O fundo eleitoral, a democracia e os desafios da distribuição: uma análise sobre as dinâmicas internas dos partidos políticos no Brasil

Por Maicon Estevam, Josileia Alves e Guilherme Luiz Ramos*

O financiamento das campanhas eleitorais no Brasil tem passado por transformações nos últimos anos, especialmente após a proibição das doações empresariais em 2015 e a criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), popularmente conhecido como Fundo Eleitoral. Embora criado com o objetivo de fortalecer a democracia e promover equidade na disputa eleitoral, o fundo tem levantado debates sobre sua efetividade, sua distribuição entre os partidos e os critérios adotados por essas legendas para repassar os recursos a seus candidatos.

Neste texto, analisamos as dinâmicas internas dos partidos políticos brasileiros na administração e alocação do Fundo Eleitoral, buscando compreender como essas decisões afetam a representatividade, a competitividade eleitoral e, sobretudo, os próprios ideais democráticos que o fundo se propõe a proteger. O fio condutor da análise está justamente na tensão entre a promessa democrática do fundo e os desafios práticos de sua distribuição dentro dos partidos.

O preço da política: democracia custa, mas a quem ela serve?

A democracia tem um preço – e no Brasil, esse custo vem sendo cada vez mais bancado com dinheiro público. Desde a proibição das doações empresariais em 2015, o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), popularmente chamado de Fundo Eleitoral, passou a ser o principal mecanismo de custeio das campanhas políticas. Em tese, o fundo foi criado para promover maior igualdade de condições entre os candidatos, fortalecendo a transparência e a lisura do processo eleitoral.

No entanto, ao observarmos como esses recursos são distribuídos internamente pelos partidos, percebemos que a promessa de igualdade esbarra na realidade de estruturas partidárias opacas, hierarquizadas e dominadas por elites internas. O fundo, ao invés de nivelar o jogo democrático, tem sido utilizado como instrumento de concentração de poder dentro das legendas, privilegiando determinados candidatos enquanto marginaliza outros – mesmo entre aqueles que compartilham a mesma sigla.

Este texto analisa essa contradição a partir de um caso, o da distribuição do fundo eleitoral entre os candidatos à Câmara Municipal de Florianópolis nas eleições de 2024. Os dados, obtidos no portal oficial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre as candidaturas escancaram a disparidade interna na alocação de recursos e nos levam a refletir: a quem, de fato, serve o fundo eleitoral? À democracia ou à manutenção do poder por poucos?

A governança interna dos partidos e os desafios da distribuição do fundo eleitoral no Brasil

Criado pela Lei nº 13.487/2017, o fundo eleitoral surgiu como resposta à vedação das doações empresariais, sendo um mecanismo público de financiamento que visa promover lisura, transparência e equidade nas campanhas. Os recursos do fundo são distribuídos aos partidos com base em critérios objetivos: representação no Congresso, votos recebidos nas últimas eleições e a existência de candidaturas femininas e negras.

Contudo, uma vez repassado aos partidos, o uso desses recursos passa a ser definido internamente, muitas vezes sem regras claras, nem efetiva participação das bases partidárias. A ausência de mecanismos democráticos internos transforma a distribuição do fundo em uma questão de barganha política. Quem ocupa cargos estratégicos, muitas vezes, decide de forma unilateral quem merece mais ou menos apoio. Isso pode perpetuar estruturas hierárquicas e bloquear o surgimento de novas lideranças.

Além disso, não há exigência legal de prestação de contas detalhada sobre os critérios usados para a divisão interna, o que enfraquece o princípio da transparência e reduz a capacidade de fiscalização social.

Distribuição do fundo eleitoral em Florianópolis: números das desigualdades internas

Uma análise dos dados disponíveis no portal oficial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre o uso do Fundo Eleitoral em Florianópolis na eleição municipal de 2024 revela uma realidade preocupante. Embora o fundo tenha sido criado com o objetivo de garantir mais equidade e transparência nas campanhas, os dados mostram uma distribuição desigual entre os candidatos, muitas vezes sem critérios claros ou mecanismos democráticos internos. Essa lógica concentra recursos em nomes já consolidados dentro dos partidos, dificultando o acesso de novas lideranças ao processo eleitoral.

Diante disso, surge uma pergunta: será que o eleitor — cidadão e contribuinte que financia esse fundo com os impostos que paga — concorda com essa forma de distribuição? A expectativa de muitos é de que o recurso público seja utilizado de maneira justa, transparente e orientada pelo interesse coletivo. No entanto, a prática revela uma desconexão entre esse ideal democrático e o funcionamento interno dos partidos, o que acaba minando a confiança pública no sistema eleitoral e nos próprios partidos políticos.

A Tabela 1 apresenta a distribuição do Fundo Eleitoral entre candidatos de diferentes partidos que disputaram as eleições em Florianópolis no ano de 2024. Os dados revelam discrepâncias significativas na alocação dos recursos dentro dos próprios partidos. Enquanto algumas candidaturas receberam valores expressivos, outras, mesmo pertencentes à mesma legenda, contaram com valores muito inferiores ou sequer receberam qualquer verba. Essa seleção de partidos e candidatos — como PT, PL, PSD e PSOL — foi feita com base em dois critérios: primeiro, por serem casos emblemáticos de distribuição desigual; segundo, por incluírem casos que destoam do conjunto, como o do candidato Rafael de Lima (PSD), que foi eleito sem receber nenhum recurso do Fundo Eleitoral, evidenciando que a equidade no uso do fundo ainda é um desafio, mas também que há exceções que merecem destaque.

Tabela 1 – Distribuição do Fundo Eleitoral entre candidatos de Florianópolis (2024)

Nome do CandidatoPartidoValor Recebido do Fundo Eleitoral (R$)Foi Eleito?
Carla AyresPTR$ 169.690,56Sim (reeleita)
Professor JosemirPTR$ 7.469,07Não
Professor Paulo HortaPTR$ 7.469,07Não
Professor BrunoPTR$ 48.935,68Sim
Manu VieiraPLR$ 50.000,00Sim (reeleita)
GemadaPLR$ 50.000,00Sim (reeleito)
Pir FernandesPSDR$ 37.000,00Sim
Rafael de LimaPSDR$ 0,00Sim
Roberto KatumiPSDR$ 58.000,00Sim (reeleito)
AfranioPSOLR$ 141.175,21Sim (reeleito)
Ingrid Sateré-MawéPSOLR$ 101.000,00Sim
Tania RamosPSOLR$ 193.866,42Não
CamasãoPSOLR$ 88.000,00Eleito
Marcelo 7 CordasPSOLR$ 19.000,00Não

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral – DivulgaCandContas 2024. https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/SUL/SC/2045202024

No caso do PT, a candidata Carla Ayres recebeu quase 23 vezes mais que os candidatos Professor Josemir e Professor Paulo Horta. Ambos, mesmo com histórico político e militância, foram deixados à margem da distribuição de recursos, e não se elegeram. No PSOL, a candidata Tania Ramos recebeu mais de 10 vezes o valor recebido pelo candidato Marcelo 7 Cordas. Essa discrepância interfere na visibilidade, alcance de campanha e chances reais de eleição. Se não há critérios públicos e democráticos para a distribuição interna dos recursos, o fundo eleitoral passa a reproduzir uma dinâmica de “castas partidárias”.

A distribuição interna do fundo eleitoral como mecanismo de conservação de poder

Um dos pilares da democracia é a alternância de poder, sustentada por condições mínimas de igualdade entre os que desejam representar a população. Porém, quando o acesso aos recursos públicos de campanha – como o fundo eleitoral – se dá de maneira concentrada e arbitrária, forma-se um bloqueio quase invisível, mas eficiente: a estratificação horizontal da política partidária, que transcende o aspecto econômico.

Nesse modelo, não se trata apenas de ricos contra pobres, mas de quem pertence aos círculos de confiança do partido contra quem está à margem, mesmo que compartilhe das mesmas ideias ou pertença ao mesmo  grupo ideológico. O resultado é que os mesmos nomes, rostos e famílias se mantêm na linha de frente, ocupando sucessivamente os espaços de visibilidade, recursos e poder decisório.

É uma espécie de casta política moderna, na qual  as oportunidades não são necessariamente determinadas por mérito, representatividade ou compromisso público, mas por relações internas de prestígio e influência. Esse sistema cria barreiras para novos quadros e lideranças populares, que acabam funcionando como coadjuvantes simbólicos em campanhas com resultado previsível.

A estratificação horizontal se manifesta também na repetição das mesmas candidaturas com forte apoio financeiro dentro dos partidos, que mantêm o domínio sobre diretórios, estruturas de comunicação, lideranças comunitárias e conselhos estratégicos. Trata-se de um círculo fechado de reprodução de poder, muitas vezes blindado contra qualquer tentativa de renovação.

Com isso, a democracia se transforma em um ritual esvaziado, que mantém a aparência de pluralismo e disputa, mas a essência do processo – a competição justa e representativa – é corrompida. Essa distorção não apenas desestimula a participação de novos atores políticos, como mina a confiança da população no sistema representativo.

Esse mecanismo opera com o verniz da legalidade. A concentração dos recursos do fundo eleitoral, se não for combatida com regras de transparência, controle social e participação interna dos filiados, continuará legitimando um sistema que, na prática, contraria o espírito da democracia.

A fragilidade da democracia interna

A ideia de democracia interna nos partidos políticos é frequentemente invocada nos discursos oficiais, mas raramente praticada de maneira concreta. O sistema proporcional brasileiro, como bem observa Graça (2009), tende a diluir responsabilidades políticas e enfraquecer a conexão direta entre eleitores e eleitos. Esse fenômeno se repete de forma ainda mais opaca dentro das siglas partidárias, nas quais os processos de decisão interna, especialmente no que diz respeito à alocação de recursos do fundo eleitoral, são marcados por opacidade, favoritismo e concentração de poder.

O que se observa, na prática, é o funcionamento de estruturas verticais e centralizadoras, nas quais decisões cruciais — como quais candidaturas terão apoio financeiro significativo — são tomadas por pequenos grupos de dirigentes, sem consulta às bases e sem critérios públicos. A ausência de transparência transforma os partidos em arenas de competição desigual, nas quais a disputa real não ocorre entre ideias ou propostas, mas entre os que têm acesso aos centros de poder e os que não têm.

Essa desigualdade se amplia quando combinada com a lógica da comunicação política. Como alerta Graça (2009): 

Os meios de comunicação mais difundidos, como jornais, televisão e rádio, não se caracterizam pela pluralidade […] fazem chegar de forma massiva até o eleitor informações sobre política que estão longe de ser plurais.

O domínio do discurso político por parte dos mesmos grupos — tanto dentro dos partidos quanto nos meios de comunicação — produz uma ilusão de pluralidade. A diversidade aparente de candidatos não se traduz em diversidade real de chances, já que a visibilidade e os recursos estão concentrados em poucos nomes.

Essa simbiose entre concentração de financiamento e controle da narrativa pública cria um círculo vicioso: os mesmos atores recebem mais recursos, aparecem mais, são mais eleitos e, uma vez eleitos, passam a controlar novamente a distribuição futura de recursos. É a reprodução do poder sob a lógica da exclusão silenciosa, onde novas lideranças são sufocadas antes mesmo de emergirem, seja pela escassez de recursos ou pela ausência de visibilidade.

Nesse cenário, a democracia partidária se distancia de seu propósito original e se aproxima de um modelo gerencial corporativo, em que os partidos operam como “empresas eleitorais”, focadas na manutenção do capital político existente. A pluralidade vira performance; a disputa, teatro; e a democracia interna, um mito.

Frente a esse quadro, surgem iniciativas que buscam romper com a opacidade e promover maior transparência e participação nas estruturas partidárias. Um exemplo relevante é o Fórum pela Transparência e Democracia do Sistema Partidário Brasileiro, lançado em 2023 por organizações da sociedade civil como a Transparência Internacional – Brasil, com o objetivo de fomentar debates, produzir dados e pressionar por reformas que democratizem efetivamente os partidos políticos. A iniciativa aponta caminhos para que os partidos deixem de ser instrumentos de reprodução de elites e passem a funcionar como espaços abertos à diversidade, ao debate e à renovação democrática.

*Texto elaborado por Maicon Estevam, Josileia Alves e Guilherme Luiz Ramos, estudantes de graduação em administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2025.

Referências

BRASIL. Lei nº 13.487, de 6 de outubro de 2017. Altera as Leis nº 9.504/1997 e nº 9.096/1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br

GRAÇA, R. M. L. Democracia e comunicação política. São Paulo: Paulus, 2009.

Tribunal Superior Eleitoral, TSE. Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais. Disponível em: https://divulgacandcontas.tse.jus.br

Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 470 (Mensalão). Acompanhamento processual. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/relatoriomensalao.pdf

Superior Tribunal Federal, STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4650, de 2015. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=300015&ori=1