a gestão proativa do FIA pode proporcionar para a sociedade.

Engenheiros do TCE-PR e funcionários da empresa Da ...
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Outro exemplo, dessa vez no Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE/PR), consiste na promoção do envolvimento da sociedade no Programa Anual de Fiscalização (PAF). No planejamento para o exercício de 2019 e 2020, por intermédio de aplicação de questionários com cidadãos e observatórios sociais, o TCE/PR buscou captar as prioridades, demandas e expectativas sociais por fiscalização para embasar o controle externo e trazer resultados mais efetivos aos cidadãos paranaenses. As respostas foram consideradas conjuntamente com as avaliações dos técnicos do TCE/PR, permitindo elaborar um ranking de prioridades com base em vozes internas e externas ao órgão.

Por fim, cita-se o projeto “Rodas de Cidadania”, promovido pela Ouvidoria do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas (TCE/AM), desde 2019, por meio do qual são realizadas audiências públicas em municípios do Estado com vistas a informar os cidadãos sobre os canais de comunicação da ouvidoria e escutar as demandas da população, as quais, após análise da área técnica da Corte de Contas, são encaminhadas ao poder público para providências. Ao incentivar o papel proativo da ouvidoria, o programa teve o mérito de aproximar o Tribunal de Contas de uma parcela da população que, em geral, desconhece a atuação do órgão e, por falta de acesso à internet, não teria possibilidade de efetuar comunicações à ouvidoria.

Portanto, não é raro se deparar com esses ilustres desconhecidos denominados Tribunais de Contas abrindo suas portas à sociedade, por meio de capacitações, intercâmbios culturais, mídias virtuais e eventos dos mais diversos. Entretanto, verifica-se ainda incipiente a participação do cidadão no dia a dia das atividades dos Tribunais de Contas com discretos movimentos em prol da cidadania ativa.

Não há dúvidas, como guardiões do patrimônio público e defensores do interesse comum, as Cortes de Contas precisam avançar tornando-se órgãos de controle convidativos ao engajamento cidadão no planejamento e na execução de suas atividades. Além de suas portas abertas, há necessidade de tornar os usuários dos serviços públicos parte do controle e propiciar a participação na discussão dos rumos e de eventuais correções necessárias das políticas públicas.

*Texto elaborado por Anna Clara Leite Pestana, Fabiano Domingos Bernardo e Renato Costa, auditores fiscais de controle externo do TCE/SC e alunos especiais na disciplina Coprodução do Bem Público, ministrada pela professora Paula Chies Schommer e pela doutoranda Camila Pagani, no primeiro semestre de 2020, no Programa de Pós-Graduação em Administração do Centro de Ciências da Administração (Esag) da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

Referências

AMAZONAS. Tribunal de Contas do Estado do Amazonas. Rodas de Cidadania. Disponível em <https://ouvidoria.tce.am.gov.br/?page_id=1714>. Acesso em: 06 ago. 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 06 ago. 2020.

RAMOS, A. G. A Nova Ciência das Organizações:uma reconceitualização da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1989.

ROCHA, Diones Gomes da; ZUCCOLOTTO, Robson. TEIXEIRA, Marco Antonio Carvalho. Insulados e não democráticos: a (im)possibilidade do exercício da social accountability nos Tribunais de Contas brasileiros. Revista de Administração Pública, v. 54, n. 2, p. 201–219, 2020. Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122020000200201>. Acesso em 30 jul. 2020.

SALM, José Francisco. Coprodução de Bens e Serviços Públicos. In: BOULLOSA, Rosana de Freitas (org). Dicionário para a formação em gestão social. Salvador: CIAGS/UFBA, 2014. P. 42-44. Disponível em: <http://issuu.com/carlosvilmar/docs/e-book_dicionario_de_verbetes/46>. Acesso em: 06 ago. 2020.

PARANÁ. Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Fiscalização do TCE-PR em 2019 dará prioridade a 6 áreas da gestão pública. Disponível em: <https://www1.tce.pr.gov.br/noticias/fiscalizacao-do-tce-pr-em-2019-dara-prioridade-a-6-areas-da-gestao-publica/6525/N>.Acesso em: 06 ago. 2020.

SANTA CATARINA. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Comunidade de Anita Garibaldi participa de audiência pública do TCE/SC sobre a qualidade da educação no município. Disponível em: < http://www.tce.sc.gov.br/acom-icon-intranet-ouvidoria/noticia/24193/comunidade-de-anita-garibaldi-participa-de-audi%C3%AAncia>. Acesso em: 06 ago. 2020.

______. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Concurso estadual de redação: projeto “TCE/SC na Escola”. Disponível em: < http://servicos.tce.sc.gov.br/concurso/index.php>. Acesso em: 06 ago. 2020.

 ______. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Entidades assinam acordo de uso de base de dados comum para avaliar planos estadual e municipais de educação. Disponível em: <http://www.tce.sc.gov.br/intranet-acom-icon/noticia/49956/entidades-assinam-acordo-de-uso-de-base-de-dados-comum-para-avaliar>. Acesso em: 06 ago. 2020.

______. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Nova cartilha do TCE/SC orienta sobre a utilização dos recursos do Fundo da Infância e Adolescência. Disponível em: <http://www.tce.sc.gov.br/intranet-acom-ouvidoria/noticia/47858/nova-cartilha-do-tcesc-orienta-sobre-utiliza%C3%A7%C3%A3o-dos-recursos>. Acesso em: 06 ago. 2020.

OSTROM, Elinor. Crossing the great divide: coproduction, synergy and development. World Development, Vol. 24, No. 6, pp. 1073-1087.1996.

SCHOMMER, Paula C; ANDION, Carolina M.; PINHEIRO, Daniel M.; SPANIOL, Enio L.; SERAFIM, Mauricio. Coprodução e inovação social na esfera pública em debate no campo da gestão social. In: SCHOMMER, Paula Chies; BOULLOSA, Rosana de Freitas (orgs.). Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública. Florianópolis: UDESC Editora, 2011 (pgs. 31-70).

Colaboração como caminho para o enfrentamento da pandemia

*Por Artur Prandin, Antonio Felipe, Fernanda Carli e Flávia Antunes

A colaboração é uma atitude comum ao ser humano e, em especial, ao povo brasileiro que, em maior ou menor grau, lança mão dessa maneira de agir e de se relacionar na sua vida em sociedade. O momento atual, em razão da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus – COVID 19, reaviva a importância da cooperação como um caminho de sobrevivência. Assim, diferentes iniciativas desenvolvidas no Brasil têm evidenciado as parcerias como um mecanismo para enfrentamento dos problemas públicos, demonstrando a importância de modelos de gestão colaborativos para as questões da coletividade.

Sistema Único de Saúde – Wikipédia, a enciclopédia livre
Logo – Sistema Único de Saúde

Os hospitais de campanha, construídos para o enfrentamento da pandemia, são um exemplo disso. No Brasil, os serviços de saúde são prestados por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), de caráter público, e da rede privada, que abrange os planos de saúde e os demais atendimentos particulares. No contexto da pandemia, constatou-se que a estrutura existente não seria capaz de dar vazão à demanda por atendimentos de relativa complexidade, no que envolve atendimento médico e a disponibilidade de UTI.

De acordo com o levantamento da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), com dados apurados até 24 de abril de 2020, a rede privada possuia 4,9 unidades para cada 10 mil habitantes, o SUS possui apenas 1,4 unidades de UTI para o mesmo montante.

Sabedores da crise enfrentada e dos seus impactos, alguns atores da iniciativa privada resolveram financiar a construção de hospitais de campanha e oferecer estruturas prontas para atendimento assistencial, além de doar ou emprestar equipamentos para leitos de terapia intensiva e de contribuir para aumentar a capacidade de testes para Covid-19.

Tais ações buscam desafogar o sistema de saúde como um todo e ampliar a capacidade de cuidado dos pacientes infectados pelo novo vírus no país, o que ilustra um caso de governança colaborativa que envolve a parceria público-privado, no sentido das “colaborarquias”, na expressão cunhada pelo pesquisador Robert Agranof (2007).

Hospital de Campanha Lagoa-Barra, no Rio, já atendeu mais de 400 pacientes  de Covid-19 em um mês - Revista Cobertura
Hospital de Campanha Lagoa-Barra

No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a empresa privada Rede D’Or financiou o Hospital de Campanha Lagoa-Barra, arcando com R$ 25 milhões, junto com demais parceiros privados, como Bradesco Seguros, Lojas Americanas, Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) e Banco Safra que, contribuíram com o montante total de R$ 20 milhões, dividido em partes iguais. Destaca-se que o hospital de campanha foi feito para atender os pacientes do SUS, vítimas da Covid-19, e foi montado em um terreno do Governo do Estado, o que revela a relação público-privada que se estabeleceu para combater a pandemia.

https://www.idis.org.br/brasil-giving-report-2020/

Outra ilustração de colaboração é o aumento do volume de doações privadas para fins públicos. Conforme o Brasil Giving de 2020, um levantamento feito pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, observou-se que 78% dos entrevistados, de maneira privada, realizaram alguma atividade beneficente no ano passado (2019), seja doação em dinheiro ou por meio de voluntariado. Espera-se que este percentual aumente, pois a situação pandêmica estimulou, ao que tudo indica, esta prática também no âmbito das pessoas jurídicas (PJ). Segundo levantamento da Associação Brasileira de Captadores de Recursos, ABCR, até meados de julho foram doados aproximadamente R$ 6 bilhões para ações de combate à pandemia, quase a totalidade advindos de PJ, organizados em milhares de campanhas diversas.

Esta situação ilustra o termo coprovisão, utilizado por James Ferris (1984) para designar uma contribuição de recursos por ente privado para expandir os serviços públicos. Desenho este de participação do setor privado na área pública que, para autores como Robert Whelan e Robert Dupont (1986), implica risco de captura da instituição pública por grupos de interesse, o que requer cuidado.

Ambos os casos nos permitem reflexões sobre a solidariedade e a generosidade humana, que dialogam com as diferentes motivações para a coprodução de bens e serviços públicos, abordadas por diversos pesquisadores do tema, entre eles John Alford (2002).

Sob o viés das relações organizacionais e suas implicações nos serviços públicos, a situação suscita algumas questões: o incremento de ajuda ao próximo feito durante a pandemia, conforme valores informados acima, se tornará algo permanente para os vindouros como causa social?

A continuidade e articulação com outras ações é fundamental para que a doação seja, uma ferramenta de desenvolvimento social. Neste sentido, a visão de Marcia Kalvon Woods, presidente do conselho da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) e membro do comitê gestor do Movimento pela Cultura de Doação, de que “o Brasil só vai se desenvolver se olhar para o outro. É fundamental manter a população sensibilizada em relação às demandas que vêm ocorrendo, percebendo a diferença que pode fazer” são didáticas em relação ao assunto.

De outro lado, nota-se uma ausência de demonstração dos critérios de seleção das campanhas de doação, do material a ser entregue e do público-alvo e uma ausência de feedback dos executores da campanha para quem doou seus recursos. É raro nas páginas das campanhas de doação, a apresentação da entrega dos recursos às pessoas/instituições determinadas, tampouco uma breve análise sobre como a doação feita irá impactar a vida daquelas pessoas e do local.

Portanto, ainda que os processos participativos e democráticos continuem sendo uma grande aposta para enfrentamento dessa crise e que eles sejam apresentados como uma solução para os problemas públicos de natureza complexa, os casos citados ratificam a necessidade de se incrementar as questões de governança e coprodução do bem público – aqui entendido coprodução como a participação do usuário no processo de produção do bem/serviço público – com o senso que diz respeito à transparência nos critérios de escolha e ao resultado alcançado com as campanhas de doação.

A condição provocada pela pandemia torna oportuna a reflexão sobre as mudanças em curso nos relacionamentos cooperativos entre os diversos atores, desde usuários, profissionais e governo. O objetivo dessas parcerias é desenvolver mecanismos que ajudem a organizar a gestão pública em prol do interesse da coletividade.

Referências:

FERRIS, James M. Coprovision: Citizen Time and Money Donations in Public Service Provision. Public Administration Review, 44, 324-333. 1984.

WHELAN, Robert; DUPONT, Robert. Some Political Costs of Coprovision: The Case of the New Orleans Zoo. Public Productivity Review, 10(2), 69-75. 1986.

ALFORD, J. Why do public-sector clients coproduce? Toward a contingency theory. Administration & Society, v. 34, n. 1, p. 32-56, 2002.

* Texto elaborado pelos acadêmicos no âmbito da disciplina de Coprodução do Bem Público, da Pós-Graduação em Administração da UDESC/ESAG, ministrada pela professora Paula Chies Schommer e pela doutoranda Camila Pagani, no primeiro semestre de 2020.

Marketing social é sempre para o bem?

Por Érica Stuart de Abreu, Helena Regina Martins da Silveira e Carolina Barros de Lima*

Marketing pode ser entendido como um conjunto de ações voltadas para promover uma marca, produto ou comportamento, tornando-os conhecidos pelo público que se almeja alcançar, aumentando, assim, seu poder de difusão ou venda (Castro, 2018). Já o marketing social é uma vertente do marketing voltada para o impacto social (Vaz, 2003).

O marketing social tem como objetivo contribuir para atenuar ou eliminar problemas, carências da sociedade relacionadas com questões de higiene, saúde pública, trabalho, educação, habitação, transporte e nutrição. Tem potencial para auxiliar em causas sociais e levar os cidadãos a mudanças de comportamento, substituindo velhos hábitos por novos comportamentos, melhorando a qualidade de vida das pessoas e do coletivo.

Para isso, utiliza-se de técnicas e ferramentas do próprio marketing, buscando obter mudanças de comportamento em certo público, visando beneficiar a sociedade e o interesse público. Os programas de marketing social podem atuar em três níveis: Conscientização, Mobilização e Sustentação, buscando desta forma atingir pessoas cujo comportamento precisa ser alterado.

Uma dificuldade enfrentada pelo marketing social é a resistência à mudança, uma vez que ao tentar mudar o comportamento de alguém, além de possíveis inseguranças, também haverá resistência à mudança por parte do sujeito. Quando se promove algo que não contrapõe as ideias ou ações de um indivíduo, socialmente ou ideologicamente, a aceitação tende a ser mais acessível.

Um exemplo do uso do marketing social é o incentivo à doação de sangue pelo Hemosc. A missão dessa instituição é disponibilizar à população, através da Hemorrede Pública, acesso ao atendimento Hemoterápico e Hematológico de Qualidade. Para atingir seu objetivo, utiliza de campanhas motivacionais diretas, para conscientizar sobre a necessidade das doações de sangue, de modo a mobilizar os cidadãos a uma ação.

Essas ações do Hemosc, usando instrumentos de marketing social, também podem ser compreendidas como práticas de nudges, o nudge thinking, ou ciência comportamental (Eggers et. al, 2020), que vem sendo utilizado por organizações e governos em diversos países. Traduzido do inglês como um “empurrãozinho” no pensamento, é o uso da arquitetura de escolha e de outras técnicas para tentar influenciar o pensamento e a ação das pessoas.

Na atualidade, porém, em meio a tantas informações maquiadas ou fake news, podemos notar que ferramentas do marketing social ou nudges, embora idealmente voltadas para o interesse público,podem ser usadas para incentivar comportamentos negativos ou questionáveis.

Com a tecnologia, as notícias falsas ampliaram seu alcance e passaram a fazer parte do dia a dia das pessoas. Dessa forma, o que poderíamos chamar de “marketing social negativo” pode alcançar grande repercussão e confundir as pessoas sobre o que é o melhor a ser feito para si e para o coletivo. Podemos exemplificar com a situação atual do mundo, a pandemia do novo Coronavírus.

No Brasil, muitas notícias falsas ou contraditórias sobre a Covid-19 são repassadas, junto com informações incompletas, ou meias verdades. O resultado é a confusão de muitos cidadãos, que não sabem em que acreditar. Em vez de utilizar o marketing social para conscientizar, educar e passar informações coerentes sobre o vírus e a doença, seu uso gera confusão, espalhando desconfiança e falta de credibilidade e tornando as ações de prevenção e cuidado menos eficazes e eficientes.

O exemplo da pandemia mostra que o marketing social e o uso de nudges pode se fortalecer na medida que estejam associados à transparência e à qualidade das informações e à accountability, que remete à prestação de contas e à responsabilização por atos e omissões. Uma vez que haja transparência e accountability nos dados disponibilizados pelos governos durante a pandemia do Covid-19, podemos saber, por exemplo, se ações de marketing social obtiveram êxito ou falharam, tanto nos meios quanto em relação aos fins. A diminuição ou o aumento do número de novos casos e óbitos podem ser indicadores de que as ações foram eficazes ou não.

*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Érica Stuart de Abreu, Helena Regina Martins da Silveira e Carolina Lima de Barros, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

Referências

CASTRO, Ivan Nunes de. Quais são os objetivos do marketing? Descubra cada um e as principais estratégias para alcançá-los. Disponível em: < https://bit.ly/3mBtwvD >. Acesso em: 30 de ago. 2020.

EGGERS, William et al. Government Trends 2020: What are the most transformational trends in government today? Publicado por: Deloitte Insights – United States, 2020. Disponível em: < https://bit.ly/33JMV4R >. Acesso em: 28 de ago. 2020.

G1. Coronavírus: Constituição diz que é dever do Estado evitar doenças — esse dever foi cumprido? Disponível em: https://glo.bo/35UvqRW. Acesso em: 28 ago. 2020.

VAZ, Gil Nuno. Marketing Social e Comunitário. Marketing Institucional. São Paulo: Ed. Thomson Learning Edições, 2003. p. 280-298.

Cotas de gênero nas eleições, funcionam?

Por Camila Rizzatto e Géssina Zaniboni*

O Brasil é um país no qual a política sempre foi associada a um ambiente masculino. Tanto é que o voto feminino só foi permitido em 1932, quando o governo de Getúlio Vargas criou o Código Eleitoral Provisório, o primeiro código eleitoral que tivemos. Contudo, o voto era facultativo e poderiam votar somente mulheres viúvas e solteiras que tivessem renda própria e mulheres casadas com a permissão do marido. Em 1934, com a promulgação da nova Carta Magna, o direito ao voto passou a ser um dever, independente do gênero. Essas conquistas são frutos do movimento sufragista que buscava o direito ao voto feminino, o direito de se candidatar e de ser eleita.

Com o movimento feminino mais presente e forte, de lá para cá, foram criadas leis de ações afirmativas para incentivar e proporcionar mais espaço para as mulheres ocuparem cargos políticos. As leis para cotas de gênero nas candidaturas para as eleições proporcionais de todo o país tornaram-se as mais significativas até o momento. O quadro 1, a seguir, apresenta a evolução de leis de cotas de gênero no Brasil.

Quadro 1 – Leis referentes a cotas de gênero no Brasil

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A Lei nº 9.100, de 1995, garantiu 20% dessa cota de gênero, sendo que dois anos depois, com a Lei nº 9.504, de 1997, a cota passou para 30%. Esta cota garantia que a lista de cada partido ou coligação incluísse pelo menos 30% por candidaturas de cada sexo nas eleições estaduais e federais. Contudo, a lei de 1997 também possibilitou o aumento de 30% do número total de vagas para candidaturas, permitindo que os partidos lançassem candidatos em até 150% do total de vagas. Outra mudança ocorreu no ano de 2009, com a Lei nº 12.034, a qual institui em seu artigo 10, § 3°, que “do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.

No ano de 2017, houve nova alteração, a Emenda Constitucional nº 97 vedou as coligações nas eleições proporcionais e isso afeta diretamente a cota de gênero. Agora, nas eleições de 2020, cada partido deve preencher o mínimo de 30% da cota, proporcionando assim a presença de mais mulheres na disputa política. Além das cotas de gênero, foi definida a reserva de no mínimo 30% do fundo eleitoral para o financiamento das campanhas das candidatas, a qual foi aprovada na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.617/2018.

Dois pontos nesta “evolução” das leis para cotas de gênero merecem destaque. Diante das novas regras, inicialmente os partidos e coligações aumentaram o número de candidatos masculinos nas disputas eleitorais, isto é, preenchiam a porcentagem necessária de candidatas aumentando o número total de candidatos. Somente com a Lei nº 12.034, em 2009, isso não foi mais possível. Outro ponto a destacar é que as cotas de gênero não são destinadas somente para mulheres. A cota foi sim criada com esse intuito, mas a cota representa a porcentagem de candidaturas por sexos.

Você já parou para analisar que sempre associamos a porcentagem a candidaturas femininas? Isso porque, de fato, as mulheres sempre foram minoria na política.

Para se ter uma ideia disso, vale conferir a Tabela 1, a seguir, elaborada pela Câmara dos Deputados, mostrando o número de mulheres eleitas para cargos políticos no Brasil até o ano de 2010.

Nota-se que o aumento na representação feminina na Câmara dos Deputados e no Senado Federal ainda é muito pequeno. A Câmara dos Deputados organizou, também, um estudo técnico com dados do Tribunal Superior Eleitoral em que analisa o desempenho das candidaturas das mulheres nas eleições de 2018 fazendo um comparativo com as eleições de 2010 e 2014.

O Brasil, mesmo após anos da criação de cotas para gênero das eleições, se encontra na posição 141ª, em um total de 193 países, no ranking da União Interparlamentar (IPU) que mede o percentual de mulheres nos parlamentos nacionais. Nesse ranking, de 2019, alguns países da América Latina aparecem entre os 50 primeiros, como:

– Bolívia (3º): em 2010, implementou a cota de 50% das candidaturas partidárias serem destinadas para mulheres e isso aumentou em 53% o número de mulheres deputadas e 47% de senadoras no país.

– Costa Rica (12º): em 1994, adotou a cota de 40% para candidaturas femininas nos partidos políticos. As mulheres eram apenas 12% das cadeiras na Assembleia Legislativa, hoje são 46%.

– Argentina (19º): em 1991, determinou o mínimo de 30% de candidaturas femininas nos partidos. A representatividade na Câmara dos Deputados aumentou de 5% para 41%. No Senado, a porcentagem de mulheres foi de 3% para 40%.

Dentro do cenário brasileiro, retomamos a pergunta central: as cotas de gênero nas eleições do Brasil funcionam?

A lei é positiva e proporcionou resultados significativos para o aumento na representação feminina nas eleições, mas ainda falta que isso se verifique nos resultados eleitorais. Importante dizer que os países citados, semelhantes ao Brasil, conseguiram alcançar resultados melhores quanto à participação feminina na política. Além das leis, há que se considerar como os partidos políticos tratam a questão, o desenho do sistema eleitoral e aspectos culturais, como o patriarcado e o machismo.

Para saber como essas questões estão presentes no dia a dia das mulheres candidatas, conversamos, em agosto de 2020, com duas então pré-candidatas a vereadora no estado de Santa Catarina: Mônica Duarte, de Florianópolis, e Giovana Mondardo, de Criciúma, que falaram um pouco sobre a realidade de ser candidata em nosso país.  Clique na imagem para assistir o vídeo.

Considerações

Percebe-se que a representação política é marcada por desigualdades de gênero, os homens detêm o monopólio político em um país onde as mulheres representam 52% da população. Podemos dizer que a reduzida participação de mulheres, assim como de diferentes etnias, idades e condições sociais, expressa uma fragilidade da democracia, que não representa a diversidade de perfis e de ideias que estão presentes no conjunto da população.

As mulheres enfrentam muitas limitações que as afastam na ocupação dos espaços de poder, como a violência política de gênero. E não se trata apenas do machismo, como podemos observar no vídeo com as pré-candidatas a vereadoras, também existe a falta de apoio e preparo dos partidos políticos, além da tentativa de burlar a lei de cotas de gênero na utilização de candidatas laranjas. Os partidos políticos, que são peças chaves na accountability do processo eleitoral, muitas vezes criam entraves para a participação das mulheres na política, e assim fragilizam o sistema de accountability democrático como um todo. Para evitar o enfraquecimento desse sistema, é importante a participação da sociedade no processo, cobrando transparência no preenchimento das cotas de gênero, no financiamento das campanhas e, também, demandando dos órgãos de controle a responsabilização de partidos que infringem as leis. Esses são alguns dos passos para a articulação da inclusão feminina e da diversidade nos espaços de poder.

Além disso, precisamos de mais mulheres e homens eleitos compromissados com a equidade de gênero, que lutem para construção de uma sociedade para todos e contribuam para uma política representativa.

“Não é suficiente que haja muitas mulheres, mais mulheres ou mesmo número de mulheres, se a maioria delas ainda obedecer aos patriarcas e repetir a linha sem questionar o porquê. Precisamos de uma reforma intelectual e moral” – fala da cientista política e ex-deputada da Bolívia, Jimena Costa.

*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Camila Rizzatto e Géssina Zaniboni, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountabilily, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

*Publicado também no Blog Gestão, Política & Sociedade, do Estadão, em 02 outubro de 2020.

Para saber mais sobre o tema participação feminina na política:

[Vídeo Jornal do Almoço Florianópolis] Mulheres na política: Por que a representatividade feminina em cargos públicos é baixa?

[Vídeo Jornal do Almoço Florianópolis] Mulheres na política: Como o poder do voto feminino ajuda a transformar a sociedade?

[Blog Az Minas] Mulheres ainda ocupam poucos espaços de liderança no Congresso

[Vídeo do Quebrando o Tabu] Série ELEITAS, co-produção entre Instituto Update, Maria Farinha Filmes, Quebrando o Tabu e Spray Content. A série é composta por 3 episódios: Mudança Cultural, Violência de Gênero e Paridade.

[BBC News Brasil] Candidatas laranjas: pesquisa inédita mostra quais partidos usaram mais mulheres para burlar cotas em 2018

[Blog Gênero e Número] Dos 35 partidos que disputaram as eleições, 25 apresentaram candidaturas com zero ou um voto em 2016

Referências

BRASIL. Lei n° 9.100, de 29 de setembro de 1995. Estabelece normas para realização das eleições municipais de 3 de outubro de 1996, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9100.htm. Acesso em: 9 ago. de 2020.

BRASIL. Lei n° 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Brasília, DF: Presidência da República, 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em: 9 ago. de 2020.

BRASIL. Lei n° 12.034, de 29 de setembro de 2009. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Altera as Leis n° 9.096 de 19 de setembro de 1995 – Lei dos Partidos Políticos, 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas para as eleições, e 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12034.htm. Acesso em: 9 ago. de 2020.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 97, de 4 de outubro de 2017. Altera a Constituição Federal para vedar as coligações partidárias nas eleições proporcionais, estabelecer normas sobre acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuito no rádio e na televisão e dispor sobre regras de transição. Brasília, DF, 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc97.htm#:~:text=Emenda%20Constitucional%20n%C2%BA%2097&text=Altera%20a%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20Federal%20para,dispor%20sobre%20regras%20de%20transi%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 9 ago. de 2020.

BRASIL. Procuradoria Especial da Mulher. + Mulheres na Política. 2. ed. Brasília, 2015. 72 p.

MARTINS, Eneida Valarini. A política de cotas e a representação feminina na Câmara dos Deputados. 2007. 55 f. Monografia (Especialização) – Curso de Curso de Especialização em Instituições e Processos Políticos do Legislativo, Centro de Formação da Câmara dos Deputados, Brasília, 2007. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/343/politica_cotas_martins.pdf?sequence= 3 & isAllowed=y. Acesso em: 11 ago. 2020.

Lugar de mulher é na política. Instituto Politize. Disponível em: https://www.politize.com.br/lugar-de-mulher-e-na-politica/. Acesso em: 14 ago. de 2020.

LIMONGI, Fernando; OLIVEIRA, Juliana de Souza; SCHMITT, Stefanie Tomé. Sufrágio universal, mas… só para homens. O voto feminino no Brasil. Revista de Sociologia e Política, [S.L.], v. 27, n. 70, p. 1-22, 2019. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1678-987319277003. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782019000200212&tlng=pt. Acesso em: 14 ago. 2020.

Da ressocialização do apenado à reincidência no crime: uma responsabilidade exclusiva do Estado?

Por Liliane Mendes, Kamila Coelho e André Cardoso*

A abordagem da accountability social considera o engajamento mútuo entre o poder público, suas instituições e os cidadãos para o exercício do controle social sobre os processos e resultados da administração pública. A accountability social e a coprodução bens e serviços públicos são nossas lentes neste texto, em que buscamos refletir sobre o problema público da reincidência criminal do egresso do sistema prisional, discutindo o papel de diferentes atores para mitigação do problema e comentando sobre políticas públicas aplicadas pela gestão prisional no estado de Santa Catarina nessa área.

A reincidência em um crime, segundo o Código Penal em seu artigo 63 traz a seguinte definição:

“verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha sido condenado por crime anterior.”

No sentido amplo, consiste no novo ato delituoso cometido por um indivíduo que já tenha cometido um ou mais atos criminosos anteriormente.

As ações de uma instituição prisional a fim de prevenir a reincidência é algo que foi incorporado à função social da pena privativa de liberdade, passando a receber atenção do Poder público. Em lugar do punitivo como um fim em si mesmo, considera-se o caráter pedagógico e humanitário na Lei de execução penal, que norteará a execução da pena. Uma vez tendo sido privado a seu direito de liberdade, deve ser assegurado ao cidadão, pelo Estado, garantias mínimas constitucionais, como rege a Constituição Federal de 1988 acerca da dignidade da pessoa humana.

Apesar de ser referência nacional nas atividades laborais e ressocialização dentro dos presídios, ainda não é possível mensurar, no Estado de Santa Catarina, o quão eficiente  o sistema prisional catarinense tem sido em sua atribuição na prestação deste serviço público que lhe é atribuído.

O TCE/SC, em auditoria realizada em 2014, mostra que Estado não sabe quanto gasta por preso

e quais são os índices de reincidência nas unidades penais, e não segue diversas diretrizes da lei de execução penal, como o que se refere à alocação de presos. A lei, em seus artigos 82, § 1º, 87, 91, 93 e 102, estipula que a ocupação de cada estabelecimento penal deve se destinar a um público carcerário específico. Outro ponto verificado pela auditoria do TCE é a inexistência de registro dos índices de reincidência e o custo médio mensal de cada apenado para os cofres públicos.

Em um estudo feito por uma equipe de pesquisadores da PUC Minas, verificou-se que o tema da reincidência não tem merecido atenção por parte do aparato estatal responsável pelas políticas públicas direcionadas aos autores de ato infracional. No campo acadêmico, da mesma forma, são rarefeitas as produções científicas sobre o tema. Em função dessa lacuna de conhecimento, não existem dados oficiais e conhecimento aprofundado sobre a magnitude da reincidência no Brasil.

Sendo assim, fica impossibilitada a verificação da eficiência e efetividade das políticas de ressocialização. O que é um problema também de accountability sob a ótica da avaliação de resultados e de transparência dos gastos públicos no sistema penitenciário, o que exige informação clara e fidedigna, para avaliação da gestão das unidades prisionais e de seus resultados.

Pode-se questionar: uma instituição prisional, de posse dos devidos instrumentos legais, dotada de estrutura física, aparato estatal, armamento, sistema de monitoramento, cercado de muros e grades, é o que basta para ressocializar um indivíduo no cárcere?

No texto da LEP, como instrumento legal que norteia a execução da pena, versa em seu artigo 4º:

“O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança.”

De que modo pode haver coprodução entre o poder público, enquanto detentor da tutela do apenado, e os demais atores, como organizações comunitárias ou da sociedade civil, universidades, empresas e os próprios apenados e suas famílias e comunidades, para que se possa entender o problema e mitigá-lo?

Quando falamos em controle social acerca de um problema público, tendemos a pensar somente em um problema que nos afeta diretamente ou trás implicações negativas diretas em nosso dia-a-dia. Por isso, cobramos mais ações eficazes, mais transparência e impomos mais controle sobre o poder público. Convidamos o leitor a refletir sobre até que ponto a falta de controle e engajamento social se reflete sobre as ações do Estado, no que diz respeito ao processo de ressocialização?  Em que medida as políticas públicas pouco eficazes, ou a até mesmo negligenciadas por parte do Estado são legitimadas pela sociedade através do seu desinteresse nessa problemática?

Nos deparamos com um imenso e complexo desafio, que abarca fatores multidisciplinares, quando falamos da trajetória de um indivíduo que cumpre pena restritiva de liberdade dentro de um sistema prisional. Um aparato estatal que se espera siga as diretrizes legais para executar a pena, uma sociedade que por vezes se omite, enquanto espera um resultado eficaz do poder público. Vale refletir, ainda, que é questionável se falar em ressocialização sobre a vida de um indivíduo que muitas vezes teve seus direitos básicos negligenciados pelo Estado, como educação de qualidade, serviços de saúde e condições minimamente dignas.

Voltar a cometer um ato criminoso não é um fator que traz implicações negativas somente para o indivíduo egresso do sistema prisional, mas também para a sociedade como um todo, que tem papel importante nesse contexto, quando coopera direta ou indiretamente com o que pode ser um ciclo perverso de reincidência no crime ou um ciclo de ressocialização.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Liliane Mendes, Kamila Coelho e André Cardoso no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

Referências

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>

BRASIL, Lei Execução Penal: Lei 7.210/1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm 

ALVAREZ, M. Cesar. Punição. Sociedade e história: algumas reflexões. Revista Métis. História e Cultura, v.6, 2007. Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/issue/view/64>

FERREIRA, Angelita R. Crime-prisão-liberdade-crime: o círculo perverso da reincidência no crime. Serv. Soc. Soc. [online]. 2011, n.107, pp.509-534. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-66282011000300008&script=sci_abstract&tlng=pt

SANTA CATARINA, Modelo catarinense de ressocialização de presos termina o ano como referência nacional. Acesso em 16/09/2020. Disponível em:

<https://www.sc.gov.br/noticias/temas/justica-e-defesa-da-cidadania/modelo-de-ressocializacao-de-presos-catarinense-termina-o-ano-como-referencia-nacional>

SANTA CATARINA, TRIBUNAL DE CONTAS. Auditoria operacional na gestão do sistema prisional do estado de Santa Catarina; relatório resumido. Florianópolis, TCE/DAE, 2015. Disponível em: <http://www.tce.sc.gov.br/sites/default/files/cartilha_18_penitenciario_MIOLO.pdf>

SANTOS, Roberta F; CAETANO, André J. A reincidência Juvenil no Estado de MG. Disponível em:

http://portal.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20181210100418

Compliance e o setor público: mais burocracia?

Por Sabrina Sayuri Arakaki e Lidiana Sagaz Silva Alves*

O avanço das tecnologias e um mundo de possibilidades na era digital proporciona o acesso à informação a mais cidadãos. Com mais informação, o povo pode exigir dos governos mais explicações e uma conduta ética, responsável e transparente quanto aos gastos públicos e os escândalos de corrupção.

No âmbito institucional-legal, um mecanismo voltado a combater a corrupção, fraudes e desvios de conduta na relação entre organizações privadas e o setor público surgiu com a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, a chamada “lei anticorrupção”. Esta é considerada um marco do combate à corrupção no país pela inovação jurídica de prever responsabilização administrativa e civil para pessoa jurídica por atos ilícitos contra a administração pública.

Já a  Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, sinaliza para mudanças  no setor público relativas  ao trabalho de “compliance”,  ao estabelecer  a obrigação de que cada órgão elabore um código de conduta e integridade (art. 9 § 1).

O termo compliance, apesar de parecer novidade, é um tanto antigo. Surgiu como um sistema de regras e procedimentos para a regulamentação da economia política econômica internacional, em 1940, através do acordo de Bretton Woods. Os Estados Unidos foi o primeiro país a adotar em 1977, um programa de integridade devido ao escândalo de Watergate, através da Foreign Corrupt Practice Act (FCPA), uma legislação de combate à corrupção. Logo em seguida, mas ainda em 1977, o Reino Unido também passa a aplicar em suas instituições financeiras um sistema de integridade.

Com a crescente difusão do tema e o uso do termo compliance em diversos sentidos, surgem algumas questões: Afinal, compliance é sinônimo de burocracia? A compliance ajuda ou engessa a administração pública? Como lidar com o dilema controle versus eficiência?

COMPLIANCE E PROGRAMAS DE INTEGRIDADE

Antes de prosseguirmos, se faz necessário apresentar algumas definições de compliance e sua relação com (programas de) integridade. 

Observa-se que há certa mistura no uso da nomenclatura “programa de compliance”, mais usado no setor privado, e “programa de integridade”, usado pelo poder público no Brasil. Note-se que a palavra “compliance” aparece na legislação brasileira apenas uma vez, na lei nº 13.303/2016, conhecida como lei das estatais. A legislação brasileira vem utilizando a nomenclatura de programas de integridade para aplicação no setor público.

Cabe ressaltar que alguns autores e estudiosos da área entendem o compliance apenas por sua tradução literal, ou seja, como sendo somente o cumprimento de regras e normativas vigente, enquanto que os programas de integridade seriam programas de maior amplitude, que apesar de englobar o compliance não se atém apenas ao seguimento de normas, mas envolveriam o desenvolvimento ético e a atuação com transparência e accountability, tanto da organização como de todos que bela trabalham, buscando desenvolver uma  cultura de integridade.

Compliance

“Ato de cumprir, de estar em conformidade e executar regulamentos internos e externos, impostos às atividades da instituição, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e ao regulatório/legal.” (MANZI, 2008, p. 15)

“Um conjunto de regras, padrões, procedimentos éticos e legais que, uma vez definido e implantado, será a linha mestra que orientará o comportamento da instituição no mercado em que atua, bem como as atitudes de seus funcionários; um instrumento capaz de controlar o risco de imagem e o risco legal, os chamados ‘riscos de compliance’, a que se sujeitam as instituições no curso de suas atividades.” (CANDELORO, RIZZO e PINHO, 2012, p. 30).

Programas de integridade

Conjunto de medidas e ações institucionais voltadas para a prevenção, detecção, punição e remediação de fraudes e atos de corrupção. Em outras palavras, é uma estrutura de incentivos organizacionais – positivos e negativos – que visa orientar e guiar o comportamento dos agentes públicos de forma a alinhá-los ao interesse público.” (CGU, 2017, p. 6, grifo nosso)

O programa de integridade refere-se ao conjunto de mecanismos e procedimentos internos para aplicação efetiva de diretrizes que detectem e mitiguem os desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública. Dezesseis parâmetros são estabelecidos no decreto para avaliação de programas de integridade. Vale mencionar que esses parâmetros se assemelham às 12 diretrizes de boas práticas de controles internos, ética e compliance publicadas pela OECD.” (CASTRO; AMARAL; GUERREIRO, 2019, p. 188, grifo nosso)

Orientações da Controladoria-Geral da União, CGU, para programas de integridade

Em abril de 2018, a CGU publicou a portaria nº 1.089, com orientações para implementação de programas de integridade no setor público. A portaria estabelece uma implementação em 3 fases.

O programa de integridade, segundo a CGU, é estruturalmente parecido com um programa de compliance, deve ser entendido como uma estrutura orgânica, que funcionará adequadamente caso exista harmonia e conexão entre cinco pilares: Comprometimento e apoio da alta direção; Instância responsável pelo Programa de Integridade; Análise de perfil e riscos; Estruturação das regras e instrumentos e; Estratégias de monitoramento contínuo.

A CGU ressalta, ainda, que um programa de integridade pretende fazer com que os colaboradores de diversas áreas trabalhem em consonância, para uma atuação íntegra, mitigando os eventuais riscos de corrupção. Uma política de integridade permite que diversas ferramentas de controle e gestão passem a ser vistos de maneira sistêmica, alcançando assim sua máxima eficiência. O programa de integridade tem caráter preventivo, pois visa mitigar riscos de corrupção em determinada organização e, havendo desvios de integridade, o programa deve buscar identificar, responsabilizar e corrigir a falha de modo rápido.

Desde 2018, vários estados têm implementado programa de integridade em suas instituições.

COMPLIANCE, INTEGRIDADE E BUROCRACIA

Mas afinal, o compliance significa mais burocracia? Ajuda a melhorar processos e serviços ou engessa a administração pública? Como lidar com o dilema controle x eficiência, mantendo o foco na melhoria dos serviços públicos para os cidadãos e não no controle pelo controle?

Para elucidar essas questões, convidamos Rodrigo de Bona da Silva, doutorando em Economia e Governo pela Universidade Menendez Pelayo e Instituto Universitário de Investigação Ortega y Gasset (Espanha). Rodrigo é Mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina. Cursa Especialização em Ouvidoria Pública pela Organização dos Estados Iberoamericanos. Bacharel em Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como Auditor Federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União desde 1996 e como voluntário em iniciativas de controle social.

De acordo com Rodrigo, o compliance está mais ligado ao cumprimento de regras e normas, enquanto a integridade é algo mais amplo, que inclui, mas que não se restringe ao compliance. As políticas de integridade têm como propósito o aumento de confiança, da credibilidade e da legitimidade das organizações e governos, e o compliance é um dos elementos para isso.

A ideia do desenvolvimento desses programas os considera como ferramentas de desenvolvimento das instituições, para que atos ilícitos sejam mitigados. O compliance e a integridade são muito vinculados aos princípios de governança e accountability. Em particular, a accountability e o compliance relacionam-se na ideia de governança, que adota como preceitos básicos a equidade, a transparência e a responsabilização em relação às ações adotadas pela instituição e pelos funcionários, em consonância com os princípios adotados pela administração pública, completa Rodrigo.

Compliance implica em mais burocracia?

Rodrigo explicou que, quando falamos em inserir uma política de integridade e controle, estamos colocando um processo a mais na gestão. Existe um dilema entre eficiência e controle. Então, quando se pretende inserir em um processo um obstáculo a mais, nesse sentido, como princípio, compliance é uma burocracia. “Compliance é a legalidade, é o cumpra-se… é um conjunto de normas e procedimentos obrigatórios que me diz por onde seguir. Logo, em um sentido mais restrito, é uma burocracia”.

Cabe considerar, porém, que toda organização, em particular no âmbito público, tem suas normativas, regulamentos e controles internos. “O que precisamos entender é que programas de compliance (integridade) devem ser utilizados de maneira inteligente, como uma ferramenta que sirva para amparar as decisões do gestor e não de maneira a engessar a administração pública. Essas ferramentas devem trazer cada vez mais legitimidade à tomada de decisão. Se servirem apenas como uma etapa burocrática a mais, não estarão cumprindo seu papel de maneira eficiente”.   

O tema ainda é recente no Brasil. Porém, percebe-se um movimento no sentido de colocar em prática os programas com vistas a melhorar o desenvolvimento do serviço público, a eficiência e garantir ao servidor segurança para tomada de decisão.

*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Sabrina Sayuri Arakaki e Lidiana Sagaz Silva Alves, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

REFERÊNCIAS:

CANDELORO, Ana Paula; RIZZO, Maria Balbina Martins De; PINHO, Vinícius.

Compliance 360°. Trevisan; 2012.

CASTRO, P. R.; AMARAL, J. V.; GUERREIRO, Reinaldo. Aderência ao programa de integridade da lei anticorrupção brasileira e implantação de controles internos. R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, v. 30, n. 80, mai./ago. 2019, p. 186-201.

GIANELLO, Matheus Lothaller; Aplicação do compliance na administração pública;. São Paulo, 2018.

CGU- CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Manual para implementação de programas de integridade: orientações para o setor público. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/integridade/arquivos/manual_profip.pdf. Acesso em: 11 ago. 2020.

MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil – consolidação e perspectivas. Ed. SaintPaul, 2008.

PARA SABER MAIS SOBRE COMPLIANCE E INTEGRIDADE:

Accountability: pilar da integridade no serviço público

Compliance e administração pública do medo: um estudo de coo os programas de integridade podem dar maior legitimidade aos agentes públicos  

Compliance, ética e transparência

Compliance na administração pública

Compliance na gestão pública

Compliance no setor público: necessário, mas suficiente?

Governança pública

SOBRE ELEMENTOS DE PROGRAMAS DE COMPLIANCE:

Segundo Matheus Gianello (2018), mesmo com a peculiaridade e especificidade de organizações distintas, os programas de compliance compreendem sete elementos fundamentais e indispensáveis.

O primeiro deles é a padronização de condutas de acordo com os procedimentos internos da organização.

O segundo é a realização de treinamentos visando influenciar a cultura organizacional. Cabe difundir o reconhecimento que as políticas são aplicáveis a todos dentro da instituição independente do cargo ocupado e demonstrar que desde o CEO da empresa, ou o Prefeito de uma cidade, todos estão comprometidos com a novas políticas. Quanto maior autonomia maior as chances de sucesso do programa.

Como terceiro elemento, surge o desenvolvimento da educação dos servidores, para que saibam como agir diante de situações de conflito. Logo, além de treinamentos, pode haver palestras, considerando o perfil dos funcionários e da organização. Os treinamentos são importantes para o desenvolvimento da cultura da integridade, relacionando-se com o conhecimento sobre as normativas da organização, enquanto o desenvolvimento tem como característica a internalização dessa cultura para saber como e quando deve ser utilizada.

No que tange ao controle, o compliance (ou integridade) envolve tanto o monitoramentodiário para controle operacional, como a auditoria, que é uma ação mais pontual com escopo e critérios pré-definidos.

Um ponto que costuma ser desafiador, embora importante, é o incentivo e a criação de um canal de denúncias, assegurando-se que não haverá retaliação e que as práticas denunciadas serão investigadas de forma anônima.

As medidas disciplinares são o sexto elemento fundamental. É aconselhável que elas já estejam definidas em caso do descumprimento das normas. O grau de seriedade da infração deve ser levado em consideração no momento da aplicação da punição.

Por fim, o sétimo elemento é a prevenção e reação, a garantia de que estes elementos sejam respeitados e que haja a demonstração de que o esforço mútuo está gerando resultados para a prevenção de atos ilícitos.

Gestão de processos no setor público: uma ferramenta de accountability

Por Ayla Mafra, Icleusa Viana, Rosana Bernardes e Tatiane Cunha*

A sociedade vem se tornando mais exigente quanto a eficiência, qualidade e transparência dos serviços públicos. Para atender a essa demanda, a administração pública tem sido impelida a mudanças de paradigmas. A gestão de processos, utilizada em segmentos do setor privado e do setor público há muitos anos, está em fase de implementação em muitos órgãos do estado de Santa Catarina, visando atender às expectativas de transparência, eficiência e qualidade nos serviços prestados.

Para analisar a relação entre accountability e gestão de processos, entrevistamos dois servidores do estado de Santa Catarina. A assessora de controle interno Juliana Wust Panceri, que atua no Controle Interno da Secretaria Estadual da Infraestrutura e Mobilidade (SIE) e Marcelo Eduardo Schubert, administrador, coordenador do Escritório de Gestão de Processos do governo de SC (EPROC SC).

Ambos exercem atividades diretamente relacionadas e integradas ao conceito de accountability, uma vez que a análise, o diagnóstico e a melhoria contínua dos processos, alinhada à transparência da gestão, possibilita aos cidadãos o controle das ações realizadas pela administração pública.

No vídeo a seguir, Juliana relata sua experiência com a gestão de processos em sua atuação no controle interno, ressaltando vários pontos e exemplos interessantes:

Vídeo – apresentação de Juliana Wust Panceri sobre a relação entre accountability e gestão de processos

Já Marcelo contribuiu respondendo às perguntas a seguir, a partir do ponto de vista de um especialista em gestão de processo na administração pública e que conhece os desafios da accountability:

Exemplos de como as melhorias em processos geram efeitos de transparência e accountability?

Marcelo: “O processo de Emitir Certidão de Jurisdição Municipal é um caso onde a melhoria do processo trouxe ganhos expressivos tanto para os executores como para o cidadão.

“Antes dessa melhoria, o cidadão que necessitasse desse serviço deveria comparecer presencialmente à Secretaria do Planejamento munido de toda a documentação necessária e entregá-la com um ofício ao secretário da pasta, solicitando a emissão da certidão. Após a entrega dos documentos, o cidadão não tinha informações do andamento do processo, a não ser que ligasse para o órgão e conseguisse falar com o setor responsável, o qual não tinha um controle efetivo de onde estavam os processos e em que fase se encontrava. Caso faltasse algum documento, o servidor deveria entrar em contato com o cidadão para solicitar que fosse encaminhado por e-mail. Se tudo corresse bem, num prazo médio de seis meses, o cidadão seria comunicado de que a certidão estava disponível para retirada, devendo comparecer ao órgão ou solicitar o encaminhamento via correio.

Nem o cidadão, nem os servidores e gestores da pasta tinham uma visão completa do status e andamento da execução das atividades, impossibilitando qualquer nível de controle na execução dos trabalhos. Com o trabalho conjunto entre servidores doEPROC e os responsáveis pelo processo, fizemos a análise, diagnóstico e proposição de melhoria, conseguindo aperfeiçoar a interação do cidadão com o órgão e as atividades executadas pelos servidores. Isso levou a um ganho de agilidade de 98% do tempo que era executado anteriormente. De seis meses, em média, esse processo passou a ser realizado em no máximo dez dias, chegando, em alguns casos, a ser efetivado no mesmo dia.

A melhoria do processo trouxe ganhos substanciais na forma de entrada, execução das atividades e saída do processo, permitindo o acompanhamento do cidadão, o andamento e a conferência dos gestores do que está sendo executado conforme as normas e regras vigentes. A implantação incluiu a disponibilização de formulário digital no portal de serviços do governo e a integração deste com o SGPe – Sistema de Gestão de Processos Eletrônicos”.

Exemplos de como os problemas na gestão de processos implicam em déficits de accountability?

Marcelo: “A transparência é um dos pontos essenciais para a segurança das ações realizadas pelos gestores públicos, possibilitando à sociedade o controle social das ações do Estado. Nesse sentido, o EPROC vem desenvolvendo, por meio do gerenciamento de processos de negócio, com análise, diagnóstico e proposição de melhoria de processos, disponibilizar aos servidores e gestores públicos um repositório de gestão do conhecimento pautado na documentação das atividades realizadas e disponibilizando toda a informação à sociedade. Esse repositório está sendo construído  e disponibilizado no portal de dados abertos do governo.

É verdade que a administração pública deve sempre executar suas ações pautadas na lei e normas, porém muitas vezes a lei por si só não é clara o suficiente para entender o que realmente se pretende entregar de valor à sociedade. Nesse sentido, o gerenciamento de processos de negócio pode auxiliar na identificação das ações e atividades para o cumprimento dessas normas e na entrega de produtos e serviços mais adequados aos interesses da sociedade.”

Que cuidados ou recomendações se pode fazer no desenho de processos para que estes favoreçam a accountability?

Marcelo: “Dentre as ações de análise, diagnóstico e proposição de melhorias que realizamos juntamente com os atores envolvidos no processo, destacamos a importância da transparência das ações, para que todos os envolvidos tenham a clareza dessas, da maneira como devem ocorrer e de que forma devem ser entregues.

Acredito que uma vez que o processo foi modelado pensando na entrega de valor que  irá gerar, considerando o processo ponta a ponta, avaliando os riscos inerentes da sua execução e dispondo da clareza da execução dessas atividades, por meio do acompanhamento em sistemas informatizados, proporcionamos mais  celeridade na execução dos trabalhos possibilitando o constante monitoramento e controle tanto da sociedade, dos próprios gestores, bem como dos órgãos de controle.”

Como a accountability pode ajudar a aprimorar os processos?

Marcelo: “A disseminação e implantação de uma cultura de gestão de processos, alinhada à implantação de um Programa de Integridade e Compliance, onde todos os servidores, agentes e funcionários da entidade estejam engajados nesse propósito, demonstrando nas atitudes diárias que as suas ações são realizadas de acordo com as leis, normas e regulamentos.

Dessa forma, o gerenciamento de processos de negócio possibilita que o conhecimento construído ao longo do tempo, alinhado às melhorias implantadas sejam documentadas e registradas num repositório de gestão de conhecimento em processos para que esse conhecimento não fique mais exclusivamente na cabeça dos servidores e sim disponível para consulta de qualquer pessoa. Assim, poderemos eliminar aquela máxima de que isso sempre foi assim, e que não precisamos inventar a roda toda vez que um servidor se aposenta ou assume uma nova atividade.”

Como envolver os vários interessados em cada processo – gestores públicos, parceiros, fornecedores e usuários – tanto no desenho como na avaliação e aprimoramento constante dos processos?

Marcelo: “Uma vez implantado uma estrutura formal de gerenciamento de processos de negócio, seja no âmbito do governo como um todo (como por exemplo o Eproc) ou em unidades dentro dos órgãos (NuProc) a disseminação da cultura de gestão de processos começa a ser desenvolvida naquela unidade e acredito esse seja um pontapé inicial para envolver todos os interessados.

Porém, isso não basta. Deve-se envolver conjuntamente a alta administração, principalmente na figura do gestor máximo, para que haja um engajamento de todos.

Dentre as demandas diárias de cada órgão, deve-se verificar quais ações são importantes e priorizadas pela alta administração, pois esses são os objetivos a serem alcançados. Desta forma, quando o gestor define o gerenciamento dos processos como uma prioridade na sua gestão, seja para ganho de performance, seja para resguardar seu “cpf” por meio do compliance, percebe-se uma maior facilidade no envolvimento de todos no diagnóstico e melhoria dos processos daquela organização.”

Como pensar em processos que sejam bem desenhados, com critérios razoáveis, que favoreçam a flexibilidade e discricionariedade, com transparência e responsabilização dos envolvidos?

Marcelo: “Para responder a essa pergunta, devemos pensar quais conhecimentos necessários devemos ter para alcançar esses objetivos. A construção e disseminação de um modelo de governança por processos é um ponto fundamental para que possamos desenvolver a modelagem de processos.

Um modelo de governança de processos traz todo o conhecimento e metodologia necessários para a implantação de uma cultura de gestão por processos nas organizações. A partir da construção desse modelo e a implantação de uma estrutura formal de gestão de processos, com pessoas detentoras desse conhecimento e metodologia, se conseguirá dispor de processos bem desenhados que atendam aos objetivos de entregar valor à sociedade.

O conhecimento está na cabeça das pessoas que realizam as atividades no dia a dia, para tanto, as áreas de gestão de processos devem capturar e desenvolver esse conhecimento com todos os envolvidos, para que se busque a melhor maneira de executá-lo, compartilhando e disponibilizando para todos de forma pública e transparente.

Marcelo Eduardo Schubert

Acredito que a interação entre as diversas áreas e órgãos na execução dos processos é de suma importância para favorecer a accountability. Uma vez identificado e envolvendo todos os atores do processo, se possibilita um amplo debate sobre as atividades desenvolvidas, permitindo que os atores se identificam como parte, entendendo as angústias e as suas necessidades, contribuindo para que todos busquem o objetivo de entrega de valor público para a sociedade.”

Podemos pois observar que a gestão de processos possibilita que os envolvidos estejam alinhados aos mesmos objetivos, sabendo da sua importância na contribuição do resultado e na entrega de valor, favorecendo o desempenho de suas atribuições e aplicação dos recursos públicos.

*Entrevistas realizadas pelas acadêmicas de administração pública Ayla Mafra, Icleusa Viana, Rosana Bernardes e Tatiane da Cunha para a disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.