Por Amanda B. Nunes, Daniela Fernandes e Laís Lucas*
Certamente, você já se deparou com um problema público que lhe incomodou profundamente. Você pode ter passado por uma obra do munícipio que parece que nunca vai terminar com uma placa dos milhões investidos e ter se perguntado se o dinheiro seria aplicado corretamente. Você pode ter um parente que precisa de um cuidado específico que a saúde pública ainda não proporciona ou que não sabe como acessar. Você pode ter se irritado com notícias como o crescimento do desmatamento na Amazônia. É fato: todos já se incomodaram com algum problema público. Mas talvez nem todo mundo continue o raciocínio se perguntando: “O que posso fazer para ajudar?”
Se você olhar para o seu bairro, sua cidade e seu estado, encontrará diversas iniciativas da sociedade civil organizada de diferentes segmentos que, de pouco em pouco, conseguem contribuir para aliviar diferentes problemas públicos.
A emergência da sociedade civil organizada brasileira, segundo Leonardo Avritzer (2012), na década de 1970, é consequência de inúmeros fatores como a forma antissocial adotada pelo Estado autoritário e a falta de transparência nos processos políticos. Ademais, com a elaboração da Constituição de 1988, marco formal do processo de democratização, sua organização ganhou força a partir do restabelecimento de normas legais para o funcionamento da democracia. A partir dela, são adotados mecanismos para a descentralização do Estado, com a municipalização da gestão pública, atribuindo maior poder às cidades. A participação social também ganhou ênfase e importância na formulação e deliberação de políticas públicas em âmbito local, com a institucionalização da presença da sociedade civil organizada nesses processos.
Essa possibilidade e incentivo relativo à participação nas políticas públicas está relacionada à accountability em todos níveis de governo: municipal, estadual e federal. Mas o que é accountability? É um termo não habitual, mas que poderia estar em nosso cotidiano com mais frequência. Esse termo, de difícil tradução para o português, não apenas por uma questão linguística, também de cultura política e por ser multifacetado, é utilizado como “responsabilização” por atos e omissões dos agentes públicos, que por sua vez exige transparência e capacidade de controle do poder público pela sociedade.
O termo passou a ser mais utilizado, pois houve a necessidade de tornar a palavra accountability mais compreensível ao vocabulário e nas práticas políticas dos brasileiros e que reunisse as três ocorrências definidas por Anna Maria Campos (1990): a) organização dos cidadãos para exercer o controle político do governo; b) descentralização e transparência do aparato governamental; e c) substituição de valores tradicionais por valores sociais emergentes.
Apesar de hoje o termo já ser mais utilizado no país, percebe-se distanciamento entre seu significado e a política praticada no Brasil. Mesmo considerado como um país democrático, com uma Constituição baseada neste tipo de governo, no dia-a-dia, a participação popular ainda não é tão presente na gestão pública. Portanto, conforme observa Luis Felipe Miguel (2005), tem-se um governo do povo no qual o povo não está frequentemente presente nos processos de tomada de decisões e de fiscalização.
Por outro lado, há inúmeras organizações da sociedade civil que participam da defesa dos interesses da sociedade e de fiscalização do poder público. Essas organizações possibilitam manifestações do interesse público e de minorias, contribuindo com a democracia e constituindo um mecanismo de mobilização social. Por serem geralmente apartidárias e atuantes no longo prazo, não são afetadas por crises ou trocas do governo vigente. Isso permite com que a organização tenha voz mais ativa e direcionada a seus interesses, direcionadas a certas causas, nas tomadas de decisões da sociedade. Sendo assim, constata-se que elas exercem a accountability através de um senso de responsabilidade coletiva, com a finalidade de interação, colaboração e cobrança, gerando prestação de contas dos governantes aos governados e outros resultados positivos.
Partilhando da visão de que a accountability é um atributo da sociedade civil, Carla Giani da Costa, servidora pública de Santa Catarina há mais de 25 anos e administradora pública formada pela Udesc Esag, se voluntariou para atuar junto ao Observatório Social de Florianópolis. Assim, relata em vídeo que encontrou uma forma de auxiliar a sociedade com seu conhecimento técnico em gestão de compras públicas, a fim de traduzir a transparência para a sociedade civil. Para tanto, trabalhou na capacitação dos voluntários, nas frentes de transparência do município de Florianópolis e na capacitação de microempresários locais, para que os mesmos consigam participar de forma efetiva das compras municipais. Carla, ao atuar dentro da estrutura do governo e também como voluntária da organização, facilita a coprodução do controle da administração pública.
A administradora pública salienta que as compras públicas são um meio para atingir o bem público, sendo de extrema importância que o gestor público consiga entender os feedbacks da sociedade e transformá-los em uma accountability mais eficaz para todos. Além disso, as informações públicas, nesse caso, acerca de compras, devem ser entendíveis pelos cidadãos. Uma das grandes barreiras ainda existentes é que muitas informações publicizadas possuem termos técnicos ou de difícil entendimento. Siglas internas e normas regimentais são exemplos disso, pois quem nunca entrou no portal da transparência e desistiu, por não ter clareza do conteúdo disponibilizado?
Melissa Ribeiro, presidente da ACBG Brasil em Audiência no Senado Federal no processo de aprovação da laringe eletrônica no SUS. Fonte: ACBG Brasil, 2020.
Já Gabriel Marmentini, administrador público, mestre em administração, é fundador de duas organizações da sociedade civil importantes em âmbito nacional: a Associação de Câncer de Boca e Garganta (ACBG Brasil) e o Instituto Politize. O administrador público, relata em vídeo acreditar que, como parte da sociedade civil, tem o papel de controle social e de fiscalização dos agentes públicos, e suas organizações também precisam ser accountable, prestando contas em relação ao que fazem e aos resultados gerados para a sociedade. Salienta que não é apenas por questão de transparência e ética, mas porque é necessário que haja comunicação com a população, para ter uma comunicação de causas, com o objetivo de a sociedade valorizar e ajudar o terceiro setor, sendo uma relação mútua.
Para isso, as organizações devem cobrar respostas do poder público, mas também identificar quando essas respostas não são adequadas, propondo a formulação de novas políticas públicas. Um exemplo disso é a atuação da ACBG Brasil no advocacy, ou seja, na formulação de agenda para pautar novas políticas públicas e melhorar as que já existem, em interlocução com agentes públicos e instituições, se relacionando de uma forma aberta. Como exemplo desse tipo de atuação, a organização contribuiu para que fosse incluída na tabela do Sistema Único de Saúde (SUS) um dispositivo chamado laringe eletrônica, utilizado por pessoas que perderam a voz, para voltarem a falar.
Isso foi parte de um longo processo, em que a laringe eletrônica se tornou um direito dos pacientes através de uma Portaria do Ministério Público. No entanto, ela ainda não se reverteu no acesso ao direito. Agora é preciso que a ACBG, ou qualquer interessado, fiscalize o processo para ter conhecimento do que está acontecendo e possa exigir que esse direito seja implementado de fato com perguntas como “O que houve? Falta vontade? Falta dinheiro? Como podemos colaborar?”
Em todas as organizações da sociedade civil, como disse Gabriel, a accountability aparece de formas diferentes. Então, voltando à pergunta do início, tendo esses exemplos em mente: O que você pode fazer para ajudar? Quais causas ou organizações da sociedade civil você apoia ou gostaria de participar? Como você pode contribuir para aprimorar o sistema de accountability brasileiro?
*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Amanda Büttenbender Nunes, Daniela da Silva Fernandes e Laís Lucas, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.
REFERÊNCIAS
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