Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABIs) como indutores da cultura da transparência nas organizações públicas

Por Flávio Facha Gaspar e Vinicius Fernandes Sousa Pereira*

Todo o processo de transformação implica em tensões, mudanças de interesses, deslocamento do centro de poder e decisão. Um espaço no qual podemos observar esses elementos na área da educação é o das Instituições de Ensino Superior (IES). 

Nesta breve reflexão, buscamos analisar como os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABIs) podem se constituir como indutores na criação da cultura por transparência, produção, aperfeiçoamento e tratamento de dados sobre as populações afrodescendentes, quilombolas, indígenas e ribeirinha no ensino superior. 

Para isso, abordamos um pouco da história dos NEABIs e apresentamos a abordagem da accountability social e sua relação com esses Núcleos, enquanto produtores de conhecimento e demandantes de informações, bem como sua influência e participação na formulação de políticas públicas e na vigilância e controle social. Finalmente, analisamos em que medida os NEABIs poderiam ser considerados como indutores na criação da cultura da transparência nas IES.

Os Núcleos de Estudos Afro-brasileiro e Indígenas (NEABIs)

A história dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) teve início em 1959, desde sempre vinculados às IES no Brasil. O pioneiro foi o Centro de Estudo Afro-Orientais (CEAO), criado em 1959, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). No ano 2000, houve a criação da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), e o primeiro Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as (COPENE).

Os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) mais tarde passaram a ser chamados de Núcleos de Estudos Afro-brasileiro e Indígenas (NEABIs), com o acréscimo da letra I de Indígenas. Os NEABIs “são núcleos que produzem conhecimentos no âmbito do Ensino, da Pesquisa e da Extensão sobre África, diáspora africana, afro-brasileiros e indígenas, além de manterem diálogos permanentes com Black Studies das Américas, África e outros continentes” (NEABI – UNIPAMPA, 2010).

Em algumas universidades públicas, privadas e regionais, a nomenclatura NEAB permanece, porque, dependendo da região, estado e município, cada instituição tem a sua particularidade. No entanto, os núcleos provêm do mesmo movimento de organizações. Portanto, NEAB ou NEABI, ambas possuem no seu bojo a produção de conhecimento sobre as populações africanas, afrodescendentes, indígenas, quilombolas e ribeirinhas. 

Atualmente, existem em torno de 191 NEABIs, Núcleos de diversidades e outros correlatos, que têm em seu horizonte o trabalho para diminuição das desigualdades raciais e étnica em todo o Brasil (NEAB/UDESC, 2018). 

Os NEABIs são relevantes articuladores e impulsionadores para implementação das Leis Federais 10.639/2003 e 11.645/2008, que versam sobre as culturas Africanas e afro-brasileiras e indígenas no Ensino Brasileiro em escolas públicas e privadas. 

Podemos observar diversos pilares de atuação em diferentes setores, mas em prol de um objetivo comum. A exemplo do NEAB/UDESC e o Coletivo Negro Guerreiro Ramos (CNGR/Esag), que demandam dados sobre estudantes afro-brasileiros, indígenas e pardos, pois esses dados não estão disponíveis para acesso. A obtenção desse tipo de dado é fundamental para a realização e o aprimoramento da gestão e das políticas públicas referentes ao tema. 

Ademais, buscam fomentar discussões sobre o assunto no âmbito universitário, visto que muitas vezes a própria universidade não toma à frente das discussões e acaba por delegar essa função aos NEABIs. Já em outras universidades, como é o caso da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), existe uma pró-reitoria da diversidade com foco na abordagem destes assuntos, demonstrando a relevância que a instituição atribui a essas agendas.

Accountability social e a atuação dos NEABIs

O conceito de accountability social está ligado à forma pela qual o estado se relaciona com a sociedade. Dentro desta abordagem, existem várias maneiras e ferramentas do modo como se operacionaliza, através de controle, mobilização social etc. A accountability social busca contribuir para, a partir dos cidadãos que demandam e colaboram com os agentes públicos, tornar os governos mais responsivos diante das demandas da sociedade (PERUZZOTTI e SMULOVITZ, 2006).

Como produtores de estudos e conhecimento, os NEABIs têm produzido já há algum tempo sobre variadas temáticas como: a saúde da população negra no Brasil, a inserção de indígenas no mercado de trabalho a título de exemplo. Essas produções contribuem para os debates mais qualificados e ajudam na formulação de políticas públicas, tecnicamente embasados e mais assertivas. 

Enquanto um ator que demanda informações, estão vinculados, por exemplo, aos pedidos de informações detalhadas nas IES sobre quantidade de pessoas negras/pardas e indígenas nas universidades e como está sendo a passagem desses sujeitos na academia com o fito de entender melhor o seu processo formativo. 

Como um ator com participação ativa, estamos querendo dizer que os NEABIs participam na formulação de leis, normativas e políticas públicas. 

Enquanto uma instituição de controle social e vigilância, os NEABIs contribuem, por exemplo, em situações em que há fraudes no sistema de cotas nas IES.

Ao observarmos os NEABIs e sua atuação na arena dos IES, e tendo em conta a abordagem da accountability social, podemos concluir que os NEABIs se constituem como atores relevantes nas mudanças de paradigmas no ensino superior brasileiro. 

A atuação desses Núcleos pode induzir a maneira como as Pró-reitorias e outras instâncias nas universidades públicas e privadas lidam com a questão do ensino da história e cultura Africana e Afro-brasileira, a implementação de políticas de ações afirmativas e diversidade. Os NEABIs também produzem conhecimento sobre esses sujeitos e sua inserção na faculdade. 

Os NEABIs têm o poder para se articular com núcleos em todas as partes do país com o intuito de troca de experiência e conhecimento baseados na forma de atuação única de cada unidade e sua importância para a sociedade universitária.  

Desta feita, finalizamos dizendo que a accountability social, enquanto base analítica, contribuiria para o entendimento e aprofundamento dos NEABIs como um ator primacial na democratização do ensino no Brasil.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de Administração Pública Flávio Facha Gaspar e Vinicius Fernandes Sousa Pereira, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências 

Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA. Link: https://sites.unipampa.edu.br/adafi/neabis/historia-dos-neabs/. Acesso em 27/11/2022.

Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/proec/neab. Acesso em 25/11/2022.

Associação Brasileira de Pesquisadores/as  Negros/as – ABPN. Disponível em: https://abpn.org.br/conneabs-2/ . Acesso em 24/11/2022.

Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB/UDESC. Disponível em: https://www.udesc.br/neab/biblioteca . Acesso em 23/11/2022. 

PERUZZOTTI, Enrique;  ENRIQUE, Catalina. Social Accountability: An Introduction.  University of Pittsburgh Press,  Pennsylvania – USA,  2006. 

Coletivo Negro Guerreiro Ramos – CNGR. Localizada na Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc /Esag.

Quando o sigilo de uma informação pode favorecer o interesse público: uma reflexão a partir do exemplo da Universidade Federal de Santa Catarina

Por Aurilédia Batista Teixeira e  Eduarda Lichtenfels*

A Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011,  conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI), estabeleceu um marco regulatório no Brasil que propulsionou as instituições públicas a terem mais transparência na divulgação das informações produzidas e dos fatos associados a suas atividades e a seu desempenho. A LAI tem como objetivo fortalecer a transparência e a legitimidade dos atos da administração pública, democratizando o acesso à informação. 

Uma questão que surge é como conciliar a necessidade de acesso à informação com a necessidade de evitar  favorecer o interesse privado ou gerar especulações com base em informações tornadas públicas? Neste estudo, busca-se refletir sobre tal questionamento, a partir da experiência de  implantação da LAI em um órgão público, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que possui o maior orçamento federal entre as organizações públicas que atuam no estado de Santa Catarina

Como base para a análise,  além da pesquisa de referenciais sobre transparência, acesso à informação e accountability e busca de documentos, foi realizada uma entrevista semiestruturada com o ex-chefe de gabinete da UFSC, que atuou entre os anos de 2012-2016 e que foi designado para fazer a implementação da LAI na Universidade. Este é  um “recorte” de um contexto mais amplo relativo às atividades da UFSC, que já passou por diversas gestões desde o início da vigência da LAI.

De acordo com o professor entrevistado, no início da implementação da LAI, que era uma novidade e teve tempo relativamente curto, pois a lei foi aprovada em 18 de novembro de 2011 e passou a vigorar em 16 de maio de 2012, os órgãos públicos e servidores envolvidos não sabiam bem como fazer, pois estavam aprendendo. O relatório de auditoria anual das contas da UFSC de 2012, elaborado pela Controladoria Geral da União (CGU), apontava 227 recomendações sobre inconformidades da UFSC em relação à legislação vigente, entre elas a não implementação de dispositivos legais, como os da LAI. 

Dessa forma, em 2014, a UFSC instalou uma comissão consultiva para estabelecer os critérios e a metodologia para a implementação da LAI. Na primeira etapa, foi feita uma consulta digital à comunidade universitária (docentes e coordenadores de laboratórios) sobre quais documentos (banco de dados ou pesquisa), eles gostariam que fossem classificados e com qual grau de sigilo. Isso porque, quando os documentos não são classificados com algum grau de sigilo, qualquer pessoa pode ter acesso, o que pode ocasionar alguma  vulnerabilidade para o interesse público.

De acordo com o artigo 24 da LAI, os documentos em posse do Poder Público podem ter acesso restrito a depender do grau de sigilo: reservado (5 anos), secreto (15 anos) ou ultrassecreto (25 anos). Dentro da Universidade, o(a) Reitor(a) possui delegação de competência para classificar os documentos em secretos e os Diretores de Centro e Pró-Reitores em classificar documentos em reservados. Já o ato de  classificar os documentos como ultrassecreto, segundo a LAI, não está na competência dos gestores das universidades.

Segundo o professor entrevistado, mais de 1800 solicitações para classificar os documentos como sigilosos foram realizadas naquela primeira consulta feita à comunidade universitária. De acordo com os parâmetros estabelecidos pela comissão consultiva e baseado na LAI, do total das 1800 solicitações, somente 869 documentos foram classificados: sendo 3 como secretos e 866 como reservados. Importante dizer que essa comissão consultiva foi instituída para auxiliar no processo de classificação dos documentos e não possuía a competência de classificá-los efetivamente, assegurando apenas ao dirigente fazer essa classificação. 

De acordo com o professor entrevistado, já no ano de 2021, a UFSC não possuía nenhum documento classificado como secreto ou reservado, o que pode representar  certa vulnerabilidade para a Instituição, em alguns casos. Por exemplo: um estudo sobre a viabilidade de construir um novo Campi da UFSC em determinada área. Se o público  tiver acesso a essa informação previamente, pode-se contribuir para a especulação imobiliária na área de estudo e favorecer certos grupos privados. Outro exemplo de vulnerabilidade, dado pelo professor, foi em relação ao uso de peças anatômicas (cadáveres) nas aulas. É importante a não divulgação da identidade dessas peças anatômicas, para proteger familiares e em respeito à preservação da dignidade do indivíduo.

O professor deixa claro que a transparência das informações públicas é importante, e que aqui ele está relatando a importância de também proteger o interesse público em detrimento do interesse privado. Ressaltando que a transparência é importante pois visa legitimar as ações da administração pública, fazendo com que a sociedade faça parte e sinta interesse em participar dos rumos que a gestão pública está tomando, divulgando todos os atos que vêm realizando. A transparência é um dos princípios basilares  a ser seguido por um gestor público.

A LAI é, portanto, uma ferramenta fundamental para o fortalecimento da accountability nas ações do poder público. Ela auxilia na diminuição da burocracia ao acesso às informações públicas e aumenta a transparência por meio da disponibilização das informações produzidas administrativamente nas instituições públicas. Por outro lado, também protege o interesse público em detrimento do interesse privado. E, sabe-se que as universidades públicas brasileiras, nesse caso a UFSC, são as maiores produtoras de inovação e conhecimento. Por isso a necessidade do cuidado e da mensuração do sigilo das informações.

Destaca-se que a UFSC, com iniciativas como a do seu Observatório, lançado em novembro de 2021 e ligado à Secretaria de Inovação (Sinova), estimula a transparência das informações. No portal, é possível analisar dados e informações sobre pesquisa, extensão, inovação e indicadores de orçamento e planejamento. Há, também, gráficos e mapas que auxiliam o usuário a compreender as informações.

Atualmente, com 11 anos da implantação da LAI, Cruz (2022) afirma que apesar dos avanços tecnológicos no Brasil, existe uma grande dificuldade de unir a agenda de digitalização à de abertura de dados de interesse público. Isso devido, principalmente, ao atual governo federal, que nos últimos anos não tem investido  na produção de dados e descredibilizado  institutos de pesquisa, dificultando assim a divulgação de dados e informações de boa qualidade. 

A LAI normatiza que terão acesso restrito e pelo prazo máximo de 100 anos, documentos relativos a informações íntimas pessoais, vida privada, honra e imagem. Porém, a LAI determina que esse tipo de restrição não poderá ser usado com “intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância” (BRASIL, 2011, n.p.). 

Ao analisar documentos classificados com 100 anos de sigilo pelo governo federal, temos: informações dos crachás de acesso ao Palácio do Planalto em nome dos filhos do presidente Jair Bolsoanro, documentos relacionados ao caso das “rachadinhas” em que está envolvido o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, cartão de vacinação do presidente, e aos procedimentos administrativos dos agentes envolvidos na morte de Genivaldo de Jesus Santos, e processos contra o diretor da Polícia Rodoviária Federal, Silvinei Vasques (FAGUNDES; BEHNKE, 2022; FAGUNDES; ANGELO, 2022). 

Portanto, verifica-se que o sigilo das informações pode tanto proteger o interesse público, como no exemplo da não divulgação da identidade das peças anatômicas que se encontram na UFSC, quanto aviltar o interesse público, como no caso do presidente Jair Bolsonaro, que  decretou sigilo de 100 anos sobre diversos assuntos, como o próprio cartão de vacinação. 

Nos próximos anos, no Brasil, medidas serão necessárias para que as entidades públicas caminhem em direção ao alinhamento da transparência e do controle social dos atos públicos. “O governo federal precisa retomar seu protagonismo em políticas de acesso à informação pública. Há capacidade instalada na administração e a reversão de sigilos é tecnicamente possível e perfeitamente executável“(ANGÉLICO, 2022, n.p.). Angélico (2022), em artigo publicado no site Poder 360, apresenta três linhas estratégicas que o novo governo federal eleito poderá utilizar para reverter sigilos do governo atual, sem a necessidade de alteração da legislação vigente. Vale a pena a leitura!

*Texto elaborado pelas acadêmicas de Administração Pública Aurilédia Batista Teixeira e Eduarda Lichtenfels, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências

ANGÉLICO, Fabiano. Lula precisa de 3 frentes para reverter sigilos de Bolsonaro.O PODER360, 295 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/lula-precisa-de-3-frentes-para-reverter-sigilos-de-bolsonaro/. Acesso em: 05 dez. 2022.

BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em: 25 out. 2022.

CRUZ, Isabela. Lei de Acesso, 10 anos: uma ampla estrutura ainda mal utilizada. Nexo Jornal, 16 de maio de 2022. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/05/14/Lei-de-Acesso-10-anos-uma-ampla-estrutura-ainda-mal-utilizada. Acesso em: 02 nov. 2022.

FAGUNDES, Murilo; ANGELO, Tiago. Processos contra diretor da PRF estão sob sigilo de 100 anos. O PODER360, 04 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/processos-contra-diretor-da-prf-estao-sob-sigilo-de-100-anos/. Acesso em: 05 nov. 2022.

FAGUNDES, Murilo; BEHNKE, Emilly. Como funcionam os sigilos de 100 anos impostos por Bolsonaro. O PODER360, 03 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/como-funcionam-os-sigilos-de-100-anos-impostos-por-bolsonaro/. Acesso em: 02 nov. 2022.

UFSC. Observatório UFSC lança painel sobre perfil discente da pós-graduação. 23 fev. 2022. Disponível em: <https://noticias.ufsc.br/tags/observatorio-ufsc/>. Acesso em: 04 nov. 2022.

Divulgacand na prestação de contas em candidaturas: entrevista sobre as experiências no contexto eleitoral

Por Ana Gabriela Back Turnes e Vinícius Augusto de Oliveira Souto

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, no seu artigo 37, Parágrafo 1, estabelece a publicidade dos atos da gestão como um dos princípios da Administração Pública. A publicidade está ligada a temas como transparência, acesso à informação, controle social e participação cidadã, entre outros temas da chamada accountability. As práticas e estudos em accountability, um princípio essencial das democracias, vem para complementar e desenvolver o artigo 37. 

Dar publicidade implica não apenas informar, também justificar atos e omissões e ser responsabilizado por isso. Ou seja, vai além da prestação de contas, envolve o controle social, no qual a sociedade demanda que a administração pública preste contas de suas atividades e as publicize, para que a sociedade possa monitorar o que está sendo desenvolvido. O controle social é também um mecanismo de participação popular, ultrapassando os períodos eleitorais e tornando-se um instrumento de fiscalização dos atos políticos e administrativos durante os mandatos, representando a responsabilidade política e objetiva de pessoas e organizações.

Para além dos princípios constitucionais, das regras intertemporais e dos mecanismos de controle durante o mandato, o principal componente da accountability democrática é a realização periódica de eleições livres e justas. É por meio do voto que a população expressa sua satisfação ou descontentamento em relação aos atos e omissões dos governantes em cargos executivos e seus representantes no parlamento. No Brasil, é comum que os votos sejam definidos mais pelas características pessoais dos candidatos do que pela preferência partidária. 

Através do Sistema de Divulgação de Candidaturas e de Prestação de Contas Eleitorais(Divulgacand) do Tribunal Superior Eleitoral, é possível verificar diversas informações dos candidatos, como por exemplo: planos de governos, valores recebidos e suas origens, as despesas de campanha, lista de doadores, formação, ocupação, redes sociais oficiais. 

O votocast é um podcast concebido e realizado por Ana Gabriela Back Turnes e Vinícius Augusto de Oliveira Souto, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountabilty, do curso de administração pública da Udesc Esag, ministrada em 2022 pela professora Paula Chies Schommer.

A entrevistada é Caroline Dourado – Mestranda em Educação, Políticas Públicas e Equidade na Universidade de Glasgow  Chevening Scholar. Além disso, é Especialista em Gestão Pública pelo INSPER e em Educação Transformativa pela PUCRS. Formada em Administração de Empresas pela UFRGS. Fellow ProLíder 2021 e participante do programa Columbia Women’s Leadership Network in Brazil 2022.

Na conversa com Vinícius, Carolina expõe um pouco da sua experiência na área, as aprendizagens e os desafios enfrentados durante o processo eleitoral, em particular na prestação de contas. Confira clicando aqui ou na imagem:

Abertura de dados em compras e contratações públicas como um processo tecnopolítico e ontológico

Texto elaborado por Paula Chies Schommer, Fabiano Maury Raupp, José Francisco Salm Jr., Florencia Guerzovich, Rodrigo de Souza Pereira e Victória Moura de Araújo

Publicado em 20 de setembro de 2022 no Blog Gestão, Política & Sociedade do Estadão

Texto completo em: Abertura de dados em compras e contratações públicas como um processo tecnopolítico e ontológico (estadao.com.br)

Computação em nuvem na Administração Pública

Por Julia Santana Vicente*

A ascensão das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) vem contribuindo para a modernização do aparelho estatal e a inovação no setor público. A gestão pública passa a valorizar mais a utilização de dados para tomada de decisões. Observando casos de sucesso e aprendendo com os erros e limites, torna-se um consenso que a implementação eficaz dessas tecnologias pode proporcionar mais agilidade na entrega dos dados e dos serviços, prezando pela cautela na segurança da informação.

A forma mais usual adotada para aplicação das TICs nos órgãos públicos, sobretudo em prefeituras, se refere à contratação de empresas fabricantes de plataformas digitais com soluções direcionadas a cada nicho, que trabalham principalmente com o modelo SaaS – Software as a Service. Um exemplo desse modelo é o  da plataforma de streaming Netflix, , em que mediante o pagamento mensal de uma assinatura, o contratante aluga o serviço do software e o utiliza durante o período pago. Essa assinatura, que tem no cerne de seus custos a utilização sob demanda, costuma dar direito ao fornecimento de uma base por um provedor de serviço em nuvem, ou seja, o sistema fica alojado de forma remota e pode ser acessado por meio da internet.  A figura ilustra um ambiente de computação em nuvem:

Figura – Ilustração do ambiente de computação em nuvem

Fonte: SOUSA; MOREIRA; MACÊDO; MACHADO (2009)

O Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST) dos Estados Unidos classifica a computação em nuvem como um modelo que viabiliza o acesso oportuno e sob demanda a um pacote compartilhável de recursos computacionais configuráveis (redes, servidores, áreas para armazenagem, aplicativos, serviços) que podem ser rapidamente provisionados e liberados com um esforço mínimo de gestão ou de interação com o provedor dos serviços.

Os possíveis ganhos para a administração  pública na adoção dessa tecnologia envolvem:

  • Retirada do papel, ferramenta que pode  ser adulterada e perdida, como meio oficial de documentação e comunicação;
  • O órgão público passa a ter ferramenta própria institucionalizada para armazenamento de arquivos digitais;
  • Economia de materiais de papelaria, reduzindo em parte a dependência do almoxarifado e podendo ainda reutilizar para outros fins os espaços físicos até então ocupados com armazenamento desses materiais, caso seja feita a transferência dos dados de documentos físicos para a plataforma digital; 
  • Maior segurança da informação, tendo o histórico da criação de documentos com rastreabilidade de datas e usuários responsáveis, promovendo mais recursos de controle efetivos;
  • Baixo custo, haja vista que normalmente a precificação da tecnologia é sob utilização, além da infraestrutura de TI ser reduzida por não haver mais a necessidade de grandes datacenters, ao poder acessar as aplicações por meio da internet;
  • Mais velocidade no recebimento e envio das informações, aumentando a produtividade do órgão e proporcionando  agilidade na entrega de serviços aos cidadãos;
  • Falhas e quedas nos sistemas tornam-se raras;
  • Mobilidade, ao permitir a flexibilidade de acessar as plataformas por dispositivos móveis como notebooks e smartphones;
  • Facilidade de implementação de solução e ciclo de inovação mais rápido.

É claro que a contratação de um produto que permeia a inovação exige ainda mais cuidado do que as licitações de produtos corriqueiros.

O Acórdão nº 1.739/2015 do Tribunal de Contas da União (TCU) apresenta um relatório de levantamento dos riscos relevantes em contratação de serviços de Tecnologia da Informação sob o modelo de computação em nuvem. Os possíveis erros que podem ser cometidos pelos órgãos públicos estão em torno: do equivocado planejamento estratégico e orçamentário para adoção da tecnologia, de acessos indevidos que firam a confidencialidade e integridade dos dados, da frágil gestão da política de recursos humanos com relação à resistência dos servidores na transição do processo físico para o digital, da ineficiente execução e gestão contratual, da falha transferência de dados para a nova plataforma, da inobservância de legislações inerentes ao cotidiano público, da insegurança com as interfaces de programação (APIs), das atualizações e correções, da dependência excessiva do provedor.

Caso o órgão chegue à conclusão de que a computação em nuvem é uma alternativa positiva para o seu ofício, o Instituto Brasileiro de Governança Pública (IBGC) propõe algumas precauções factíveis que podem ser tomadas desde a construção do edital do certame licitatório para evitar esses riscos. Algumas delas, segundo Costa (2022), são: o planejamento prévio com pesquisas e estudos comparativos de casos de contratações de outros órgãos, a definição das responsabilidades do provedor e do contratante com constante monitoramento, a oficialização da instauração da comunidade eletrônica por meio de decreto que preveja regras e sanções cabíveis para os usuários no processo, o treinamento e sensibilização dos servidores para adoção do novo formato, a previsão de conformidade com as legislações vigentes pertinentes aos serviços prestados com atenção especial à Lei Geral de Proteção de Dados, o estabelecimento de mecanismos de segurança na portabilidade da infraestrutura de rede e dados, o controle de logs de auditoria, uma taxa mínima de disponibilidade – em geral nunca abaixo de 99,7%, a proposição de política de atualizações e correções necessárias, cláusulas para eventual ruptura contratual e o direito ao backup da base.  

Contudo, para Breno Costa (2022), auditor do TCU:

No contexto de prover serviços perenes à sociedade, se vê que a nuvem já foi criada com virtualização, com a capacidade de registrar um segundo de processamento, uma facilidade muito maior de rastreabilidade, de saber as ações que cada pessoa fez ou atribuir capacidades específicas a diferentes usuários, com melhor gestão da infraestrutura do que em um datacenter.

Isso mostra que, desde que sejam feitos esforços para a promoção de ações que mitiguem os riscos, os benefícios da implantação da ferramenta compensam o investimento. Por isso, é importante que os gestores públicos se mantenham a par das tendências das tecnologias emergentes e contem com  apoio para implantar  recursos que possam auxiliar no aprimoramento dos serviços públicos.

*Texto elaborado por Julia Santana Vicente, graduada em Administração Pública pelo Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas da Universidade do Estado de Santa Catarina, Esag Udesc, em 2022. 

Coprodução na destinação de resíduos sólidos: o caso da primeira Escola Lixo Zero do Brasil

Por Bruna Teixeira Adriano*

A Escola de Ensino Básico Aldo Câmara da Silva, localizada no município de São José, Santa Catarina, conquistou no ano de 2019 o título de primeira escola Lixo Zero do Brasil. O conceito Lixo Zero consiste em estabelecer uma meta ética, econômica, eficiente e visionária para a redução de resíduos recicláveis e orgânicos por meio da mudança de hábitos e modos de vida dos envolvidos, de forma a incentivar ciclos mais sustentáveis. São pilares do conceito lixo zero os R’s: repensar, reutilizar; reduzir; reciclar (ILZB, 2022).

O tema dos resíduos sólidos entrou em pauta na Escola Aldo Câmara da Silva por meio da aula de português da turma do nono ano, quando a professora Fabiana Nogueira Caetano Mina propôs o assunto para trabalhar o gênero textual artigo de opinião, e tomou maiores proporções após a palestra proferida pelo presidente do Instituto Lixo Zero no Brasil, Rodrigo Sabatine. Era mês de maio e, nesta ocasião, Rodrigo lançou o desafio para a Escola reduzir 90% da produção de lixo até setembro do mesmo ano.

A professora Fabiana e os alunos aceitaram o desafio e foi dado início à transformação. A primeira ação foi a reunião organizada pelos próprios alunos para apresentar ao corpo docente a ideia desenvolvida nos seminários. Neste momento, inverteram-se os papéis, pois ali os alunos tinham muito a contribuir com o conhecimento adquirido após muitas pesquisas, além de poder expressar seu entusiasmo e inspiração. O projeto ultrapassou, portanto, as aulas de português e passou a ser o Projeto da Escola.

A próxima ação para o alcance da ousada meta foi conhecer o tamanho do desafio. Foi realizada a pesagem do lixo produzido pela Escola (Imagem 1). Os alunos, professores e servidores reuniram-se no pátio para descobrir que fora produzido no período de uma semana o total de 139 quilos e 400 gramas de lixo. Alguns sacos foram abertos, o que possibilitou a todos conhecerem a dimensão do problema e o estado do lixo após alguns dias em decomposição. A tomada de consciência de que aquilo era resíduo e que estava sendo enviado para aterro sanitário, enterrado e que ainda pagamos caro por isso, segundo os relatos retratados no documentário Geofilmes (2019), foi impactante.

Imagem 1 – Fotos do dia da pesagem do lixo

Fonte: Instagram Aldocamaradasilva, 2019.

Na sequência, foram criadas caixas de separação de resíduos e realizada uma intensa disseminação e construção de conhecimento. Nesta fase, constatou-se que a maior geração de resíduos era de orgânico, o que fez com que fosse necessário pensar em alternativas de compostagem. A professora de ciências Daniela Lemos Polla, com o envolvimento inicialmente dos alunos do sexto ano, orientou a criação e manutenção das composteiras.

Em julho, houve um grande desafio. A Escola iria promover a primeira festa junina com o propósito do lixo zero (Imagem 2). Foi priorizada a conscientização e orientação durante toda a festa. Orientação visual (cartazes) e oral (chamadas durantes as apresentações) foram utilizadas.  

Imagem 2 – Fotos do dia da festa junina

Fonte: Instagram Aldocamaradasilva, 2019.

A comunidade escolar comprovou estar comprometida com o propósito e o objetivo de uma festa lixo zero foi atingido. A partir de então, o Projeto foi ganhando maiores proporções, apareceu na mídia e foi apresentado pela professora Fabiana e alunos em um evento em Portugal. Em dezembro de 2019, a escola comemorou o reconhecimento de ser uma Escola Lixo Zero. Foram desviados dos aterros sanitários nesse ano, 94% dos resíduos produzidos. No ano de 2021, o percentual foi para 96%.

O que aprendemos sobre coprodução com a primeira escola lixo zero do Brasil?

O conceito de coprodução, proposto pela economista Elinor Ostrom e colegas pesquisadores, refere-se ao envolvimento dos cidadãos na produção de serviços, em conjunto com especialistas ou provedores regulares, públicos ou privados. A coprodução visa atender as necessidades coletivas no âmbito local, reduzindo custos governamentais e valorizando as capacidades dos cidadãos (SCHOMMER; TAVARES, 2017). A destinação de resíduos sólidos dada pela EEB Aldo Câmara da Silva analisada à luz desse conceito reflete como aprendizado principal que a coprodução é possível. Não que seja fácil, mas com engajamento e determinação, coproduzir para atingir o objetivo de ser um espaço lixo zero é possível.

A coprodução requer um amplo envolvimento e o fato de que nem sempre todas as pessoas estão no mesmo nível de engajamento é um desafio. Esta foi a maior dificuldade relatada pelos participantes do projeto. Houve muita resistência de servidores e professores. Foi preciso adaptações no processo, tentativas, avaliações e remodelagens. Os alunos, que estão mais abertos à aprendizagem, tendem a adaptar-se melhor a novas práticas. Para os professores e servidores, mudar hábitos cultivados há muitos anos, não foi uma tarefa fácil. A escola teve que passar por um processo de adaptação que requereu determinação e paciência de todos os envolvidos.

Os resultados no processo de coprodução nem sempre são imediatos e claramente perceptíveis. No caso estudado, as mudanças foram sendo percebidas ao longo do tempo. Aos poucos as latas de lixo não exauriam mais o mau cheiro, a equipe de limpeza começou a perceber uma redução do trabalho na organização das salas de aula e áreas comuns da escola. Foi percebido que dos resíduos era possível gerar valor econômico e social. O material separado e doado para associações de catadores virou oportunidade de renda e trabalho.

A coprodução entre alunos, servidores, professores e toda a comunidade escolar foi além de resultados estruturais, possibilitou transformação de hábitos, mudando a cultura e ultrapassando os limites da escola. Como relatado pela diretora Marciléia Izabel Pereira, antes do projeto a escola tinha constantes problemas de depredações, necessidade de pintura, lavação de carteiras e paredes, o que aumentava os gastos com material de limpeza, o tempo de trabalho das serventes e desgastes administrativos para atender a estes reparos. Após o projeto, os alunos reconheceram a escola como o seu lugar, assim como é a sua casa, o que refletiu em cuidado e zelo para com a escola.

A sensação de pertencimento, de autonomia, o desenvolvimento de habilidades como de articulação, de engajamento, de integração e de interação é algo difícil de mensurar, mas que foi sentido por todos da escola. Para a professora Fabiana, a principal contribuição do projeto, e que podemos levar para a reflexão da coprodução do bem público, é o despertar em cada um do senso coletivo. É reconhecer que cuidar de uma pequena parte é cuidar de toda parte.  É ajudar o sujeito a reconhecer seu lugar e seu papel na sociedade.

* Texto elaborado por Bruna Teixeira, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências:

GEOFILMES. A revolução começa aqui – A 1ª Escola Lixo Zero do Brasil – documentário completo. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v8__t451bSc&t=2728s

ILZB – Instituto Lixo Zero. Conceito Lixo Zero. Disponível em: https://ilzb.org/conceito-lixo-zero/

SCHOMMER, P. C.; TAVARES, A. O. Gestão Social e Coprodução de Serviços Públicos. Curso gestão social / concepção e coordenação geral, Cliff Villar; organizadores de conteúdo; João Martins de Oliveira Neto e Jeová Torres Silva Júnior. – Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha/UANE/BID/STDS-Ce, 2017. 288.