Maturidade de accountability em organizações públicas, é possível mensurar?

Ana Paula da Silva Oliveira*

A definição de accountability vem sendo tema de diversos estudos ao longo dos anos. José Antonio Pinho e Ana Rita Sacramento (2009, p. 1348) descrevem que “accountability encerra a responsabilidade, a obrigação e a responsabilização de quem ocupa um cargo em prestar contas segundo os parâmetros da lei, estando envolvida a possibilidade de ônus, o que seria a pena para o não cumprimento dessa diretiva.” Já em 1990, em estudo que inaugurou o debate sobre o tema no Brasil, Anna Maria Campos concluiu  que o grau de accountability é influenciado por dimensões do macroambiente, pelo desenvolvimento político da sociedade e por mecanismos de controles formais. 

Em estudo recente sobre o tema, a pesquisadora Camila Pagani (2022) destaca a abordagem relacional da accountability, que liga aqueles que detêm o dever de prestar contas com aqueles à quem ela é devida. Quando tratada de forma relacional, a accountability se aproxima das práticas colaborativas e da coprodução entre cidadão e governo, não mais focada na responsabilização do indivíduo através de prêmios e punições, mas sim no aprendizado através do diálogo e escuta.

Ao observar  diferentes abordagens sobre accountability, entendo que é possível avaliá-la sob duas perspectivas: técnica e política. Em caráter técnico, há uma relação formal entre os atores, na forma de instrumentos que mantém a relação de controle e responsabilidade. Já em caráter político, observamos maior proximidade com a dimensão relacional de accountability, que considera as relações não-instrumentais e a responsabilização subjetiva,  na qual o próprio servidor se vê como um prestador de serviço ao cidadão. 

Ambos os aspectos são inter-relacionados na prática de accountability, e embora sejam analisados individualmente para fins didáticos, não podem ser totalmente separados na realidade das organizações (Figura 1). As relações envolvem expectativas subjetivas e pode haver o desenvolvimento de mecanismos técnicos para respondê-las.

Figura 1 – Aspectos técnico e político de accountability

Fonte: elaborado pela autora (2024)

Como uma profissional de consultoria de gestão, ao iniciar o trabalho em uma organização, é realizado um diagnóstico dos aspectos formais que regulam e influenciam os processos e resultados que são entregues, através da identificação de pontos de controle, análise de dados, documentação e definição de indicadores. O entendimento do aspecto técnico é o primeiro contato, por ser mais tangível para análise, dado que é possível comparar o que existe na organização com a regulamentação vigente e compreender quais instrumentos ou mecanismos estão em concordância, e quais devem ser implementados ou melhorados.

Além disso, como o aspecto técnico é instrumentalizado, torna a organização mais passível de fiscalização frente aos sistemas de controle, o que leva a um processo contínuo de resposta a esses mecanismos burocráticos. Isso não significa que não há espaço para o aspecto político, ele acontece, porém é mais difícil de ser gerenciado devido à sua natureza subjetiva e relacional.  

Jonathan Koppel (2005) descreve em seu estudo a possibilidade de observar a  accountability em cinco dimensões: transparência, controlabilidade, imputabilidade, responsabilidade e responsividade, em cada uma delas havendo parâmetros  a serem considerados para que a organização seja entendida como accountable.

As dimensões de transparência e controlabilidade são, hoje, as mais objetivas, regulamentadas e passíveis de mensuração e acompanhamento de conformidade. Já as dimensões de responsabilidade e imputabilidade podem ter aspectos objetivos em relação à legalidade, porém são passíveis de aspectos subjetivos ao abordar valores dos sujeitos, em cada contexto cultural. Já a dimensão de responsividade é a mais ampla e com maior dificuldade de mensuração de forma objetiva.

Diante desse contexto, surge o questionamento que direciona este estudo “é possível medir a maturidade de accountability?”. Neste questionamento, buscou-se a reflexão sobre quais aspectos, mecanismos e instrumentos poderiam ser utilizados para mensurar o status de uma organização em relação às práticas de accountability.

Perspectivas de maturidade de Accountability

A produção de conhecimento para o setor público vem estruturando formas de analisar, monitorar e aprimorar o carácter técnico da accountability, na forma de instrumentos e mecanismos de acompanhamento e prestação de contas. Tais mecanismos são ligados principalmente à transparência e à controlabilidade.

Na dimensão de transparência, a Escala Brasil Transparente 360º, desenvolvida pela Controladoria-Geral da União, CGU, é um exemplo da aplicação do aspecto técnico. Esta escala propõe uma metodologia de avaliação da transparência para estados e municípios, através da aplicação de um checklist que avalia critérios de transparência passiva e transparência ativa, a partir da verificação se o critério foi atendido integralmente, parcialmente atendido ou não atendido. O formato de checklist facilita o entendimento e a validação dos critérios por parte das organizações, e torna a transparência mensurável através de entregas tangíveis, como a disponibilização de informações em site público, tempo de resposta, e acesso a dados de contratações.

Além disso, é possível verificar requisitos de monitoramento e transparência por meio da ISO 37301, que visa especificar requisitos para a implementação de um Sistema de Gestão de Compliance, contemplando critérios para a responsabilidade social, avaliação de performance e auditoria interna. Da mesma forma que a Escala Brasil Transparente 360º, essa metodologia reforça a análise técnica organizacional, focando em monitorar entregas tangíveis.

As escalas de análise possuem o objetivo de facilitar e padronizar a perspectiva sobre as organizações, tornando possível compará-las quanto à transparência, por exemplo.

Outro exemplo de análise de aspectos técnicos é a certificação IA-CM para o setor público, fornecida pelo Banco Mundial, que verifica a capacidade que a auditoria interna possui de controlar e garantir a sustentabilidade e institucionalização dos processos na organização. Essa escala classifica a capacidade de auditoria interna em 5 níveis, que vão desde o “inicial” até o “otimizado”. O instrumento de avaliação dessa certificação é um check-list que contém perguntas a serem respondidas, a partir de requisitos considerados essenciais em cada nível.

Esta última escala instrumentaliza todo o desenvolvimento da organização em relação à sua maturidade, definindo exatamente o que é esperado para estruturar cada um dos níveis na organização. Isso reforça a relativa facilidade de implementação dos mecanismos técnicos, dada a visualização objetiva do que deve ser realizado e a possibilidade de comparação com outras organizações, a fim, também, de institucionalizar bons exemplos do mercado.

Além disso, vem sendo desenvolvido o programa de integridade, pela CGU,  que define critérios para que dirigentes, servidores e demais colaboradores de um órgão atuem segundo os valores, princípios éticos e padrões, para cumprimento da missão dentro dos limites da eficiência e moralidade administrativa. Tal programa, apesar de apresentar requisitos técnicos, também contempla perspectiva subjetiva, ao abordar a ética e a moralidade de cada indivíduo. 

Tal comportamento pode ser observado na presença das ouvidorias em órgãos públicos, por exemplo, que atendem ao aspecto técnico de controlabilidade, mas que permitem a participação social de forma aberta e subjetiva ao registrarem o que desejam, pensam e necessitam da organização. Essa informação subjetiva pode se tornar objetiva através de métodos de análise para identificação de gargalos e geração de dados, que podem embasar uma tomada de decisão futura da instituição. 

Voltando ao dia a dia como consultora, é percebida a dificuldade que existe não somente na relação da organização com o externo, mas também com relação ao seu próprio público interno, seus servidores e colaboradores. A comunicação, responsabilização e transparência entre as áreas estratégicas, táticas e operacionais são dificultosas e as falhas podem gerar a sensação de desorganização e ineficiência ao cidadão. 

Portanto, ao analisar como a accountability é praticada e fiscalizada, percebe-se o quanto a instrumentalização facilita e estrutura os processos internos da organização, a fim de atingir novos patamares de comunicação com o meio externo. Mas, e quanto ao relacionamento entre as áreas internas da organização? E as influências relacionais e tomadas de decisão políticas? É possível considerar a contribuição interna para a avaliação de accountability na organização? 

Ocorre na gestão pública que a tomada de decisão seja adiada ou que siga estritamente o que é exigido burocraticamente. Há dificuldades em manter processos eficientes para o atendimento de instrumentos burocráticos, os quais são focados no cumprimento de solicitações de mecanismos de controle, o que dificulta que novas soluções sejam pensadas, discutidas e implementadas. Aqui, reitero que são muitas as dificuldades encontradas para que a responsabilidade subjetiva seja trabalhada dentro das organizações, de forma que os servidores percebam que todos fazem parte da entrega ao cidadão e que suas ideias podem e devem ser incorporadas às entregas que a organização faz ao meio externo.

Um primeiro passo para permitir que a responsabilidade subjetiva adentre a organização é identificar atores internos e externos e a relação que existe com cada um destes, identificando os tipos e níveis de controle exercidos, assim como quais são os instrumentos existentes na organização atualmente para entender e responder a cada um destes. Assim, é possível visualizar quais expectativas/diretrizes influenciam a tomada de decisão e o direcionamento da organização. Jonathan Koppel (2005) complementa que, além do entendimento de quais são as influências, é preciso delimitar o que é mais importante para a organização, a fim de evitar o que chama de “multiple accountabilities disorder”, situação em que a organização tenta responder a vários clientes e mecanismos, e por fim não consegue ser satisfatório a nenhum deles.

A prática da governança também pode ser uma ferramenta que busca envolver os atores ou partes interessadas, prover recursos e informação ao processo de tomada de decisão, buscando promover a geração de valor e a responsabilização por parte dos servidores (VIEIRA; BARRETO, 2019).

Além do atendimento às expectativas externas à organização,  é importante a prática de entendimento e resposta às expectativas dentro da própria organização, utilizando-se de elementos considerados estruturantes para a coprodução (ROCHA et al, 2021), relacionados a transparência (compartilhamento de objetivos e indicadores, por exemplo), informação (através da construção contínua de conhecimento), confiança (por meio de processos eficazes e respostas aos servidores) e participação (promovendo o diálogo interno). Se um colaborador não possui a clareza de quem está atendendo e o porquê desta relação existir, é provável que o “como” as expectativas estão sendo tratadas e atendidas não se mostrem conforme o esperado pelo usuário/cidadão. 

A disseminação do conhecimento dentro da instituição também permite o empoderamento de pessoas, que farão parte da construção dos elementos citados anteriormente, como explicitado por Rocha e coautores (2021). Ao não observar o ambiente interno, corre-se o risco de considerar somente as “necessidades” e não as “capacidades” da organização, o que pode levar a falsas expectativas e sobrecarga dos servidores.

Considerando os pontos discutidos, conclui-se que a maturidade de accountability em uma organização pública, para ser implementada e mensurada, deve utilizar-se de requisitos técnicos como nas escalas de transparência e controle, e também deve considerar a contribuição subjetiva que provém do ambiente interno, o que permite a implementação de soluções advindas de discussões com os executores dos processos e a maior proximidade da organização com o que é esperado pelo cidadão, visto que é possível trazer suas necessidades através de servidores que atuam “na ponta”, atendendo diretamente a população (Figura 2).

Figura 2 – Participação do servidor público no processo de coprodução

Fonte: Elaborado pela autora (2024)

Para fechar, pensando em cenários reais nos quais as instituições já estão estabelecidas e envolvidas em seus próprios ecossistemas, é entendido que já existem iniciativas relacionadas à mensuração de maturidade com o olhar externo, como o atendimento às diretrizes de transparência. Nesse contexto, a organização pode iniciar sua análise de maturidade com indicadores de esforço, ou seja, números absolutos ou taxas que evidenciem o índice de cumprimento de regulamentos ou o número de entregas relacionadas à atividade-fim da instituição. De modo mais amplo e continuado, pode se buscar promover uma cultura de transparência e responsabilização interna, o que inclui  a sensibilização dos servidores, colaboração e comunicação, a fim de desenvolver aspectos relacionais e promover indicadores de resultado à organização, considerando as expectativas do seu público externo que são diariamente atendidas através do público interno.

*Texto elaborado por Ana Paula da Silva Oliveira, no contexto da disciplina Accountability, Controle e Coprodução do Bem Público, do Mestrado Profissional em Administração da Udesc Esag, ministrada pelas professoras Paula Chies Schommer e Elaine Cristina de Oliveira Menezes, com participação das doutorandas Larice Steffen Peters e Loana de Moura Furlan, no primeiro semestre de 2024.

REFERÊNCIAS

CAMPOS, A. M. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português?. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 30-50, 1990. Disponível em: <https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/9049>. Acesso em: 19 maio 2024.

(CGU), Controladoria Geral da União. Escala Brasil Transparente 360º. Disponível em: <https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/transparencia-publica/escala-brasil-transparente>. Acesso em: 19 maio 2024.

(CGU), Controladoria Geral da União. Programa de Integridade da CGU. Disponível em: <https://www.gov.br/cgu/pt-br/acesso-a-informacao/governanca/programa-de-integridade-da-cgu>. Acesso em: 19 maio 2024.

(CONACI), Conselho Nacional de Controle Interno. IA-CM. Disponível em: <https://conaci.org.br/ia-cm/>. Acesso em: 19 maio 2024.

ETZIONI, Amitai. Concepções alternativas de accountability: o exemplo da gestão da saúde. In: HEIDEMANN, Francisco G. Políticas públicas e desenvolvimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009. p. 287-309.

KOPPELL, Jonathan GS. Pathologies of Accountability: ICANN and the Challenge of “Multiple Accountabilities Disorder”, Public Administration Review, Yale School of Management, v. 65, n. 1, jan-fev 2005. 

PAGANI, Camila. APRENDIZAGEM EM ACCOUNTABILITY NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UMA PERSPECTIVA BASEADA NAS PRÁTICAS DE CONTROLE SOCIOPOLÍTICO EM SANTA CATARINA. 2022. 344 p. Tese (Doutorado) – Curso de Programa de Pós-graduação em Administração, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2022. Disponível em:

<https://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/0000a4/0000a42d.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2024.

PINHO, José Antonio Gomes de e SACRAMENTO, Ana Rita Silva. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 43, n. 6, p. 1343-1368, nov-dez 2009. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rap/a/g3xgtqkwFJS93RSnHFTsPDN/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 19 maio 2024.

ROCHA, A. C.; SCHOMMER, P. C.; DEBETIR, E.; PINHEIRO, D. M. Elementos estruturantes para a realização da coprodução do bem público: uma visão integrativa. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, RJ, v. 19, n. 3, p. 538–551, 2021. DOI: 10.1590/1679-395120200110. Disponível em:

<https://periodicos.fgv.br/cadernosebape/article/view/83371>. Acesso em: 7 jul. 2024.