Accountability em Política Externa: reflexões sobre o equilíbrio entre transparência e sigilo no Itamaraty a partir da Lei de Acesso à Informação

Por José A. Fogolari*

A prática da política externa é relevante no cenário global, influenciando as relações entre nações, o desenvolvimento econômico, a segurança internacional e a promoção de valores e interesses nacionais socialmente construídos. 

Sua formulação, entretanto, apresenta uma complexidade amplificada em relação a outras políticas públicas, sobretudo em Estados democráticos, na medida em que as aspirações sociais domésticas influenciam a agenda internacional de seus governantes a fim de atender suas inclinações e objetivos particulares. 

Nesta dinâmica entre os níveis externo e interno, espera-se que a política externa deixe de ser percebida como isolada e pouco atenta às demandas sociais e passe a se caracterizar como política pública, pois sua prática acarreta impactos diretos para a população (PUTNAM, 1988), que tem assim o direito de buscar compreendê-la e influenciá-la.

No caso brasileiro, o tradicional isolamento, centralismo e distanciamento do Ministério das Relações Exteriores, MRE, para com a sociedade torna a agenda internacional brasileira menos porosa ao controle e à participação social. O insulamento da burocracia estatal perante a sociedade civil tende, de acordo com Abrucio e Loureiro (2004, p. 4), a afastar os temas do debate público e a potencializar relações não controláveis e espúrias. Assim, apesar da necessidade de sigilo em temas internacionais que a segurança do Estado exige, a falta de transparência dos atos públicos no âmbito da política externa pode resultar em decisões opacas, ineficientes ou mesmo prejudiciais aos interesses nacionais, além de comprometer a legitimidade do processo decisório e a confiança da sociedade no governo (MILANI; PINHEIRO, 2013). 

A partir da redemocratização, no final da década de 1980, sobretudo desde o início do século XXI, o Estado brasileiro vem adotando medidas para a garantia do princípio constitucional da publicidade. Com a promulgação da Lei 12.527 de 2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação, LAI, houve fortalecimento da  accountability, conceito que reúne em seu significado a transparência, o controle social, a responsividade e a responsabilização de agentes públicos. A LAI é uma das bases  para a transparência e a  participação democrática no país em diversas áreas. O Ministério das Relações Exteriores, entretanto, na gênese da construção da LAI, atuou pela manutenção das prerrogativas de sigilo até então vigentes e pelo retardamento da aprovação da nova legislação (RODRIGUES, 2020).

Ainda assim, apesar do histórico de isolamento e sigilo, o campo da política externa brasileira, PEB, tem se tornado tema frequente de estudos na área de políticas públicas. Com isso, esse campo é observado do ponto de vista da necessidade de responsabilização e da participação democrática. Aplicar o conceito de accountability para a compreensão da política externa enquanto política pública faz sentido do ponto de vista de um Estado democrático, em que a participação ativa da população é garantia constitucional. Para Milani e Pinheiro (2013, p. 33),

as práticas da política externa estão hoje mais próximas do cotidiano, […] as escolhas estão relacionadas a interesses diversos e muitas vezes dispersos, a política externa enfim não expressa um interesse nacional autoevidente, mas é resultado da competição, estamos por extensão trazendo para esse terreno a necessária discussão sobre a submissão da política externa aos controles e regras do regime democrático. 

Como enfatizam Albuquerque e Silva (2017), o estreitamento do diálogo entre o Itamaraty e a sociedade civil pode resultar na compreensão da política externa mais atrelada aos interesses sociais, legitimando, assim, uma atuação internacional mais responsiva e legítima. Ainda para o autor, a representatividade social no sistema político brasileiro leva “inevitavelmente a aumentar as pressões sobre o Itamaraty no sentido da criação de mecanismos efetivos e institucionalizados de diálogo direto com a sociedade civil” (2017, p. 26). Neste sentido, o controle social do Estado por parte dos cidadãos se manifesta como uma forma de accountability vertical compreendida para além dos períodos eleitorais, ocorrendo de maneira ininterrupta para a viabilização de uma participação social plural e abrangente no que diz respeito aos assuntos públicos (CENEVIVA, 2006). Essa abordagem mais ampla e continuada de controle pelos cidadãos, que pode envolver inclusive a colaboração com agentes estatais, corresponde a formas de accountability transversal, sistêmica, social ou relacional (HERNANDEZ et al., 2021; PAGANI, 2023).

No entanto, ainda que as demandas do período pós-redemocratização tenham conduzido a uma maior participação social nos processos políticos, a LAI assegura ao Estado brasileiro o controle sobre a publicidade ou sigilo de temas relativos à política externa. Tanto o Ministro de Estado, como os Chefes de Representações Diplomáticas e Consulares brasileiros ao redor do mundo gozam da prerrogativa de sigilo. A abrangência das exceções e a falta de uma definição mais precisa dos itens categorizados como sigilosos impele os governantes a promoverem uma atuação internacional calcada, em grande parte, nos próprios arranjos institucionais do insulado Ministério das Relações Exteriores, sem um franco e aberto diálogo com a sociedade civil. A construção da agenda de política externa e a forma pela qual ela é executada tendem a se manter, portanto, desfalcadas de uma compreensão mais efetiva de política pública em que os mecanismos de freios e contrapesos do controle público são exercidos. 

Diante disso, uma política externa que contemple em seus pressupostos a importância da accountability para sua formulação promove, como consequência, a incorporação de processos complexos e atrelados às demandas sociais pertinentes. Apesar da publicidade parcial e da recente atenção que a mídia tradicional vem oferecendo à política internacional, sobretudo em períodos eleitorais, tais fatos não permitem, com efeito, uma abertura democrática calcada no conceito de accountability no âmbito da política exterior brasileira. Pelo contrário, se em Estados democráticos a política externa deve ser compreendida enquanto política pública, “não deveria a PEB estar efetivamente submetida ao controle democrático da população – como em princípio ocorre ou deveria ocorrer com as demais políticas públicas?” (LOPES, 2008, p. 99). Ainda que o interesse em pesquisas nesta área tenha proliferado nas últimas décadas, tal discurso se demonstra incipiente e incompatível diante do tradicional conservadorismo e isolamento da diplomacia brasileira enquanto “guardiã do interesse nacional” (CERVO; BUENO, 2002). 

Para Milner (1997), a restrição da transparência pública acarreta na promoção de ineficiências estatais pois, apesar de garantir ao poder Executivo o privilégio e a vantagem da exclusividade das informações, tende a dispor de custos mais altos para a devida aceitação das propostas no âmbito do legislativo e da sociedade. Além disso, conforme argumenta Hill (2003), a pluralidade de atores domésticos com seus respectivos interesses em temas internacionais adiciona complexidade analítica aos tomadores de decisão. Neste sentido, o Estado se mantém fundamental quando, e na medida em que, interage com os segmentos sociais e apresenta “mecanismos formais de responsabilização e controle democrático que também deveriam recair sobre a política externa” (SPECIE, 2008, p. 29). 

Para fomentar  a abertura dos temas relativos à política externa aos processos democráticos e à participação pública, se faz necessário avaliar a atuação dos agentes políticos responsáveis pelo atendimento das demandas de acesso à informação solicitadas. Além disso, cabe definir critérios mais transparentes para o processo de classificação de informações em caráter de sigilo. A análise  evidencia, enfim, que a centralização, o insulamento e o tradicionalismo são limitações persistentes para o  acesso à informação pública e à accountability no Itamaraty.

*Texto elaborado por José A. Fogolari, estudante de graduação em administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, no âmbito da disciplina sistemas de accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2024.

Referências

ABRUCIO, F. L.; LOUREIRO, M. R. Finanças Públicas, democracia e accountability. In: ARVATE, P. R.; BIDERMAN, C. Economia do setor público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

CENEVIVA, R. Accountability: novos fatos e argumentos – uma revisão da literatura recente. Encontro de Administração Pública e Governança, São Paulo, 2006. 

CERVO, A. L.; BUENO, C. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Unb, 2002.

HERNANDEZ, A; SCHOMMER, P. C; DE VILCHEZ, D. C. Incidence of social accountability in local governance: the case of the network for fair, democratic and sustainable cities and territories in Latin America. Voluntas, Berlim, v. 32, n. 3, p. 650-662, 2021.

HILL, Cristopher. The changing politics of foreign policy. New York: Palgrave Macmillan, 2003.

LOPES, Dawisson Belém. A plausibilidade de uma gestão democrática da política externa: algumas hipóteses (insatisfatórias) sobre o caso brasileiro. Cena Internacional, v. 10, n.2, 2008.

MILANI, C. R. S.; PINHEIRO, P. Política Externa Brasileira: os desafios de sua caracterização como Política Pública. Contexto Internacional. Rio de Janeiro, v. 35, n. 1, jan./jun, 2013.

MILNER, H. V. Interests, Institutions and Information: domestic politics and International Relations. Princeton: Princeton University Press, 1997.

PAGANI, C. Aprendizagem em accountability na administração pública: uma perspectiva baseada nas práticas de controle sociopolítico em Santa Catarina. 2023. 344 f. Tese (Doutorado em Administração) – Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas. Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2023.

PUTNAN, R. D. Diplomacy and domestic politics: the logico f two-level games. International Organization, v. 42, n. 3, 1988.

RODRIGUES, K. F. A política nas políticas de acesso à informação brasileiras: trajetória e coalizões. Revista de Administração Pública FGV EBAPE, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, jan. fev., 2020.

SPECIE, Priscila. Política Externa e Democracia: Reflexões sobre o acesso à informação na política externa brasileira a partir da inserção da temática ambiental no caso dos pneus entre o Mercosul e a OMC. 2008. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008.