Coprodução de resíduos orgânicos em Florianópolis: por mais minhoca na compostagem e mais informação na cabeça

Por Bruna Teixeira, Marilan Cristina Albuquerque e Vanessa Alves*

O Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS) de Florianópolis, instituído pelo Decreto Municipal nº 17.910 em 22 de agosto de 2017, determina que os resíduos sólidos recicláveis, tanto a fração orgânica como a seca, não mais sejam enviados ao aterro sanitário. O modelo de gestão de resíduos sólidos deve privilegiar a não geração, a minimização da geração e o manejo diferenciado dos resíduos sólidos, com a triagem, e compostagem e a recuperação dos resíduos que constituem bem econômico e valor social. A disposição final é exclusiva dos rejeitos, de forma ambientalmente adequada (PMGIRS, 2017).

Na mesma linha, a Lei nº 10.501, de 08 de abril de 2019, conhecida como a Lei de Compostagem, estabelece que, até 5 de junho de 2030, cem por cento dos resíduos orgânicos no município de Florianópolis sejam destinados à compostagem. Nos noticiários, acompanhamos manchetes que evidenciam o compromisso da cidade em se tornar um ícone da gestão de resíduos sólidos ao pretender ser a primeira cidade “Lixo Zero” do Brasil.

A meta é audaciosa. Atualmente a Companhia Melhoramentos da Capital, Comcap,  recolhe, em média, 205 mil toneladas de lixo por ano. Cerca de 78% do resíduo recolhido é material que poderia ser reciclado ou encaminhado à compostagem, no entanto, apenas 8% atualmente é desviado do aterro sanitário (KALFELTZ; SANTOS, 2021, p. 9). Para mudar essa realidade e aproximar-se da meta estabelecida, o PMGIRS contém um conjunto de ações que remodela e amplia a dinâmica da destinação correta dos resíduos sólidos. Entre elas, está o projeto denominado “Minhoca na cabeça” (Figura 1). 

Figura 1 – Logo do Projeto Minhoca na Cabeça

Fonte: PMF, 2022.

O Projeto “Minhoca na Cabeça”, de iniciativa da Prefeitura Municipal de Florianópolis e de realização da Comcap, incentiva a reciclagem doméstica do resíduo orgânico por meio da doação de minhocários. O projeto consiste na doação de kits e promoção de oficinas (Figura 2) que incentivam e orientam os cidadãos a realizarem sua própria compostagem. Assim, os resíduos orgânicos (restos de alimentos, de origem vegetal e animal, como frutas, verduras, casca de ovo) têm como destino a compostagem no próprio quintal das casas.

Figura 2 – Oficinas do Projeto Minhoca na Cabeça

Fonte: PMF, 2022.

O Projeto vem complementar outras iniciativas já existentes. Há muitos anos, o assunto é pauta na cidade e muitas ações nesse sentido já são organizadas por diversos segmentos da sociedade. A horta urbana do Parque Cultura do Campeche (PACUCA) e a Revolução dos Baldinhos da comunidade Chico Mendes são alguns exemplos. Estas iniciativas podem ser vistas sob as lentes da coprodução do bem público, pois conforme Ostrom (1996), a coprodução caracteriza-se por ações que, com a união das partes, resultam no alcance de objetivos e resultados que seriam difíceis de serem alcançados por ações isoladas.

As informações sobre o que constitui o projeto “Minhoca na Cabeça” estão disponíveis em uma linguagem acessível, com vídeos e imagens que transparecem o interesse da sociedade e do poder público em resolver esse problema e promover mudança de visão e hábitos. No entanto, quando procuramos conhecer os critérios de seleção dos participantes, como lista de espera ou o número de participantes ativos, bem como valores e quantidades que envolvem os recursos e os resultados dos projetos, tivemos dificuldade no acesso às informações.

Inicialmente, a primeira dificuldade enfrentada foi na realização do cadastro para fazer parte do projeto, uma vez que no site não consta nenhuma programação de quando o projeto estará disponível para novas inscrições. Para o levantamento de informações mais concretas, buscamos o órgão responsável, que nos orientou que fizéssemos contato por e-mail. No entanto, não obtivemos retorno a respeito dos questionamentos realizados.

 Em uma apresentação e debate do tema que promovemos em disciplina na Universidade, convidamos e contamos com a presença do vereador Marcos José de Abreu (Marquito), autor da Lei da Compostagem. A presença do vereador nos possibilitou tomar conhecimento de maneira mais aprofundada acerca da Política Municipal de Resíduos Sólidos, da Lei da Compostagem e do funcionamento do aterro sanitário no município de Florianópolis. O vereador demonstrou que as metas da Lei de Compostagem, se seguidos os moldes de operacionalização e o ritmo de implementação atuais, dificilmente serão alcançadas. É preciso acelerar e ampliar os trabalhos da Prefeitura, Comcap, parceiros e demais envolvidos.

O que mais nos chamou atenção durante nossa pesquisa sobre o tema foi a dificuldade de acesso às informações. A página oficial do projeto “Minhoca na cabeça” contém informações apenas da descrição do projeto em si, mas carece de dados técnicos e quantitativos. Além disso, não disponibiliza um cronograma ou lista de espera para as próximas inscrições do programa. Este fato pode reduzir o interesse e a confiança da comunidade no Projeto. Ressaltamos, neste sentido, o estudo de Rocha e coautores (2021), que destacam a importância dos mecanismos de transparência e accountability na coprodução do serviço público. Além disso, a informação apresentada de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão é um importante instrumento do cidadão acompanhar e participar das ações públicas. Conforme Rocha e coautores (2019), a transparência como elemento estruturante da coprodução contribui para aproximar servidores públicos e cidadãos, promover confiança e viabilizar projetos.  

O problema dos resíduos sólidos é amplo e necessita do envolvimento de todos os atores sociais para ser resolvido. Um passo para isso é saber onde estamos para traçarmos os melhores caminhos para chegarmos aonde queremos. Estamos longe da meta? Quanto exatamente? Onde estamos errando? Onde estamos acertando? O que precisa ser ajustado? “Minhoca na Cabeça” é um bom projeto? Como melhorar e ampliar? Comecemos assim, preenchendo a cabeça com mais informações e deixemos as minhocas para a compostagem. 

* Texto elaborado por Bruna Teixeira, Marilan Cristina Albuquerque e Vanessa Alves, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

REFERÊNCIAS 

FLORIANÓPOLIS. Lei nº 10.501, de 8 de abril de 2019. dispõe sobre a obrigatoriedade da reciclagem de resíduos sólidos orgânicos no município de Florianópolis. Florianópolis, SC, 9 abr. 2019. Disponível em: <https:/ /leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/lei-ordinaria/2019/1051/10501/lei-ordinaria-n10501-2019-dispoe-sobre-a-obrigatoriedade-da-reciclagem-de-residuossolidos-organicos-no-municipio-de-florianopolis>. Acesso em: 27 maio 2022.

KALFELTZ, Jade; SANTOS, Kainã Pacheco. Lixo Impossível: Gestão de Resíduos em Florianópolis. 2021. 38 pag. Relatório Técnico de Trabalho de Conclusão de Curso – Departamento de Jornalismo do Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, setembro de 2021.

OSTROM, Elinor. Crossing the great divide: coproduction, synergy and development. World Development, Vol. 24, No. 6, pp. 1073-1087.1996.

PLANO MUNICIPAL DE GESTÃO INTEGRADA DE RESÍDUOS SÓLIDOS, PMGIRS. Florianópolis, 2017. Disponível em <https://www.pmf.sc.gov.br/sistemas/pmgirs/>. Acesso em 27 de maio de 2022.

PREFEITURA MUNICIPAL DE FLORIANÓPOLIS. Projeto Minhoca na Cabeça, 2022. Página inicial. Disponível em: <https:// https://www.pmf.sc.gov.br/sistemas/MinhocaCabeca/saibaMais.php >. Acesso em 27 de maio de 2022.

ROCHA, Arlindo Carvalho; SCHOMMER, Paula Chies; DEBETIR, Emiliana; PINHEIRO, Daniel Moraes. Elementos estruturantes para a realização da coprodução do bem público: uma visão integrativa. Cadernos EBAPE. BR, v. 19, p. 538-551, 2021.

ROCHA, Arlindo Carvalho; SCHOMMER, Paula Chies; DEBETIR, Emiliana; PINHEIRO, Daniel Moraes. Transparência como elemento da coprodução na pavimentação de vias públicas. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v. 24, n. 78, 2019.

A questão da violência policial no Brasil: uma questão histórica e de mentalidades

Por André Gesser de Moraes*

Segundo o Atlas da Violência elaborado pelo IPEA, em 2020, existe no Brasil uma taxa de 31,6 mortes por homicídio para cada cem mil habitantes. Dentre essas mortes, a maior taxa de homicídios ocorre entre a população jovem. O número se torna ainda mais alarmante se fizermos um recorte racial, pois  segundo  relatório elaborado pela ONU em 2017, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, contabilizando 63 mortes por dia. De um total de 30 mil pessoas assassinadas anualmente no país, 23 mil delas são negras, dado que mostra que há em ação uma política de extermínio da população negra no nosso país.

Um dos elementos que vem contribuindo ao longo dos anos para esses números é a alta letalidade policial existente em inúmeras cidades do nosso país. Se, por um lado, o Brasil apresentou em 2022 a menor taxa de homicídios em 10 anos, com média de 130 mortes por dia, quando mudamos a lente de observação e passamos a analisar a questão da letalidade policial, vemos através do anuário de segurança pública que houve um aumento de 4% no ano de 2020 em relação ao ano de 2019. Aumento que vem se repetindo nos anos consequentes. Mesmo que no ano de 2020, com a pandemia, o Superior Tribunal Federal, STF, tenha deferido uma liminar limitando as operações policiais na cidade do Rio de Janeiro, nesse mesmo período houve aumento de chacinas, que ocorreram em decorrência de operações policiais na cidade no mesmo período.

Existem alguns fatores que condicionam essa realidade das políticas de segurança pública no Brasil. A primeira questão, que é histórica, é o uso da polícia militar como ferramenta de aplicação de uma política eugenista e higienista. Sob a alegação de manter a ordem, se usa a força para destituir de determinados grupos sociais o seu direito à cidade. Essa prática foi recorrente nos anos 20 do século passado, quando analisamos as grandes reformas urbanas que marcaram o período, caracterizadas pela retirada das populações mais pobres das regiões centrais dos grandes centros. No Rio de Janeiro, por exemplo, houve demolições dos chamados cortiços. Em Florianópolis, a construção da Avenida Hercílio Luz e a canalização do Rio da Bulha. Ambas seguiram os moldes de grandes reformas urbanísticas da cidade de Paris, na metade do século XIX, como bem expresso em “A Grande Reforma Urbana do Rio de Janeiro: Pereira Passos, Rodrigues Alves e As ideias de Civilização e Progresso”, escrito pelo historiador André Nunes de Azevedo para o caso das reformas no Rio de Janeiro.

Somada a essa mentalidade higienista e eugenista, nós temos o racismo estrutural brasileiro, que se reflete nas organizações militarizadas, com mentalidade de combate, isto é, tem como objetivo um inimigo a ser combatido, que muitas vezes é caracterizado e estigmatizado como o jovem negro da periferia (Souza e Reis, 2014).

Não bastando a questão do racismo estrutural, temos um problema que acredito ser peça central no debate que diz respeito a maneiras de se reduzir a violência policial e resgatar a confiança da população nas forças de segurança. Quando se trata de debater questões referentes à violência policial, muitas vezes acaba parecendo que, nesse debate, ao criticar as organizações de segurança, automaticamente você estaria defendendo a violência urbana e o crime em si, ou que toda a polícia militar seria por natureza violenta e assassina.

É necessário compreender o limiar que separa a ideia de responsabilidade e responsividade dos agentes públicos e o papel das organizações e instituições na responsabilização por suas práticas. Muitas vezes, os agentes de segurança não se veem enquanto agentes públicos e, portanto, sujeitos à transparência e à prestação de contas de seus atos e omissões, como qualquer outro agente público.

As instituições de segurança devem, acima de tudo, deixar para trás resquícios das ideias e tempos da ditadura, em que prestar contas de seus atos é visto como um atentado à segurança pública. São inúmeros os casos de erros e crimes cometidos por agentes de segurança nos quais as instituições agem de maneira corporativista, não punindo nem responsabilizando aqueles que cometem atos ilícitos. Isso contribui para que toda a instituição e o conjunto das forças de segurança acabem por passar uma imagem negativa.

Basta pensarmos o recente caso Genivaldo de Jesus, abordado em uma blitz de rotina por policiais rodoviários federais e que foi colocado no porta malas da viatura e asfixiado com gás lacrimogênio  até a morte.  Bem aos moldes das câmaras de gás utilizadas nos campos de concentração nazistas na segunda guerra mundial. Nesse caso específico, sobre o qual houve imensa repercussão nacional, a instituição correu em defender os policiais, alegando que não houve uso desproporcional da força, mesmo que tal abordagem tenha sido filmada pelos presentes, demonstrando justamente o contrário.

Não bastando essa negação, ainda houve a tentativa de imposição de sigilo no processo envolvendo os policiais rodoviários federais, o que só veio a falhar devido à pressão da sociedade civil organizada.

O uso de ferramentas de transparência, controle e responsabilização de agentes públicos são o melhor caminho se queremos diminuir a violência policial. Na mesma medida, queremos proteger os agentes públicos para bem exercerem seu real propósito, que é a garantia de direitos e o zelo pelo bem público.

Um exemplo bem-sucedido desse tipo de política é a instalação de câmeras nos uniformes policiais, ação que tem comprovadamente reduzido a letalidade em cidades como a de São Paulo. Para além da redução de letalidade, a instalação de câmeras nas fardas dos policiais em serviço serve como salvaguarda para os casos em que os agentes são desacatados ou desacreditados. Serve até mesmo como justificativa nos eventuais casos nos quais o uso da força é realmente necessário.

Referências

AZEVEDO, André Nunes de. A grande Reforma Urbana Do Rio de Janeiro: Pereira Passos, Rodrigues Alves e as ideias de Civilização e progresso. Rio de Janeiro: Ed PUC-Rio, 2018 308p.

COSTA, Sandro Silveira da. Transfigurações Urbanas em Florianópolis (1880-1930). Ágora nº29. 2019. Disponível em 47656 (brapci.inf.br)

IPEA. Atlas da Violência. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf

SOUZA, Jaime Luiz Cunha de; REIS, João Francisco Garcia. A discricionariedade policial e os estereótipos suspeitos. Rev. NUFEN vol.6 no.1 Belém  2014. Disponível em: A discricionariedade policial e os estereótipos suspeitos (bvsalud.org)

https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2021/07/letalidade-da-policia-aumenta-e-numero-de-mortes-em-2020-e-recorde/

https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/05/25/As-chacinas-policiais-como-arma-pol%C3%ADtica-no-Rio-de-Janeiro

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/05/policiais-agrediram-genivaldo-de-jesus-por-30-minutos-dizem-moradores.shtml

https://www.metropoles.com/brasil/caso-genivaldo-prf-poe-sigilo-de-100-anos-em-processos-contra-agentes

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/02/21/uso-de-cameras-em-acoes-policiais-reduz-letalidade.htm

* Texto elaborado pelo acadêmico de administração pública André Gesser de Moraes, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e sua relação com accountability

Por Rebeca Juncks, Gabriela Vargas e Diogo Nogueira*

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), n° 13.709 de 14 de agosto de 2018, entrou em vigor em 18 de setembro de 2022. O período  de quatro anos para entrar em vigor tem relação com  controvérsias sobre  a fiscalização pelo  poder público, pois houve demora na  criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD), bem como o argumento de que as empresas não teriam tido tempo suficiente para adequação. 

A lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural (Brasil, 2018).

Para auxiliar na compreensão das dificuldades e desafios da regulação do mercado e das instituições referentes à LGPD, entrevistamos a advogada Isabella Massinelli, que trabalha com consultorias auxiliando organizações públicas e privadas com a adequação à Lei e que nos trouxe uma visão do cenário atual e da relação entre a LGPD e aspectos relativos a accountability. 

Separamos alguns pontos que nos pareceram mais importantes para compartilhar, considerando a visão do legislador, das empresas e do cliente, este que é muitas vezes o mais lesado, visto o crescente número de golpes utilizando dados de usuários, como mostra o Indicador de Tentativas de Fraude da Serasa Experian.

  1. A LGPD inclui o  “Princípio da responsabilização e da prestação de contas”. O que significa esse princípio e como se comporta nos processos das empresas, ao se implementar a Lei?

Isabella: O princípio da Responsabilização e Prestação de Contas consiste, de acordo com o art. 6º, X, da LGPD, na “demonstração, pelo agente, da adoção de medidas eficazes e capazes de comprovar a observância e o cumprimento das normas de proteção de dados pessoais e, inclusive, da eficácia dessas medidas”. 

O legislador, ao incluir esse princípio na LGPD, demonstrou a sua intenção de alertar os agentes de tratamento (incluindo as empresas) de que eles são os responsáveis pelo fiel cumprimento de todas as exigências legais para garantir todos os objetivos, fundamentos e demais princípios nela estabelecidos. E não basta somente a intenção de cumprir a Lei, é imprescindível que as medidas adotadas para tal finalidade sejam eficazes. 

Isso significa que as empresas, durante todo o período em que estiverem em posse dos dados pessoais, deverão analisar a conformidade legal e implementar os procedimentos de proteção dos dados pessoais de acordo com a sua própria ponderação de riscos.

Portanto, será necessário avaliar o nível de conformidade das operações de tratamento de dados pessoais, verificar se os princípios da LGPD, especialmente o da finalidade, adequação e necessidade, estão sendo atendidos, para que não haja tratamento de dados excessivo, desnecessário ou até mesmo em desacordo com o intuito pelo qual foram coletados. 

Paralelamente, a empresa também deverá adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. 

Além disso, sobre a prestação de contas, a Lei prevê que as empresas devem manter registro das operações de tratamento de dados pessoais que realizarem e isso decorre de dois motivos: a) a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD) poderá requisitar informações, a qualquer momento, das operações de tratamento de dados pessoais; e b) há a possibilidade de inversão do ônus da prova a favor do titular dos dados quando verossímil a alegação, houver hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova pelo titular resultar-lhe excessivamente oneroso.

Por fim, destaco que a LGPD prevê o dever das empresas de indenizar os titulares, quando,  em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causarem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais.

  1. Quais as diferenças da LGPD no serviço privado e público?

Isabella: As diferenças são poucas. O setor público possui as mesmas obrigações que o setor privado em relação à LGPD. Portanto, também deve garantir a licitude do tratamento de dados pessoais, manutenção de registro dessas atividades, assegurar a transparência e a segurança das atividades de tratamento, possuir um canal de comunicação com os titulares para que os mesmos possam exercer os seus direitos, dentre outros.

A única diferença relevante entre os dois setores é que o setor público está autorizado a utilizar os dados pessoais em algumas hipóteses nas quais o setor privado não estaria, como, por exemplo, para a execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres.

  1. O termo accountability é utilizado vinculado à LGPD?

Isabella: O termo accountability pode ser utilizado em vinculação com a LGPD, em diversos aspectos, principalmente quando tratamos dos deveres do controlador e do operador em relação às obrigações de manutenção de registro das atividades e mitigação de riscos. 

Em apertada síntese, o controlador é a pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais e o operador é a pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador.

O operador possui o dever de realizar o tratamento de dados segundo as instruções fornecidas pelo controlador de dados, inexistindo a possibilidade de realizar qualquer operação diversa daquela requerida pelo controlador. Além disso, ele deve comunicar imediatamente a ocorrência de incidentes ao controlador e deve auxiliar na apuração do incidente. Além disso, deve auxiliar o controlador com a elaboração de documentos obrigatórios (Relatório de Impacto à Proteção de Dados), destinado à ANPD.

O controlador, por sua vez, é quem deve garantir, antecipadamente e durante toda a duração do tratamento, o cumprimento das obrigações na LGPD, sendo o responsável pela licitude dessas atividades. É sobre ele que o peso recai quando tratamos de accountability. 

Por isso é essencial que as atividades realizadas estejam todas mapeadas e devidamente registradas, bem como que existam boas práticas de governança. 

Ademais, a Lei permite que essas duas figuras sejam responsabilizadas por qualquer dano causado a outrem, além de estarem sujeitos às sanções administrativas da ANPD. 

  1. Como é possível trabalhar a accountability nas consultorias e no dia-a-dia das organizações?

Isabella: A accountability pode ser trabalhada de diversas formas, dentre elas: 

  1. por meio da formalização de aditivos contratuais com os fornecedores das empresas, no qual podem ser estipuladas as responsabilidades de cada parte em relação ao uso compartilhado dos dados pessoais;
  2. por meio de treinamentos e formalização de termos de responsabilidade/NDAs com os colaboradores da própria empresa, a fim de definir o dever de cada indivíduo em relação às boas práticas relacionadas à LGPD;
  3. por meio da conscientização da empresa sobre os seus deveres referentes à LGPD e, principalmente, sobre os deveres que possui perante os titulares de dados.

Além dessas informações mais didáticas e técnicas, Isabella trocou algumas experiências referente a suas percepções no dia-a-dia das consultorias. Ela relata que percebe uma dificuldade maior em fortalecer essa cultura entre os colaboradores, principalmente no setor público, em que geralmente os cargos de gestão dos serviços são mais antigos. Muitas das funções e atividades no setor público necessitam de  renovação e aprimoramento no controle de dados, à medida que as tecnologias mudam os usos das informações, há aprimoramento de processos,  redução de  gastos e digitalização de serviços. O setor privado, além de ser demandado a cumprir a legislação, tem mecanismos de  auto regulação, incluindo investimentos e foco em clientes.

Por fim, a LGPD busca gerar maior confiabilidade dos usuários de serviços públicos e privados. Mas, além de criar um sistema de controle, faz-se necessário investir em  aprendizagens para a população, para que consiga garantir seus direitos e evitar o mau uso de seus dados, seja  por manipulação, fraude, crime, venda, etc. A LGPD contribui para viabilizar o cumprimento de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, como a proteção da privacidade, intimidade e imagem. Isoladamente, porém, a lei não dá conta do desafio da proteção dos dados pessoais. Cabe o aprimoramento contínuo do controle e da accountability de todos os envolvidos e o aprimoramento da própria lei e seus mecanismos, à medida que mudam as tecnologias e as exigências da sociedade.

REFERÊNCIAS 

CONVERGÊNCIA DIGITAL (Brasil). Golpes marcam 2021 e Brasil registra mais de 4 milhões de fraudes digitais. 2022. Disponível em: https://www.convergenciadigital.com.br/Seguranca/Golpes-marcam-2021-e-Brasil-registra-mais-de-4-milhoes-de-fraudes-digitais-59482.html?UserActiveTemplate=mobile#:~:text=Golpes%20marcam%202021%20e%20Brasil%20registra%20mais%20de%204%20milh%C3%B5es%20de%20fraudes%20digitais,-Converg%C3%AAncia%20Digital%20…&text=O%20ano%20de%202021%20chegou,de%20movimenta%C3%A7%C3%B5es%20suspeitas%20no%20Brasil.. Acesso em: 10 jul. 2022.

BRASIL. Dispõe Sobre A Proteção de Dados Pessoais e Altera A Lei Nº 12.965, de 23 de Abril de 2014 (Marco Civil da Internet). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lgpd). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 10 jul. 2022.

PARA SABER MAIS SOBRE O TEMA:

Lei de Acesso à Informação e Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: Conflito ou Harmonia?

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Rebeca Juncks, Gabriela Vargas e Diogo Nogueira, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc/Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Identidade digital e segurança de dados

Por Sabrina Sabadini de Melo e Manuela Noemia Vargas*

Um documento, de forma geral, seja ele um recibo, um contrato ou um alvará, independente do meio em que se encontra, precisa possuir um registro confiável, seguro, autêntico e auditável. Ao longo do tempo, com a evolução da sociedade e das tecnologias, a maneira como lidamos com os documentos sofreu mudanças. Pode até parecer estranho para nós, mas antigamente, as informações eram registradas em meios físicos diferentes dos que utilizamos hoje, como a pedra e a argila. Atualmente, estamos vivendo a transição do meio físico atual, o papel, para o meio eletrônico.

A identidade digital é um conceito que vem se definindo e aprimorando ao longo das duas últimas décadas no Brasil. A Medida Provisória nº 2.200-2, de 2001, instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileiras, a ICP-Brasil. Esta tem a função de garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos na sua forma eletrônica, proporcionando segurança às transações eletrônicas através do uso do certificado digital. 

O certificado digital, por sua vez, é uma forma de identificação eletrônica para validar operações via internet. Ele reúne nome completo e CPF (para pessoas físicas) ou razão social e CNPJ (para pessoas jurídicas), além de e-mail e demais dados do seu titular. Dessa forma, consegue substituir os documentos físicos, que possuem alguns empecilhos no seu uso no dia a dia, processos de emissão burocratizados, dados descentralizados e riscos de perda e falsificação. 

Para a emissão de um certificado digital, é necessário passar por um Agente de Registro vinculado a uma Autoridade de Registro, conforme estipulado pela estrutura da ICP-Brasil. A emissão pode ser feita de forma presencial, onde o Agente de Registro faz um “cara-crachá” e valida seus dados através dos documentos físicos, ou de forma online, para pessoas que possuem CNH expedida a partir de 2017 ou o novo documento de identidade. A autenticação dos dados é realizada com o apoio das principais bases de dados federais, como as do Senatran, da Polícia Federal ou do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro).

Os dados repassados nas operações são protegidos por criptografia de ponta-a-ponta, tecnologia já utilizada pelo Whatsapp, por exemplo, que garante o sigilo das informações e funciona como ferramenta de defesa contra fraudes (Figura 1).

Figura 1: Mensagens criptografadas pelo Whatsapp

Fonte: Diário de Pernambuco

O documento pode ser utilizado pelo seu titular através de fatores de autenticação, usados de forma individual ou conjunta (Figura 2): 1) algo que você sabe – uma senha; 2) algo que você tem – um token físico ou um código PIN enviado para seu e-mail ou celular; e por último 3) algo que você é – uma digital ou um reconhecimento facial.

Figura 2: Os 3 fatores de autenticação

Fonte: BRy Tecnologia

É importante que o sistema utilize ferramentas que garantam a segurança dos dados tanto dos cidadãos, quanto das entidades públicas. O Governo Federal, através do Decreto nº 8.936, de 2016, instituiu a Plataforma de Cidadania Digital com o intuito de ofertar serviços públicos por meio digital. Mais conhecido como gov.br, o portal único tem funções de acesso digital único, compartilhamento de dados entre os órgãos e entidades, meios de pagamentos, mecanismos para assinatura eletrônica, entre outros.

No gov.br, o cadastro dos cidadãos acontece por meio de biometria facial, bancos credenciados, certificado digital ou ainda pelos dados biográficos retirados de bases do governo e a identidade do usuário passa por checagem de informações. Aqui, o login é feito mediante autenticação de dois fatores, através de senha (algo que você sabe) e código enviado para dispositivo (algo que você tem). Além de trazer mais segurança e agilidade, a plataforma também disponibiliza um painel de monitoramento de desempenho dos serviços digitais prestados pelo governo federal (Figura 3).

Figura 3: Painel de monitoramento dos serviços federais

Fonte: gov.br

A Certificação Digital tem alguns desafios a vencer, tendo em vista que sua missão é garantir segurança, confiabilidade e confidencialidade no ambiente virtual. É dito que em qualquer sistema de identidade digital há interferência na proteção de dados do cidadão, por isso, sua estrutura deve ser muito bem definida, já que é um risco à centralização de dados sensíveis de tantas pessoas em um mesmo ponto. Se acontecer um incidente, como o vazamento de informações, o dano seria enorme. Sendo assim, o maior desafio da identidade digital é a sua estruturação e estratégias para confiabilidade e segurança, o que pode ser alcançado com o avanço da tecnologia.

Cada vez mais, a transformação digital tem estado presente no nosso dia a dia. Assim como a sociedade muda, seu governo também precisa acompanhar e promover mudanças que aprimorem o serviço público e favoreçam a cidadania. A digitalização dos serviços públicos é protagonista na desburocratização e simplificação desses processos, trazendo benefícios para usuários e entidades públicas, mas ainda temos um longo caminho pela frente. 

Referências

BRASIL. Decreto nº 8.936, de 19 de dezembro de 2016. Institui a Plataforma de Cidadania Digital e dispõe sobre a oferta dos serviços públicos digitais, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/d8936.htm. Acesso em 10 jul. 2022.

BRASIL. Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. Institui a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, transforma o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação em autarquia, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/antigas_2001/2200-2.htm. Acesso em 10 jul. 2022.

GOV.BR. ICP-Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/iti/pt-br/assuntos/icp-brasil. Acesso em 17 jul. 2022.

GOV.BR. Lista de Autoridades de Registro por UF. Disponível em: https://listaars.iti.gov.br/index. Acesso em 28 jul. 2022.

GOV.BR. Serviços e Informações do Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br. Acesso em 10 jul. 2022.

MOECK, Cristian. Confiabilidade do certificado digital: entenda como é feita a validação. BRy Tecnologia, 2021. Disponível em: https://www.bry.com.br/blog/confiabilidade-do-certificado-digital/. Acesso em 17 jul. 2022.

WHATSAPP. Segurança do WhatsApp. Disponível em: https://www.whatsapp.com/security/?lang=pt_br. Acesso em 10 jul. 2022. 

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Sabrina Sabadini de Melo e Manuela Noemia Vargas, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Accountability e a distribuição de recursos em anos de eleições 

Por Antonio José Santana Vieira, Larissa Rogowski Ribeiro de Jesus e Luiza Colombo do Carmo*

A  curiosidade em torno da destinação de verbas públicas, por parte do governo do estado, em anos eleitorais, nos fez buscar informações sobre o tema. Alguns de nossos questionamentos talvez  passam pela cabeça de muitos  eleitores.  

Será que o governo do estado tenta influenciar, com destinação de verbas, as eleições municipais? Há transparência e critérios de escolha e distribuição dessa verba pública? Os municípios preteridos são os da base governista ou da oposição? 

Analisando sob a ótica da accountability, podemos dizer que viver em uma democracia nos permite realizar esses questionamentos e solicitar aos governos um retorno sobre esse tipo de indagação. Dado que as transferências de recursos públicos podem gerar dúvidas e desconfiança, é importante que haja transparência, justificação sobre critérios, processos e resultados e, ainda, mecanismos de punição caso haja irregularidades ou influências indevidas nas eleições. 

Espera-se que haja transparência dos recursos transferidos do governo do estado para os municípios, incluindo os requisitos e critérios, além dos montantes, locais e áreas da administração pública para as quais as verbas são destinadas. Dos municípios, se espera que prestem contas para o governo do estado e para seus cidadãos sobre como foram utilizados esses recursos, se foram em sua totalidade, caso não foram, qual a destinação dos valores. Na responsabilização, a expectativa é que os gestores públicos sejam reconhecidos e valorizados quando fazem um bom uso do recurso, ou sejam punidos quando fazem mau uso do dinheiro público, por meio da Lei de Improbidade Administrativa e outros mecanismos cabíveis em cada situação. Partindo dessas questões, foi realizada a análise das transferências dos 10 maiores municípios de Santa Catarina no período de 2015 a 2018. A Tabela 1, a seguir, foi elaborada com base nos valores disponíveis no Portal da Transparência do Poder Executivo de Santa Catarina, relacionado às Transferências Obrigatórias e Voluntárias.

Com o intuito de promover o controle social, o site propõe acompanhar todas as demandas do Estado, desde arrecadação em impostos e taxas, bem como a aplicação detalhada desses recursos e os repasses realizados para os Municípios. Nele é possível extrair diversas informações, porém, ao utilizá-lo na prática, foi um pouco difícil. Ao baixar a planilha para que seja possível analisar os valores, vemos lançamentos repetidos e colunas sem uma descrição clara, dificultando o acesso a informações mais específicas dos repasses. 

Além do Portal da Transparência,  há o portal chamado SC Transferências, que “consolida informações e orientações sobre as transferências de recursos realizadas de forma voluntária pelo Estado de Santa Catarina”. Na guia Glossário, deixa claro o que significa Transferências Voluntárias:

“Transferência Voluntária é a entrega de recursos a outro ente ou entidades, a título de cooperação para a execução de um objeto de interesse público. Denomina-se voluntária porque não decorre de determinação constitucional ou legal, decorre da necessidade de atendimento de demandas específicas dos beneficiários. Sua realização normalmente depende do atendimento de algumas condições como o aporte de contrapartida (financeira e/ou bens e serviços) e a comprovação de que não possui débitos com o Estado.” (SC Transferência, 2022)

O objetivo em nosso estudo desses valores era verificar se haveria evidências de possíveis alterações no padrão dos repasses de acordo com as eleições estaduais e municipais, verificando se houve diferença entre os municípios alinhados ao governo e os municípios de oposição. Porém, ao comparar os valores,  isso não se confirmou. 

Tabela 1: Transferências obrigatórias e voluntárias para os 10 maiores municípios de SC

Fonte: Desenvolvido pelos autores com base no Portal de Transparência do Poder Executivo de Santa Catarina, 2022.

A seguir, na Tabela 2, constam quais eram os prefeitos municipais e seus respectivos partidos:

Tabela 2:  Prefeitos de SC e partidos

Fonte: Desenvolvido pelos autores com base no Portal do TRE/SC, 2022

Podemos observar que os municípios que não faziam parte dos partidos coligados ao governo do estado, como Itajaí, Blumenau, Jaraguá do Sul e Palhoça, receberam montantes proporcionais abaixo da média geral dos municípios. Porém, esse cenário também se aplicou a alguns municípios cujas gestões faziam parte do governo do estado, como é exemplo o município de São José ou Lages, sendo Lages o município onde o governador da época foi prefeito reeleito. Outro ponto observado é que os repasses aumentaram consideravelmente no ano eleitoral para os municípios de Joinville, que fazia parte da base governista, e para o município de Criciúma, que não fazia parte. Haveria ligação com alguma necessidade de o governo precisar de mais apoio nessas duas cidades, para a eleição de 2018?

Contudo, concluímos que o governo Raimundo Colombo, ao que transparece, cumpriu os princípios democráticos de isonomia. Nas informações analisadas no canal de transparência, não foi possível encontrar dados que comprovem se as eleições influenciam nos repasses ou que os municípios da base de governo foram mais beneficiados que outros. Porém, algumas indagações permanecem e podem orientar futuras consultas aos Portais e demais canais dos governos estaduais e municipais. Em síntese: Há “transparência nas transferências”? Os dados que temos atualmente são suficientes para entendermos os critérios, o processo de transferência e prestação de contas e como é utilizado o recurso na ponta? Esse debate ficará para uma próxima análise.

Referências

ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accountability. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2004

FILGUEIRAS, Fernando. Além da transparência: Accountability e Política de Publicidade. São Paulo: Lua Nova, 2011.

PODER 360. 2022. Disponível em: <https://eleicoes.poder360.com.br/candidato/685895#2014>Acesso em:  10 jul. 2022

POPULAÇÃO de SC cresce em 2021: veja 10 cidades mais populosas em atualização do IBGE. ND+. 2021. Disponível em: <https://ndmais.com.br/indicadores/populacao-de-sc-cresce-em-2021-veja-10-cidades-mais-populosas-em-atualizacao-do-ibge/> Acesso em: 10 jul. 2022

SANTA CATARINA. PORTAL DA TRANSPARÊNCIA DO PODER EXECUTIVO DE SANTA CATARINA. Transferências obrigatórias e voluntárias. 2022. Disponível em: <https://www.transparencia.sc.gov.br/transferencias>. Acesso em: 10 jul. 2022.

SANTA CATARINA. SC TRANSFERÊNCIAS. Glossário. 2022. Disponível em: <https://sctransferencias.cge.sc.gov.br/glossario/> Acesso em: 18 jul. 2022. 

* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Antonio José Santana Vieira, Larissa Rogowski Ribeiro de Jesus e Luiza Colombo do Carmo, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Gestão de riscos como meio de fortalecimento da accountability no setor público 

Por Sophia Myron e Thalia Farinon*

Diariamente, estamos expostos a situações que podem impactar de alguma maneira nossos planos. Sabemos que a probabilidade de imprevistos acontecerem é infinita. Nas organizações, essa realidade não é diferente, o que faz surgir  o que chamamos de Gestão de riscos. A necessidade de manter-se atento às chances de um risco se tornar um problema real fez com que órgãos de controle interno e externo se interessassem pelas práticas adotadas na gestão de riscos como um meio coordenado e estratégico de se prevenir ocorrências que possam causar efeitos negativos à prestação de serviços. 

Entende-se por risco as possíveis ameaças ao cumprimento dos objetivos estratégicos de uma organização. A gestão de riscos, por sua vez, seria um mapeamento dessas ameaças e a tomada de ações coordenadas, de forma a mitigar os impactos e possibilitar a concretização dos objetivos organizacionais. Esse processo deve envolver todas as partes interessadas, ou os chamados stakeholders, que podem ser afetados pelas atitudes e decisões definidas. Essa visão de gestão foi difundida no âmbito estatal a partir da chamada nova gestão pública, passando-se a fazer parte do repertório da governança corporativa para órgãos, entidades e empresas públicas 

Em paralelo ao desenvolvimento da gestão de riscos, é possível fazer uma análise de sua aplicação como meio de fortalecimento dos processos de accountability. De acordo com Hood (2007), para que seja possível gerir riscos, é necessário que os órgãos de controle possam redefinir parâmetros de culpabilidade e os limites da responsabilidade de seus agentes públicos. No momento em que se sentem contrários à publicação dos problemas institucionais, é preciso que haja ações para que agentes públicos sejam capazes de “atuar dentro de um regime de visibilidade e escrutínio público” (BLACK, 2005, apud KLEIN JR., 2020, p. 3).

Levando em consideração o exposto, podemos analisar dois aspectos da accountability. São eles a answerability, em outras palavras, a capacidade de informar e justificar ações, e o enforcement, que pode ser entendido na forma em que o agente público é cobrado e responsabilizado pela sua ação ou omissão em determinada situação (SCHEDLER, 1999). De acordo com Klein Junior (2020), caso a gestão de riscos não alinhe parâmetros para responsabilização e culpabilização dos agentes públicos, pode-se ter uma inversão no seu propósito, passando a responsabilidade para os processos mapeados e não para as ações tomadas pelos gestores. 

Outro aspecto relevante é o das práticas de accountability aplicadas ao controle interno. Se fizermos um recorte nas auditorias internas nos órgãos públicos, percebemos que há uma grande preocupação com os limites formais ou legalistas e a prestação de contas costuma limitar-se  a aspectos financeiros e contábeis. Essas ênfases podem ser entendidas como resistência  à geração de informações mais transparentes, inclusive sobre critérios, resultados, ações e omissões, que visem de fato a visibilidade do órgão e o diálogo com a sociedade, o que sujeitaria a entidade à opinião popular.

É diante disso que se considera a importância da transparência no processo de criação e implementação da gestão de riscos nas instituições. A partir dos pontos levantados por Klein Junior (2020), gerir riscos significa que agentes públicos devem não apenas antecipar informações a respeito de ameaças a objetivos organizacionais, mas também tornar essas informações passíveis de auditoria e responsabilização. Para Black (2005), isso implica em uma mudança radical, uma vez que órgãos de controle devem ser capazes de definir os limites da ação e responsabilização de agentes públicos, isto é, definir como devem informar e justificar ações com base no risco (answerability) e como devem ser cobrados por essas ações (enforcement). 

Sob esse prisma, pode-se analisar o formulário disponibilizado pela Controladoria Geral do Estado de Santa Catarina – CGE, que faz parte do Programa de Integridade e Compliance do governo do estado de Santa Catarina.  No Programa, há uma etapa de mapeamento dos riscos nas instituições do estado, incluindo empresas públicas, para servir de subsídio à criação de um conjunto de medidas de mitigação para o tratamento dos riscos, com definição de prazos e  responsáveis por sua implantação  em cada um dos órgãos e entidades. 

Além disso, ao analisarmos os guias metodológicos de gestão de riscos produzidos pelo órgão, percebe-se a preocupação voltada à publicização, tanto em relação ao processo do mapeamento de riscos, quanto dos resultados obtidos por ele, sendo adotada uma perspectiva de longo prazo pela Controladoria. Ademais, o interesse de trazer essas informações a público, envolvendo a sociedade ativamente no processo, é expressa no manual, conforme observado no seguinte trecho extraído do E-book 05 – Parte Interessadas

“O engajamento de todas as partes interessadas, sejam públicas ou privadas, fortalece a democracia, aumenta a confiança nas instituições e ajuda a promover a consciência social sobre os limites de atuação do Estado, contribuindo para o compartilhamento das responsabilidades relacionadas aos riscos.” (p. 11)

Em entrevista realizada com uma funcionária de uma empresa pública do estado de Santa Catarina, observou-se que, na sua visão, a gestão de riscos têm ocorrido mais como resposta às demandas de regulamentação em prol do compliance do que propriamente como sinal de mudança estrutural e de adoção de ações efetivas em relação aos riscos mapeados. Questionada a respeito do quão transparente são os problemas estruturais sofridos pela empresa, a colaboradora pontuou que são pouco transparentes e que, dependendo de como é realizado o estudo da estrutura, esses problemas sequer são identificados. Além disso, foi mencionado que muitas vezes os colaboradores que realizam os controles nem questionam a sua real necessidade. 

O descompasso entre a alta administração de muitas empresas e os seus colaboradores, na gestão de riscos, é um entrave para o seu sucesso e eficiência. Isso, atrelado à falta de disclosure, ou seja, da divulgação das informações dos problemas mapeados ao respectivo público, muitas vezes explicado pela preocupação da reputação organizacional ou até mesmo preservação de capital político, surge como um dos motivos para a falha dos mecanismos de accountability. Assim, a gestão de riscos pode reduzir-se a mais um processo organizacional que visa o cumprimento de normas legais, com o enfoque  para a prestação de contas financeira e de processos e não para a resposta a problemas sociais e demandas dos cidadãos e usuários dos serviços.

REFERÊNCIAS

Black, J. (2005). The emergence of risk-based regulation and the new public risk management in the United Kingdom. Public Law, Autumn, 510-549.

Hood, C. (2007). What happens when transparency meets blame-avoidance? Public Management Review, 9(2), 191-210. DOI: https://doi.org/10.1080/14719030701340275

Klein Junior, V. H. (2020). Gestão de riscos no setor público brasileiro: uma nova lógica de accountability?. Revista De Contabilidade E Organizações, 14, e163964. https://doi.org/10.11606/issn.1982-6486.rco.2020.163964. Acesso em:  

SANTA CATARINA. Governo do Estado de Santa Catarina. SIG, CGE. Disponível em: SIG-E-book-05-Partes-Interessadas.pdf (cge.sc.gov.br). Acesso em: 02 jul. 2022.

SCHEDLER, Andreas. “Conceptualizing Accountability” Boulder e London The Self-Restraining State: Power and Accountability in New Democracies (1999). Disponível em: http://works.bepress.com/andreas_schedler/22/. Acesso em: 21 jul. 2022. 

TCU, TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Gestão de riscos no TCU: o que é e para que serve? Disponível em:  O que é e para que serve | Portal TCU. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/planejamento-governanca-e-gestao/gestao-de-riscos/gestao-de-riscos/. Acesso em: 02 jul. 2022.TORMES, Diego. Politize!. Accountability: o que significa?. 16 maio 2017. Disponível em: https://www.politize.com.br/accountability-o-que-significa/. Acesso em: 10 jul. 2022.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de Administração Pública Sophia Myron e Thalia Farinon, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.