Por Virgilio Scheithauer e Mateus Callado *
A temática de accountability da força policial é relativamente nova no Brasil. A realização da accountability, que se refere à responsabilização por atos e omissões e ao controle sobre o poder, depende de um conjunto de valores, instrumentos e processos de gestão.
No que se refere às polícias, esse conjunto inclui a elaboração de leis, que passam por debates e votações no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. Contempla, também, os regulamentos das próprias corporações, considerando que a força policial no Brasil é composta pela Polícia Federal, Polícia Legislativa Federal, Polícias estaduais – militar e civil e, em alguns municípios, as guardas municipais.
Esse conjunto que compõe a força policial brasileira concentra poder. Em contextos democráticos, o poder está sujeito à accountability, em suas várias dimensões, como transparência, responsabilidade, controlabilidade, imputabilidade (ou responsabilização por atos e omissões) e responsividade (KOPPELL, 2005). Esta entendida como capacidade de resposta às expectativas dos cidadãos (HEIDEMANN, 2009).
Os meios pelos quais as corporações podem promover accountability incluem a divulgação de dados, informações e relatórios, por diversos meios, e respostas às demandas de informações específicas por qualquer interessado de acordo com a Lei de Acesso à Informação (LAI). Entre os dados que se espera estejam disponíveis estão informações financeiras, administrativas e contábeis, dados relativos à ocorrência de crimes, como furtos, roubos e mortes violentas (intencionais ou não), incluindo mortes ou lesões seguidas de morte causadas por policiais, mortes de jovens e mortes de policiais, além de outros dados e explicações sobre a ação das polícias frente a essas ocorrências, seja na prevenção, na investigação ou na detenção.
Uma tendência verificada nos últimos anos entre algumas polícias é o uso de filmagens em bodycameras (câmeras fixas junto ao corpo, durante a ação policial), que servem como ferramenta para as investigações, podendo ter impacto sobre as condutas dos policiais. Segundo uma pesquisa realizada pela National Criminal Justice Reference Service (NCJRS) com policiais em Las Vegas, foi concluído que os policiais utilizando câmeras corporais geraram um menor número de reclamações e mostraram mais eficiência.
De acordo com a vereadora Maryanne Mattos, Guarda Municipal há 17 anos, que atuou como comandante da corporação e como Secretária de Segurança Pública de Florianópolis, algumas ferramentas de accountability policial, como o uso de câmeras corporais, através da transparência, proporcionam segurança com relação à imagem dos agentes policiais que fazem seu trabalho corretamente. “A transparência na segurança pública também significa segurança para o agente da segurança pública”, já que o mesmo não fica à mercê das diversas percepções ou achismos relacionados a alguma ocorrência ou atitude do policial.
“A transparência na segurança pública também significa segurança para o agente da segurança pública”
Maryanne Mattos (2021)
Ela também aponta a necessidade de adequação das ferramentas já utilizadas com as tecnologias à disposição, para que sejam mais eficientes e transparentes. Durante sua trajetória como Secretária de Segurança Pública, a vereadora presenciou o quão arcaicas são muitas das ferramentas à disposição dos agentes policiais. A Guarda Municipal, por exemplo, ao fazer suas autuações na fiscalização de trânsito, utiliza anotações em papel, enquanto outras entidades fiscalizadoras utilizam talonário eletrônico, o que tende a tornar o registro de dados e o encaminhamento dos processos mais célere e confiável.
A falta de interesse na temática da transparência por parte dos gestores públicos e, por vezes, de setores dentro das forças policiais, também tende a atrasar a melhoria dos processos. Muitas vezes, não são reconhecidas ou priorizadas essas demandas por ferramentas operacionais mais transparentes em certo órgão, comprometendo sua eficiência ao longo dos anos.
Esse cenário de atraso no uso de ferramentas que gerem transparência, celeridade e confiança é negativo para as forças policiais. Muitas vezes, o caminho é uma certa improvisação, com os recursos que se tem à mão. Buscando obter uma percepção mais positiva por parte da população, evitar possíveis reclamações ou denúncias ao Ministério Público, ou posicionamento incorreto pela mídia, muitos policiais tomaram a iniciativa de fazer registros em vídeos de suas ocorrências e ações, principalmente em situações de tensão, como manifestações ou protestos na rua. Apesar de ser uma boa forma de preservar a integridade dos agentes, como é feita de forma pessoal (utilizando até de celular, como foi relatado pela vereadora), a iniciativa exige do agente policial encarregado pela filmagem mais do que sua função estabelecida, o que pode dificultar seu trabalho.
A falta de transparência e de políticas mais claras de accountability contribuem para uma percepção negativa da força policial brasileira por parte da população. Como se trata de um país com altos índices de criminalidade e ao mesmo tempo de violência e corrupção policial, as narrativas e pressões sociais geradas em meio a isso são de certa forma imaturas e vão no sentido contrário da transparência como caminho para construção de confiança e bom desempenho.
Muitas das pressões populares sobre o legislativo, geradas a partir dessa mentalidade, reforçam o atraso que vivemos em relação à temática. Atualmente, pode-se supor que ainda não há uma demanda popular significativa por accountability policial. A população de forma geral tende a focar expectativas a respeito do quão ostensivas querem suas polícias, o que pode variar conforme o contexto local e fatores como classe social e criminalidade da região, por exemplo.
Os impulsos por polícias mais ostensivas vem crescendo no país, como consequência da criminalidade, o que acaba por ajudar a perpetuar, de forma indireta, certos tipos de conduta inadequada por parte dos agentes. Para contrapor esse risco, um dos caminhos cruciais é o treinamento das forças policiais, buscando uma mudança cultural na corporação e agentes, bem como condições para uma atuação mais efetiva.
Outros caminhos são projetos que aproximam policiais e comunidade, o incentivo à participação, a promoção de debate e controle social por meio dos conselhos de segurança pública, diálogo mais aberto e frutífero dos órgãos de segurança com a imprensa, e articulação constante entre as forças policiais e pesquisadores e organizações da sociedade civil dedicados a aprimorar a segurança pública no Brasil. Entre as organizações que vêm se destacando nessa área no Brasil, estão o Instituto Igarapé, Instituto Sou da Paz, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a empresa social Viva Rio, como também a Justiça Global.
A aprendizagem e a troca de experiências com polícias de outros países já mais familiarizados com o conceito de accountability também podem contribuir para uma evolução nessa temática. No caso dos Estados Unidos, há exemplos de iniciativas para promover transparência através da participação popular e ferramentas para investigação e controle. Entre elas: o uso de banco de dados com diversas questões relacionadas à conduta policial, uso de câmeras corporais (citado anteriormente), órgãos do governo responsáveis por informar a população das ferramentas ao seu dispor, plataformas municipais para denunciar condutas inadequadas, entre outras.
Enfim, há um longo caminho para que a polícia e a sociedade consigam entrar em harmonia e colaborar entre si para enfrentar os desafios do país na segurança pública. Cabe também avançar nos mecanismos legais e na adoção de práticas validadas em polícias internacionais, as quais favoreçam e venham a premiar as práticas de accountability policial no Brasil. Tudo isso tende a contribuir para melhorar a relação de confiança entre sociedade e os órgãos a quem cabe proteger o cidadão, independentemente de cor, credo e status social.
* Texto elaborado pelos acadêmicos Virgilio Scheithauer e Mateus Callado, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.
REFERÊNCIAS:
ADORNO, Luís. Após semestre de violência policial, SP demite 37% mais PMs que em todo o ano. UOL, 26/08/2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/26/apos-semestre-de-violencia-policial-sp-demite-37-mais-pms-que-em-todo-ano.htm
BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm
CUBAS, Viviane de Oliveira. ‘Accountability’ e seus diferentes aspectos no controle da atividade policial no Brasil. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 3 (8): 75-99, 2010. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7171/5750
HEIDEMANN, Francisco G. Ética de responsabilidade: sensibilidade e correspondência a promessas e expectativas contratadas. In: HEIDEMANN, Francisco G. Heidemann e SALM, José F. (Org.). Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise (pp. 301-309). Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2009.
KOPPELL, J.G.S. Pathologies of accountability: ICANN and the challenge of “Multiple Accountabilities Disorder”. Public Administration Review. 65 (1): 94-108, 2005.
POLÍCIA FEDERAL. Demonstrações Contábeis e notas explicativas, 2019. Disponível em:
http://www.pf.gov.br/institucional/acessoainformacao/auditorias/prestacao-de-contas/prestacao-contas-2019/prestacao_contas_2019.pdf/view
SANTA CATARINA. Portal da transparência do poder executivo de Santa Catarina e a remuneração dos servidores. Dados atualizados em 2021. Disponível em:
http://www.transparencia.sc.gov.br/remuneracao-servidores
UGEIRM Sindicato, proposta de Lei da Transparência na Segurança Pública é apresentada na Assembleia em agosto de 2018. Disponível em: https://ugeirmsindicato.com.br/proposta-de-lei-da-transparencia-na-seguranca-publica-e-apresentada-na-assembleia/
USA, Congressional Research Service, CRS. Policy accountability measures, 11 jun 2020. Disponível em: https://crsreports.congress.gov/product/pdf/IF/IF11572
Para saber mais sobre o tema:
Policiamento comunitário e a participação cidadã na prevenção da violência
Jovem detido por filmar abordagem policial
Atuação da PM é questionada pela sociedade e estudiosos
Governo exclui dados sobre violência policial de relatório
Estudo sobre violência policial