Por Jamyly Schmitz Schroeder, Jessica Peri e Yasmin de Nazare Silva do Carmo*
As ouvidorias na saúde pública têm contribuído para a transparência, a participação popular e a qualidade dos serviços oferecidos?
Este texto explora o papel desse instrumento na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), destacando sua evolução, função, impacto na vida do usuário e como potencial de contribuir para melhoria do acesso e da eficiência dos serviços de saúde. A análise abordará desde a sua criação, em 2003, até sua consolidação como instrumento de accountability e gestão participativa, evidenciando a importância de sua atuação ativa e receptiva para a construção de um sistema de saúde mais justo e eficaz no Brasil. Abordará, ainda, um exemplo de uso da ouvidoria por uma cidadã e estudante de administração pública.
No contexto da saúde pública brasileira, o acesso à informação é destacado como um direito fundamental, consagrado na Constituição Federal de 1988. Para garantir sua efetivação e promover a participação popular, foram estabelecidas estruturas específicas, como as ouvidorias. Em 2003, o Departamento de Ouvidoria-Geral do Sistema Único de Saúde (DOGES) foi criado pelo Decreto nº 4.726, integrando a estrutura do Ministério da Saúde. A Lei de Acesso à Informação (LAI), de 2011, representa outro marco importante, consolidando a democracia e fortalecendo a prevenção da corrupção no país. O Decreto nº 7.508/2011, que regulamenta a Lei Orgânica do SUS, estabelece o conceito de Ouvidoria Ativa, visando atender às necessidades dos cidadãos de forma permanente, inclusive por meio de escuta itinerante.
A função da ouvidoria é receber, analisar e responder às demandas dos usuários, promovendo transparência, imparcialidade e qualidade nos serviços prestados, além de contribuir para a gestão participativa. Conforme menciona o Relatório Anual da Ouvidoria Secretaria Estadual de Saúde Santa Catarina:
Somos uma via de comunicação, legítima e oficial, que dá voz aos anseios da população catarinense e os transmite ao gestor de saúde. Trata-se de um rico instrumento para a administração, visto que gera informações baseadas na necessidade da população, podendo orientar a tomada de decisão e ações direcionadas, melhorando, dessa forma, a qualidade dos serviços ofertados (SAUDE.SC.GOV., 2018).
Além disso, a ouvidoria pode ser reconhecida como um instrumento de accountability, ao estar relacionada às dimensões abordadas por Koppel (2005), transparência, controlabilidade, responsabilidade, imputabilidade e responsividade, ou capacidade de resposta. No seu cerne, a ouvidoria é um canal que proporciona acesso a informações ao usuário sobre os serviços de saúde pública, políticas e procedimentos, gerando transparência. Ao agir como um mecanismo de respostas às demandas do cidadão, oferecendo respostas rápidas e adequadas, resulta em responsividade.
Podemos observar também os elementos de controle, como administrativo interno, pois a ouvidoria pode identificar padrões de problemas e áreas de melhorias na qualidade dos serviços de saúde, através das informações obtidas por meio dos usuários, e o controle social, pois permite que os cidadãos exerçam influência e fiscalizem as ações do governo, usufruindo desse canal para buscar apoio e assistência. Conforme Denhardt (2012 p.267), os instrumentos de accountability precisam envolver “um equilíbrio entre normas e responsabilidades concorrentes numa teia complicada de controles externos, padrões profissionais, preferências dos cidadãos, questões morais, direito público e, em última análise, interesse público.” Entendemos que todos esses elementos, bem trabalhados, podem resultar na redução da iniquidade nos serviços de saúde, buscando combater o acesso inadequado a esse serviço, combater discriminações e aplicar o direito do cidadão o mais próximo possível do justo.
Experienciando o instrumento
Agora compartilhamos a experiência vivida por uma das autoras deste texto com o uso do instrumento de ouvidoria do serviço de saúde pública em Santa Catarina. Aguardando cirurgia de Ligamento Cruzado Anterior (LCA) no joelho esquerdo desde 2019, no decorrer dos anos, passou quatro vezes pelos exames pré-operatórios e anestesista, mas sem sucesso no agendamento da efetiva cirurgia. Dentro da universidade, como aluna de administração pública, aprendeu sobre a existência de canais de controle social e participação cidadã, como os Conselhos de Saúde, as Conferências de Saúde e as Ouvidorias.
Compreendido isso, buscou dentro do hospital o canal (WhatsApp) da Ouvidoria Hospitalar. Apesar de sempre obter retorno, não se alcançava informações com exatidão e uma solução para a situação, nas diversas tentativas de comunicação. Posteriormente, ela buscou a Ouvidoria Municipal da Secretaria da Saúde de Florianópolis, via canal (E-mail), apresentando a situação e as dificuldades. Neste caso, o diálogo foi diferente, ela observou uma maior complexidade já na entrada da solicitação, como por exemplo, informações específicas que necessitou de pesquisa ou orientação do hospital. Depois dessa etapa, através da ouvidoria municipal, obteve retorno e uma proposta de solução.
Esse relato ilustra os desafios enfrentados pelos usuários ao buscar o serviço de ouvidoria, destacando a importância da divulgação e efetividade deste instrumento. Problemas como falta de conhecimento sobre o instrumento e variação na assistência são identificados, sugerindo a necessidade de maior transparência e acesso às informações de saúde.
Limites observados ao usar ouvidorias
Os problemas observados nas ouvidorias da saúde pública incluem a falta de conhecimento por parte da população mais necessitada sobre o funcionamento e os benefícios desse instrumento. Isso pode resultar em subutilização da ouvidoria como canal de comunicação e participação cidadã, limitando seu potencial de promover melhorias nos serviços de saúde.
Outra questão identificada é a variação na qualidade e na quantidade de assistência prestada pelas diferentes ouvidorias. Isso sugere a necessidade de padronização e monitoramento dos serviços oferecidos por essas estruturas, garantindo que todas atuem de forma eficaz e equitativa.
Além disso, a forma como os gestores públicos encaram a transparência e a prestação de contas pode influenciar diretamente na qualidade da assistência prestada. Uma postura mais transparente e comprometida com a prestação de contas tende a resultar em uma gestão mais eficiente e em melhorias nos serviços de saúde, atendendo melhor às necessidades da população.
Por fim, a falta de transparência e a dificuldade para acessar informações pessoais relacionadas à saúde também foram identificadas como problemas. Garantir mais transparência e facilitar o acesso a essas informações pode contribuir para uma gestão mais eficiente e para uma maior confiança da população nos serviços de saúde públicos.
Caminhos para aprimorar o funcionamento de ouvidorias na saúde pública
Para melhorar o funcionamento das ouvidorias na saúde pública, é essencial abordar esses problemas, garantindo que haja uma ampla conscientização sobre a existência e o papel das ouvidorias, promovendo a uniformidade na qualidade dos serviços prestados, incentivando uma cultura de transparência e responsabilidade por parte dos gestores públicos e facilitando o acesso às informações de saúde pelos cidadãos. Essas medidas podem ajudar a fortalecer a confiança no sistema de saúde e aprimorar a qualidade dos serviços oferecidos.
Exemplos de ouvidorias
Para exemplificar, trazemos os seguintes exemplos de práticas promovidas pela prefeitura de Guarulhos e de Recife. Na Ouvidoria Itinerante da Prefeitura de Guarulhos, o objetivo foi realizar pesquisa de satisfação e registrar sugestões, queixas e elogios dos usuários do sistema único de saúde em relação ao atendimento prestado no município. Com os bons resultados, essa prática pode ser expandida para alcançar diferentes comunidades e áreas da cidade. Isso permite que os cidadãos tenham um melhor acesso aos serviços de ouvidoria, aumentando a participação e a eficácia do sistema.
A Prefeitura do Recife desenvolveu uma nova ferramenta, chamada Ouvidoria 4.0, através do uso de tecnologias para coletar feedback dos cidadãos de forma contínua e o cruzamento dos dados registrados em todos os canais de atendimento que a prefeitura possui atualmente. Através da análise de relatórios resultante desse levantamento, os gestores buscaram apoiar a sua tomada de decisão, trata-se de busca pela melhoria em sua governança, aprimorando os serviços oferecidos à população e fortalecendo a relação de confiança entre o poder público e a sociedade.
Conclusão
Concluímos que, numa análise abrangente das ouvidorias na saúde pública, há uma interseção complexa entre direitos, responsabilidades e eficácia administrativa. Desde sua consagração na Constituição de 1988 até a recente regulamentação e prática nos diversos níveis governamentais, as ouvidorias emergiram como um importante mecanismo para promover transparência, participação cidadã e accountability no setor de saúde.
No entanto, como retratado no decorrer do texto, existem desafios a serem superados. A busca por soluções inovadoras, como a ouvidoria itinerante e a aplicação de tecnologias na coleta de feedback, destaca a importância de adaptar e aprimorar continuamente esses instrumentos para atender às necessidades em evolução da população e promover uma governança mais eficaz e responsável. Em suma, as ouvidorias desempenham um papel fundamental na construção de uma gestão pública mais transparente, participativa e eficiente na área da saúde. A melhoria contínua desse instrumento é essencial para garantir que os cidadãos tenham voz ativa na defesa de seus direitos e na busca por uma saúde pública de qualidade.
*Texto elaborado por Jamyly Schmitz Schroeder, Jessica Peri e Yasmin de Nazare Silva do Carmo, estudantes de graduação em administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, no âmbito da disciplina sistemas de accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2024.
Referências
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