A falta de dados sobre aborto no Brasil e suas consequências

Por Gabriela Pacheco, Henrique Hang e Nicole Souza*

No cenário brasileiro atual, crescem os problemas sociais nos âmbitos de saúde, educação, segurança pública, assistência social, dentre outros. Um dos temas enfrentados, ou não enfrentados, pelo país é a questão da prática abortiva e a ausência de uma regulamentação e assistência física e psicológica para as mulheres que recorrem a essa prática. Sabe-se que é necessário um aparato legal e de políticas públicas que assegurem e deem diretrizes sobre a questão do aborto. Entretanto, para que isso se consolide, ainda enfrentamos obstáculos, dentre eles a falta de dados específicos a respeito do tema, o que dificulta o processo de entender e prestar serviços de saúde pública adequados às mulheres que recorrem ao aborto.

A questão do aborto é complexa. Além de uma questão moral ou ética, é um tema de saúde pública, por tratar de casos de gravidez indesejada, de casos de violência sexual ou de saúde do nascituro, além de outras condicionantes. A problemática inicia-se com a criminalização da prática, condição esta que induz a um julgamento às mulheres e dificulta a elaboração de legislação e políticas públicas adequadas sobre o tema. Além disso, o debate político é esvaziado, preso a moralismos e a fatores religiosos, indo contra a inserção do tema do aborto na pauta de agenda política. Segundo Barroso e Andrade (2020, p. 246), “O aborto/abortamento é a interrupção intencional ou não do processo de gestação, podendo ser classificado como espontâneo ou provocado (involuntário ou voluntário)”. O aborto voluntário é tipificado como crime, tratado nos artigos 124 a 128 do Código Penal, com exceção de algumas situações, quando este não é punível, sendo elas: quando houver risco à vida da gestante; quando a gravidez resultar de estupro; e no caso de fetos anencefálos, desde 2012.

Cabe ressaltar que o Código Penal brasileiro se apresenta como um documento conservador, considerando a época de sua elaboração, 1940, logo, seu conteúdo condiz com os costumes sociais daquele momento (BARROSO; ANDRADE, 2020). Com o advento da Constituição de 1988, ficou claro que é dever do Estado brasileiro garantir a saúde como direito de todos os cidadãos, o que muitas vezes não é assegurado quando se trata de mulheres que recorrem ao aborto.

Apesar de a legislação brasileira ser restritiva e criminalizante, a prática clandestina do aborto ocorre em nosso país em escala alarmante, o que coloca em risco a vida de milhares de mulheres, sobretudo nos extratos da população de renda mais baixa, configurando-se, como a quarta causa de morte materna no Brasil (MENDONÇA, 2022). Mesmo com os avanços científicos capazes de proporcionar um abortamento seguro para as mulheres, os abortos inseguros continuam a ocorrer, causando mortes maternas.

No caso de mulheres vítimas de violência sexual, a política pública brasileira assegura sua assistência e a possibilidade de interrupção da gravidez. Entretanto, há um distanciamento entre o que é previsto pelas políticas públicas de saúde e a realidade do funcionamento dos serviços de aborto legal no país (MADEIRO; DINIZ, 2015). Para que as mulheres tenham acesso ao aborto legal, é necessário a diligência do Estado e uma articulação entre os diversos órgãos públicos para sua realização; como também, capacitação e preparo da equipe profissional, para que esta preste a assistência necessária e respeite as escolhas reprodutivas das mulheres; além de uma avaliação continuada para a consolidação dos serviços de forma eficaz e segura. Porém, essa agenda de articulação, eficácia e segurança de abortos já permitidos em lei tem sido marcada por retrocessos nos últimos anos.

O governo do atual presidente Jair Bolsonaro foi marcado por uma vertente conservadora e por ideais políticos de extrema-direita. Nunca foi prioridade do governo discutir e implementar políticas públicas sobre a questão do aborto, mas sim, reafirmar pautas conservadoras com um apelo aos supostos valores tradicionais cristãos. Isso nos mostra o quanto o Brasil retrocedeu não só sobre esse tema, mas sobre muitos outros relacionados aos direitos fundamentais de minorias.

Um reflexo disto é que o projeto de lei 478/2007, que cria o Estatuto do Nascituro, voltou a ser pauta recente na Comissão dos Direitos da Mulher, da Câmara dos Deputados. O Estatuto é trazido à tona desde 2007 pela bancada conservadora, formada em grande parte por parlamentares bolsonaristas. Caso tal legislação entrasse em vigor, o aborto seria dificultado e penalizado em todos os casos, inclusive aqueles previstos por lei, propondo direito inviolável à vida, transformando a prática abortiva em crime hediondo. Seria um grande retrocesso e mais um ato de violência contra as mulheres.

Além disso, fica evidente a falta de interesse por parte do poder público em discutir ou entender a realidade acerca do tema, visto que, infelizmente, segundo Madeiro e Diniz (2015), não existem dados consolidados sobre a qualificação e a composição das equipes de saúde que atendem casos de aborto; sobre o número de abortos realizados pelos serviços de saúde; tampouco disposição de informações claras e facilitadas às mulheres sobre o tema.

A ausência de dados abrangentes e confiáveis sobre o assunto deve-se a que, dadas as restrições legais ao aborto provocado no Brasil, a pesquisa acerca dele é dificultada. Os dados a que se tem acesso são, em sua maioria, resultados de pesquisas ou levantamentos feitos em hospitais (OSIS et al., 1996). No caso das causas de mortalidade materna, os dados e as informações são obtidos através do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), no qual os dados provenientes das Declarações de Óbito (DO) são processados. Porém, a avaliação da mortalidade materna, por meio dos dados disponíveis no SIM, enfrenta problemas de subdiagnóstico, principalmente entre os óbitos maternos por aborto, nos quais a dificuldade de classificação é ainda maior (CARDOSO; VIEIRA; SARACENI; 2020). A análise do SIM mostrou que, entre 2006 e 2015, foram registrados no Brasil 770 óbitos com causa básica aborto, além de 220 óbitos que têm o aborto como uma das causas mencionadas. Entre estes, há alguns que poderiam ter considerado o aborto como causa básica, mas não foram, como no caso de infecção puerperal, trazendo um problema relacionado à subnotificação (CARDOSO; VIEIRA; SARACENI; 2020).

É de conhecimento geral que a prática do aborto é realizada no país, mesmo sendo criminalizada. Sabe-se que as mulheres que optam por essa prática irão realizá-la independente da legislação vigente. Quando incluímos nesse panorama fatores como raça e classe social, vemos que o procedimento leva a um maior número de mortes de mulheres negras e de baixa renda, que já não são amparadas pelo Estado, tendo em vista o cenário de desigualdades sociais presente em nosso país. Além disso, muitas não possuem renda suficiente para exames ou médicos particulares, aumentando a insegurança dos procedimentos.

No que diz respeito ao acompanhamento dos dados por parte do poder público e da sociedade, não há, nos sistemas de informação de saúde brasileiro, qualquer dado sobre aborto inseguro. As bases de dados oficiais de saúde não permitem ter uma estimativa do número de abortos que ocorrem no país, apenas encontramos dados relativos aos óbitos por aborto, e estes sofrem com a subnotificação. Prejudicando, assim, devido à falta de dados, a compreensão sobre a real dimensão do problema, o que por amplia a falta de transparência e incorre na impossibilidade ou fragilidade de participação social frente ao Estado. Vemos então que, devido à inexistência de dados oficiais, subnotificação e criminalização do aborto, tornam-se impraticáveis posturas, ações e debates orientados por princípios de accountability, comprometendo o avanço acerca do tema no país.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Gabriela Pacheco, Henrique Hang e Nicole Souza, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências

BARROSO, Ana Beatriz de Mendonça; ANDRADE, Mariana Dionísio de (org.). “NÃO É POSSÍVEL ACESSAR ESSE SITE”: O DIREITO DE ACESSO AO CONTEÚDO PODE SER RELATIVIZADO NO CASO DE SITES COM INFORMAÇÕES SOBRE ABORTO? In: FERRARO, Angelo Viglianisi; HARTMANN, Gabriel Henrique; PIAIA, Thami Covatti. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, PROTEÇÃO DE DADOS E CIDADANIA. Cruz Alta: Editora Ilustração, 2020. Cap. 13. p. 237-257. Disponível em: https://bdjur.tjce.jus.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/251/Cap%c3%adtulo%20de%20livro_Bia%20Mendon%c3%a7a%20e%20Mariana%20Andrade%20%2811%29.pdf?sequence=1&isAllowed=y.  Acesso em: 22 nov. 2022.

CARDOSO, Bruno Baptista; VIEIRA, Fernanda Morena dos Santos Barbeiro; SARACENI, Valeria. Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?. Cadernos de Saúde Pública, [S.L.], v. 36, n. 1, p. 1-13, 21 fev. 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/01002-311×00188718. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/8vBCLC5xDY9yhTx5qHk5RrL/?format=pdf&lang=pt.  Acesso em: 20 nov. 2022.

MADEIRO, Alberto Pereira; DINIZ, Debora. Serviços de aborto legal no Brasil: ⠳ um estudo nacional. Ciência & Saúde Coletiva, Teresina, v. 21, n. 2, p. 563-572, fev. 2016. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015212.10352015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/L6XSyzXN7n4FgSmLPpvcJfB/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 21 nov. 2022.

MENDONÇA, Beatriz Pereira de. O TRATAMENTO DADO AO ABORTO NO BRASIL. 2022. 52 f. TCC (Graduação) – Curso de Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/25333/BEATRIZ%20PEREIRA%20DE%20MENDON%c3%87A.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 20 nov. 2022.

OSIS, Maria José D.; HARDY, Ellen; FAðNDES, Anibal; RODRIGUES, Telma. Dificuldades para obter informações da população de mulheres sobre aborto ilegal. Revista de Saúde Pública, Campinas, v. 30, n. 5, p. 444-451, 3 abr. 1996. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0034-89101996000500007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/4BnK3L64Qjfc4YqdwFN6QyG/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 20 nov. 2022.

PACAGNELLA, Rodolfo de Carvalho. Novamente a questão do aborto no Brasil: ventos de mudança?. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 01-04, jan. 2013. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0100-72032013000100001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbgo/a/bdZVGdnGdvVfHXsMyXzrxzK/?lang=pt. Acesso em: 19 nov. 2022.

Dados abertos em compras e contratações públicas: desafios da contratação aberta no Brasil

Por Caroline Castro, Hellen De Paula Aparício e Mariana Rocha*

A temática dos dados abertos está em voga e desperta o interesse de pesquisadores, gestores públicos, organizações da sociedade civil, órgãos de controle e da sociedade que promove o controle social sobre as ações do governo.  De acordo com o Art. 4º IV da Lei do Governo Digital, o conceito de dados abertos pode ser definido, como:

“IV – dados abertos: dados acessíveis ao público, representados em meio digital, estruturados em formato aberto, processáveis por máquina, referenciados na internet e disponibilizados sob licença aberta que permita sua livre utilização, consumo ou tratamento por qualquer pessoa, física ou jurídica” (Brasil, Lei Federal nº 14.129, de 2021).

O governo federal brasileiro publica seus dados por meio do Portal Brasileiro de Dados Abertos (dados.gov.br), canal para conhecimento e controle de todos os atos públicos.  De acordo com a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP- Elaboração de Plano de Dados Abertos), o portal de dados abertos se diferencia dos portais de transparência, pois estes têm o objetivo principal de aumentar o controle sobre as despesas e receitas do governo, enquanto o portal dados.gov.br tem o objetivo de ser o ponto referencial para a busca e o acesso a dados públicos brasileiros de todo e qualquer assunto ou categoria. 

No portal dados.gov, é possível encontrar dados sobre as seguintes categorias: agricultura, extrativismo e pesca; ciência, informação e comunicação; comércio, serviços e turismo; conjuntos de dados em destaque; cultura, lazer e esporte; defesa e segurança; economia e finanças; educação; equipamentos públicos; geografia; governo e política; habitação; saneamento e urbanismo; indústria, justiça e legislação; meio ambiente; plano plurianual; relações internacionais; saúde; trabalho; transportes e trânsito.

De acordo com o relatório produzido pelo Open Data Barometer (Report – From promise to progress | Open Data Barometer) em 2018, o Brasil era o 14º colocado entre 30 países no quesito dados abertos. O conjunto de dados em que menos pontuou são os seguintes: “Os dados legíveis por máquina e reutilizáveis ​​estão disponíveis como um todo?”; “Os dados são licenciados abertamente?”; “Foi fácil encontrar informações sobre esse conjunto de dados?” e “Os identificadores de dados são fornecidos para elementos-chave no conjunto de dados?”. Em contrapartida, os conjuntos em que mais pontuou foram: “Os dados existem?”; “Está disponível on-line pelo governo de alguma forma?”; “O conjunto de dados é fornecido em formatos legíveis por máquina e reutilizáveis?” e “O conjunto de dados está disponível gratuitamente?”.

Em 2007, um grupo de trabalho do Open Government Data (Dados Abertos — Português (Brasil)) reuniu-se na Califórnia, Estados Unidos da América, para definir os princípios dos Dados Abertos Governamentais, sendo eles os seguintes 8 princípios:

  1. Completos: Todos os dados públicos estão disponíveis. Dados públicos são dados que não estão sujeitos a limitações válidas de privacidade, segurança ou controle de acesso.
  2. Primários. Os dados são apresentados tais como os coletados na fonte, com o maior nível possível de granularidade e sem agregação ou modificação.
  3. Atuais. Os dados são disponibilizados o mais rápido possível para preservar o seu valor.
  4. Acessíveis. Os dados são disponibilizados para o maior alcance possível de usuários e para os propósitos mais variados possíveis.
  5. Processáveis por máquina. Os dados são razoavelmente estruturados para possibilitar o seu processamento automatizado.
  6. Acesso não discriminatório. Os dados estão disponíveis a todos, sem que seja necessária identificação ou registro.
  7. Formatos não proprietários. Os dados estão disponíveis em um formato sobre o qual nenhum ente tenha controle exclusivo.
  8. Livres de licenças. Os dados não estão sujeitos a regulações de direitos autorais, marcas, patentes ou segredo industrial. Restrições razoáveis de privacidade, segurança e controle de acesso podem ser permitidas na forma regulada por estatutos.

Quanto à importância dos dados abertos para as compras e contratações públicas, destaca-se, segundo a organização da sociedade civil Open Contracting Partnership (OCP), uma melhor relação custo-benefício para os governos, concorrência mais justa e igualdade de condições para os negócios, especialmente para as empresas menores, bens, obras e serviços de maior qualidade para os cidadãos, prevenção de fraudes e corrupção e análise mais inteligente e melhores soluções para problemas públicos. 

No que se refere ao embasamento legal quanto à transparência no Brasil, o Art.37 da Constituição Federal de 1988, traz que a Administração Pública direta ou indireta, em todos os níveis federativos, deverá obedecer a 5 princípios, sendo um deles o princípio da publicidade. Este princípio prevê que sejam transparentes as ações do poder público, dessa forma as compras e contratações também devem ser publicizadas, fazendo com que toda a sociedade tenha acesso às informações. 

A Lei n° 12.527, de 18 de novembro de 2011, conhecida como Lei de acesso à informação (LAI), regulamenta o direito de que qualquer pessoa possa solicitar e obter informações de entidades e órgãos públicos, das diferentes esferas e poderes. Outra legislação importante para a transparência é a Lei n° 14.129, de 29 de março de 2021, que dispõe de regras para o aumento da eficiência da administração pública, através de instrumentos como a inovação digital e a desburocratização.  

Em relação a práticas do Estado, o governo brasileiro, lançou em 2011, junto com outros sete países, a Open Government Partnership (Parceria para Governo Aberto), que prevê incentivar mundialmente a transparência dos governos e promover o acesso à informação aos cidadãos (Portal Gov.br, 2022). O Brasil está, em 2022, executando o seu 5° Plano de Ação de Governo Aberto, assim como outros países membros estão realizando as estratégias na vigência 2023-2028.

Além disso, o governo brasileiro criou o Plano de dados abertos (PDA), referente ao biênio 2021-2023, o qual prevê as estratégias para a implementação da abertura dos dados na Secretaria de Governo da Presidência da República. O PDA busca disponibilizar os dados em formatos abertos, melhorando o processo de transparência e o acesso às informações. Além da Secretaria do Governo da Presidência da República, outros órgãos estão criando seus planos de dados abertos, em cumprimento ao Decreto n ° 8.777 de 11 de maio de 2016, que institui a Política de Dados Abertos do Poder Executivo Federal.

As compras e contratações públicas têm um lugar de destaque no mercado mundial. Segundo a OCP, a contratação pública é o maior mercado do mundo, com a movimentação anual estimada em US$ 13 trilhões. 

O governo é um dos principais compradores e contratantes no Brasil. De acordo com o Portal de Transparência do Governo Federal, o valor total gasto em contratações até o mês dezembro de 2022 foi de R$ 16, 97 bilhões, por meio de licitações, dispensa e inexigibilidades. Já o ano de 2021 registrou o valor total de R$ 55,24 bilhões nessas modalidades, como mostra o quadro 1, a seguir. 

Quadro 1: Valor total de compras e contratações públicas no Brasil (2018 – 2022)

AnoQuantidade de Licitações com Contratação Valor total das contratações (Licitação, Dispensa ou inexigibilidade)
2018152.886R$ 126,49 Bilhões
2019146.443R$ 94,04 Bilhões
2020131.835R$ 94,53 Bilhões
202118.676R$ 55,24 Bilhões
20225.586R$ 16,97 Bilhões
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Portal de Transparência do Governo Federal (2022)

Nesse contexto, ao considerar o alto valor das compras e contratações públicas, a relevância de que essas sejam de boa qualidade e que se evite a corrupção, nota-se a importância da contratação aberta para a transparência, controle social e accountability. A contratação aberta vai além da publicação das informações, ela se refere à disponibilização de modo acessível e reutilizável, ao considerar os princípios dos dados abertos. 

Iniciativa em Compras e Contratações Públicas 

A temática da contratação aberta é atual e demanda investimento para que os propósitos sejam colocados em prática. Um exemplo da aplicação é um projeto, realizado em rede, no estado de Santa Catarina. O Grupo de Pesquisa Politeia, da Udesc Esag, em parceria com a Prefeitura Municipal de Blumenau, Secretaria de Estado da Administração de Santa Catarina e a Act4Delivery, lançou e está desenvolvendo o Projeto “Proposta de padronização para a Geração de Dados Abertos em Compras e Contratações Públicas”. O projeto, segundo seu site oficial, objetiva: 

Desenvolver uma proposta de um padrão para a geração de dados relativos aos processos de compras e contratações públicas, que otimize a disponibilização desses dados por municípios para cidadãos e órgãos de controle externo, em conformidade com os princípios de dados abertos (UDESC, 2022)

Para conhecer mais o projeto, convidamos a integrante da equipe Victória Moura Araújo para trazer suas percepções a respeito de sua execução. Victória é graduada em administração pública pela Udesc Esag, possui experiência em gestão e articulação de redes, atua desde 2017 em projetos envolvendo múltiplos atores em parceria com o governo, empresas e organizações da sociedade civil, e representa a Act4Delivery na equipe do projeto. Victória comentou  a respeito do projeto:

“O projeto surgiu a partir da demanda da Prefeitura Municipal de Blumenau, por meio da Secretaria de Gestão Governamental. O município, que possui um vasto histórico de iniciativas de transparência e participação social, recebeu uma notificação do MPSC em razão do não cumprimento da LAI no que diz respeito à publicação em formatos abertos. Percebemos então que, embora as legislações que tratam de dados abertos representam um avanço significativo na agenda, ainda temos um longo caminho para criar mecanismos que permitam a sua execução na íntegra. 

Para resolver essa “dor” foi firmado um projeto em parceria com a Udesc para o desenvolvimento de um padrão para a geração de dados de compras e contratações públicas para a PMB, mas que pudesse também ser replicado por outros municípios. Foi criada e concebida uma comunidade para a definição da padronização. Tratando-se de uma metodologia colaborativa de definição de padrão, um dos desafios encontrados é a mediação das relações e interesses dos diversos grupos envolvidos: governo, sociedade civil, academia e mercado.”

Nota-se que, mesmo diante do arcabouço legislativo, a implementação dos dados abertos em compras e contratações públicas enfrenta diferentes problemas, sendo eles técnicos ou políticos, como é o exemplo da ausência do padrão ontológico, que está sendo desenvolvido pelo projeto. Tal fato não significa que há falta de interesse por parte dos gestores, pois as questões podem ser complexas e depender de diferentes esferas da sociedade e do Estado.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Caroline Ribeiro de Castro, Hellen De Paula Aparício e Mariana Rocha Miranda, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 03 de nov. de 2022.

BRASIL. DECRETO 8.777, DE 11 DE MAIO DE 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/d8777.htm> Acesso em 11 de dez. 2022

BRASIL. LEI N° 12.527, DE NOVEMBRO DE 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm>. Acesso em: 05 de nov. de 2022.

BRASIL. LEI N° 14.129 DE 29 DE MARÇO DE 2021. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14129.htm>.  Acesso em 05 de nov. de 2022.

BRASIL. Portal Brasileiro de Dados Abertos. Disponível em: <https://dados.gov.br/home>. Acesso em 04 de dez. de 2022.

ENAP. Elaboração de Plano de Dados Abertos. Disponível em: <https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3152/1/M%C3%B3dulo%201%20-%20Conceitos%20de%20Dados%20Abertos.pdf>. Acesso em: 06 de dez. de 2022.

GOV.BR. O que é a iniciativa. Disponível em: <https://www.gov.br/cgu/pt-br/governo-aberto/a-ogp/o-que-e-a-iniciativa>. Acesso em: 03 de nov. de 2022.

OPEN CONTRACTING PARTNERSHIP. Disponível em: <https://www.open-contracting.org/>. Acesso em 11 de dez. de 2022.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Plano de dados abertos. Disponível em: <https://www.gov.br/secretariadegoverno/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/plano_de_dados_aberto___secretaria_de_governo-1.pdf > Acesso em 11 de dez. de 2022.

SCHOMMER, P.C.; RAUPP, F.M.; SALM JR., J.F.; GUERZOVICH, F.; PEREIRA, R.S., ARAUJO, V. M. (2022). Abertura de dados em compras e contratações públicas como um processo tecnopolítico e ontológico. Blog Gestão, Política & Sociedade. Estadão. São Paulo, 20 set 2022.
UDESC. Padronização de Dados Abertos. Disponível em: <https://www.udesc.br/esag/projetodadosabertos>. Acesso em 10 de dez. de 2022.

Por trás da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, LGPD – quem é o responsável pelos seus dados?

Por Betina de Vincenzi, Giovana Lenzi, Laura Assis, Laryssa Chaves*

A Lei Federal n. 13.709/2018, conhecida e denominada como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD, entrou em vigor em agosto de 2020. É ela que regulamenta o tratamento, uso, proteção e transferência de dados pessoais por parte de empresas públicas e privadas no Brasil. Os dados pessoais são qualquer informação referente a uma pessoa que permita identificá-la.

A LGPD foi criada com o intuito de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade das pessoas, conforme consta na própria Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1998), e a livre formação da personalidade de cada indivíduo. Ou seja, a LGPD propicia que os cidadãos contem com um mecanismo para terem controle sobre suas informações pessoais. A Lei exige o consentimento das pessoas, solicitado de uma forma clara, para que ocorra a coleta e uso desses dados, obrigando também que o usuário possa visualizar, corrigir e excluir esses dados.

A lei brasileira é baseada na General Data Protection Regulation, GDPR, legislação de proteção de dados da Europa, vigente desde 2016. Ambas as Leis surgiram após episódios que assustaram e preocuparam a população a respeito de seus dados. Como exemplo, temos a eleição do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em 2016, que utilizou em sua campanha dados coletados em  redes sociais dos eleitores a seu favor.

Neste texto, abordamos quem são os atores envolvidos na implementação da LGPD e quais são seus papéis. Para isso, contamos  com o auxílio de Letícia Mulinari Gnoatton, sócia da Menezes Niebuhr e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, cujo tema de pesquisa teve como foco a proteção de dados pessoais e direito da União Europeia (GDPR).

Atores envolvidos na implementação da LGPD 

Segundo Art. 5º da Lei 13.709/2018, são atores ativos da LGPD:

Titular – pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento;

Controlador – pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais;

Operador – pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador;

Encarregado – pessoa indicada pelo controlador e operador para atuar como canal de comunicação entre o controlador, os titulares dos dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

ANPD – órgão federal responsável por fiscalizar e aplicar a LGPD.

O Encarregado de Dados

O Encarregado de Dados, ou Data Protection Officer, DPO, é a pessoa indicada pelo Controlador e Operador para atuar como canal de comunicação entre o Controlador, os Titulares dos dados e a ANPD. Suas atribuições, segundo a LGPD (Art. 41, parágrafo 2º), incluem:

I – aceitar reclamações e comunicações dos titulares, prestar esclarecimentos e adotar providências; 

II – receber comunicações da autoridade nacional e adotar providências; 

III – orientar os funcionários e os contratados da entidade a respeito das práticas a serem tomadas em relação à proteção de dados pessoais; e 

IV – executar as demais atribuições determinadas pelo controlador ou estabelecidas em normas complementares.

Não existem muitas formas de capacitação, formação ou certificação necessária para o desempenho dessa função dentro das empresas. Todavia, pela responsabilidade outorgada a esse profissional, é desejável que o mesmo possua experiência em processos de auditoria e governança da segurança da informação. O conhecimento da LGPD e demais normas ou legislações relativas à proteção de dados devem ser uma premissa para esse profissional. As recomendações são de que o profissional não seja do setor jurídico e de tecnologia da informação da própria organização, visto que corre riscos de enfrentar dificuldades  se for necessário relatar um erro do seu próprio setor.

Sobre o Encarregado, segundo Martha Leal (2022):

  • o  artigo 5, VII, que define o encarregado como a pessoa indicada pelos agentes de tratamento para atuar como canal de comunicação entre o controlador, os titulares e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados; 
  • o artigo 23, III, que declara que as organizações públicas também têm o dever de indicar um encarregado; e 
  • o artigo 41, que especifica que os controladores, e aqui não há menção aos operadores, devem indicar um encarregado pelo tratamento de dados pessoais.

A LGPD determina que quem responde por uma violação de segurança, como um vazamento de dados, são os agentes de tratamento – o controlador e o operador. Ou seja, as empresas e pessoas envolvidas no tratamento de dados pessoais. Como dentro das empresas o responsável por tratar e proteger os dados são os DPOs, cabe a estes grande parte da responsabilidade em casos de violação de segurança. 

O encarregado de dados no setor público

Na Administração Pública, seja em órgãos federais, estaduais ou  municipais, há um imenso volume de coleta de dados, visto que, o serviço público tem como usuário o cidadão. Portanto, é indispensável realizar essa coleta. Além disso, dados dos próprios servidores públicos são dados pessoais, portanto, entram na legislação de proteção. 

As exigências e organizações de políticas de compliance em empresas privadas são recomendadas para a  Administração Pública, uma vez que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados é um órgão federal, responsável por fiscalizar e instituir a LGPD.

Em relação ao Encarregado de Dados nesse meio, é importante que o profissional nomeado “tenha autonomia, acesso à alta administração, independência e todos os recursos necessários para executar suas funções de forma plena” (XAVIER, 2021).

No setor público, seja desde a GDPR ou LGPD, não há nenhum caso registrado de processo contra o Encarregado de Dados, portanto, não existem informações para apontar se isso ocorre devido à ausência da ANPD fiscalizando ou, da falta de entendimento por parte dos cidadãos referente a seus direitos assegurados na Lei.

O encarregado de dados e a accountability

Dado o exposto, concluímos que tanto em empresas privadas como no setor público, ter um bom profissional de DPO, atuando e representando a instituição, aumenta o nível de confiabilidade da organização e ilustra, na prática, a responsabilidade ética e a accountability exigidos para algo além da lei. A accountability não se refere apenas às leis, mas às expectativas gerais da sociedade, pois passa segurança e profissionalismo aos usuários que fornecem seus dados ao utilizar um serviço ou consumir um produto.

O setor público, devido a seu tamanho e complexidade, tem muito a avançar na implementação para entrar em conformidade com a legislação. É um processo trabalhoso e contínuo, visto que, dados são coletados e atualizados diariamente. 

Inclusive, pela alta complexidade citada, é uma recomendação que o órgão público contrate um profissional ou empresa  para realizar o compliance da LGPD. Desta forma, as atividades cotidianas não são deixadas de lado para realizar os processos de adequação e vice-versa.

Notamos também que, ao juntar dados sobre incidentes relacionados ao Encarregado de Dados, existe uma falta de cultura de proteção de dados, de transparência e accountability. Diariamente, recebemos notícias de vazamento de dados, porém, não se vê repercussão e continuidade para expor quem foi o responsável pelo fato, o porquê e suas consequências.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública, Betina de Vincenzi, Giovana Lenzi, Laura Assis e Laryssa Chaves, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc – Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências

BRASIL. Presidência da República. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm. Acesso em: 10 nov. 2022.

GUIA ORIENTATIVO: Tratamento de Dados Pessoais pelo Poder Público. Disponível em https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/guia-poder-publico-anpd-versao-final.pdf. Acesso em: 10 nov. 2022.

LEAL, Martha. O papel do DPO na demonstração de accountability da empresa. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-03/leal-papel-dpo-demonstracao-accountability-empresa. Acesso em: 10 nov. 2022.
XAVIER, Fabio Correa. O Encarregado de Dados no Setor Público: a LGPD veio para ficar e todos, sociedade e governo, serão beneficiados em relação à privacidade e proteção dos dados pessoais. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/339636/o-encarregado-de-dados-no-setor-publico. Acesso em: 10 nov. 2022.

Coprodução na educação popular: o caso do 1º pré-vestibular gratuito no Norte da Ilha, em Florianópolis

Por Maicon Estevam, Gabriel da Silveira e Ricardo Souza Silva*

A educação popular é uma realidade em diversas partes do mundo, atravessando diferentes contextos históricos, tomada como ferramenta de resistência para comunidades, bem como instrumento de ascensão social, promoção da cidadania e inserção em uma realidade mais igualitária de condições e direitos. Na educação popular, educandos, educadores e espaços são marcados pela pluralidade e diversidade de identidades, origens e posicionamentos. O termo educação popular apresenta polissemia e flexibilidade, adaptando-se em contextos diversos, mas sempre objetivando o acesso ao conhecimento e a cultura, além da compreensão da multidimensionalidade do indivíduo, onde quer que seja aplicado.

No Brasil, uma teia de projetos relacionados às camadas populares germinou em todas as regiões do país. Pautados na ausência do Estado enquanto promotor de políticas públicas para as comunidades que mais precisam, tais projetos propiciam que os espaços de acesso aos direitos da cidade sejam promovidos pelas próprias iniciativas sociais e comunitárias.

Em Florianópolis, Santa Catarina, os diversos Cursinhos Comunitários evidenciam essas problemáticas. Em uma cidade com uma universidade federal e uma estadual e, ainda, com um polo tecnológico e turístico, a distância financeira entre as pessoas ainda é grande. O abismo entre estudantes de instituições privadas e públicas se verifica também no acesso ao nível superior. Nesse contexto, a educação popular surge como oportunidade de disputar uma vaga na universidade pública para os estudantes das camadas populares. Por vezes, o contraste financeiro é também geográfico, na medida em que o deslocamento das regiões periféricas da ilha até o centro, onde mais instituições de ensino se localizam, demanda muito tempo e dinheiro, devido à deficitária mobilidade urbana.

Neste cenário, em 2019, se iniciaram as aulas do primeiro Cursinho Pré-vestibular Comunitário do Norte da Ilha de Florianópolis, cuja geografia dialoga com o movimento da educação popular na cidade. O Cursinho do Zinga (Figura 1), em seu primeiro ano de atividade, preencheu mais de quatro turmas e, ao superar 40 aprovações em vestibulares ao final do ano, somou uma turma inteira de graduandos do ensino superior tangenciados pela educação popular.

Figura 1 – Logo do Cursinho do Zinga

   

A perspectiva do Cursinho do Zinga caminha junto do entendimento de práticas integradoras entre comunidade e educação. Estas são perceptíveis no contato entre o Pré-vestibular comunitário, no qual todos os professores dão aula de forma voluntária, e a Escola Básica Herondina Medeiros Zeferino, localizada no bairro Ingleses, na região Norte de Florianópolis, espaço este, cedido pela Prefeitura de forma gratuita, onde são ministradas as aulas.

Visualizar a disposição dos cursinhos populares no espaço geográfico, da mesma maneira que o público ao qual atende, as características dos estudantes, os fatores socioeconômicos, bem como a contextualização do acesso à educação durante sua trajetória estudantil, manifesta-se como uma potente amostragem de como se comporta a demografia de vestibulandos e vestibulandas das periferias.

Vislumbrando a distribuição no Mapa 1, a seguir, percebe-se que o Cursinho do Zinga é o único pré-vestibular gratuito no Norte da Ilha. Localizado mais especificamente no bairro Ingleses do Rio Vermelho, em que se nota as diferentes espacialidades constitutivas da trama social brasileira e a concentração e centralização das atividades educacionais.

      Mapa 1: Distribuição dos Cursinhos Gratuitos em Florianópolis, SC

Percebe-se que há uma maior concentração de cursinhos gratuitos na porção central da cidade. O Cursinho do Zinga se instalou em um território onde havia um vazio de preparatórios para o vestibular, o que tonifica a sua importância tanto no aspecto geográfico quanto no formativo. A inserção dos cursinhos populares na região central pode se justificar pela presença das universidades públicas UFSC e UDESC, localizadas em meio a esse espaço geográfico.

Além disso, é notável que, além da distribuição das universidades, se produz no Centro uma série de territórios anexos às edificações verticalizadas. Nas encostas dos morros, em especial ao longo do Maciço do Morro da Cruz, muitos/as trabalhadores/as se instalam a partir da possibilidade de moradia, numa cidade onde a especulação imobiliária e a segregação socioespacial corroboram para a marginalização e o adensamento populacional neste setor. 

Desta forma, não só é plausível e lógico que a maior parte dos cursinhos se posicionem no Centro, mas também é necessário, uma vez que inexiste uma real iniciativa do Estado em estimular e proporcionar o ingresso das pessoas que habitam as periferias da ilha. Portanto, é fundamental que os cursinhos populares ocupem esses lugares.

Com a inserção de um cursinho pré-vestibular gratuito, há o aumento das condições materiais para a entrada das classes populares ao ensino superior público, e o Cursinho do Zinga representa essa possibilidade na região norte da ilha. No entanto, as condições materiais por si só não garantem o ingresso, pois os processos seletivos conteudistas, em especial do vestibular da UFSC e da UDESC, fornecem uma vantagem aos estudantes do ensino médio privado e cursinhos mais alinhados com o pré-vestibular; enquanto cursinhos que projetam uma formação mais ampla precisam encontrar meios de equilibrar os processos e objetivos formativos.

Dessa maneira, importa ressaltar que o Cursinho do Zinga não é e nem pode ser um oásis da educação pré-vestibular popular no norte da ilha de Florianópolis, assim como qualquer outro cursinho popular. O Cursinho do Zinga se coloca como pioneiro na região, de forma que, para além de uma possível expansão (em turmas, voluntários e atividades formais e não formais), seja estimulada a vinda e a elaboração de novos cursinhos populares na região, corroborando com uma educação do povo para o povo, na busca de um mundo novo por meio da educação popular.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Maicon Estevam, Gabriel da Silveira e Ricardo Souza Silva, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer  e pelo doutorando Renato Costa, em 2022.

Referências 

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Boitempo, 2019. 326 p. (Estado de sítio). Tradução de Mariana Echalar.

MARTINS, B. A Geografia do movimento popular. Monografia (Licenciatura em Geografia). Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc – 2021.SANTOS, Milton, 1926 – 2001. Sociedade e espaço: a formação social como categoria e como método. Boletim Paulista de Geografia, nº 54. São Paulo: USP, 1977, p. 81-100.

O modelo de coprodução representativa com sustentabilidade visto na prática: os exemplos da APAE e da Key Ring

Por Maria Beatriz de Oliveira e Natália Brasil Silva*

A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, APAE, promove e articula ações de defesa de direitos e prevenção, orientações, prestação de serviços e apoio à família, direcionadas à melhoria da qualidade de vida da pessoa com deficiência (PCD) intelectual e ou múltipla/autismo, e a construção de uma sociedade justa e igualitária. O Brasil conta com mais de 2.200 unidades de APAEs espalhadas pelo país, atendendo a cerca de 1.300.000 pessoas assistidas.

Essa instituição promove uma interação qualificada entre os profissionais e as famílias de PCDs, como o exemplo mostrado na Figura 1, a 30ª Feira da Esperança na Apae da unidade de Florianópolis. A Feira conta com apresentações culturais e artísticas e um bazar de eletrônicos, brinquedos, perfumes, roupas, artigos de decoração e sapatos. Além da integração entre os participantes, visa arrecadar recursos para continuar suprindo mais de 600 crianças, jovens e adultos com atendimento de saúde, educação e assistência social. Em edições anteriores da Feira, segundo o Coordenador de Divulgação Roberto Schweitzer, supriu com pelo menos 70% do custeio anual da Apae.

Figura 1 – A madrinha da Feira da Esperança 2019, Késia Martins da Silva (em pé, atrás), e o Grupo de Dança da Apae Florianópolis – Divulgação/ND

Analisando o trabalho realizado pela APAE sob o enfoque da coprodução de bens e serviços públicos, recorremos aos modelos de coprodução desenvolvidos  por José Francisco Salm e Maria Ester Menegasso (2010), a partir de três tipologias de participação. Dentre os cinco modelos de coprodução que os autores propõem, consideramos que a Coprodução Representativa com Sustentabilidade corresponde ao tipo de relação observada na APAE. Segundo os autores, esse modelo é “resultado da sinergia estabelecida na realização dos serviços públicos de que participam os cidadãos, as organizações da comunidade e o aparato administrativo do Estado que, no seu conjunto, interagem em prol do bem comum” (SALM e MENEGASSO, 2010, pg. 14). Nesse modelo, a coprodução ocorre por meio da “interação do cidadão com o aparato administrativo do Estado e da delegação de poder pelo Estado. O empowerment e a accountability são essenciais, requerendo o engajamento cívico do cidadão e da comunidade.”  (SALM e MENEGASSO, 2010, pg. 14).

O conceito de sinergia é interessantíssimo e importante nos estudos para compreender a coprodução. Sinergia é o valor alcançado pela interação entre um grupo cidadãos e profissionais durante a coprodução. Para Ostrom (1996), se há sinergia, isso  significa que foram alcançados resultados superiores àqueles que seriam obtidos caso cada parte trabalhasse isoladamente.

No trabalho da APAE, é evidente que os resultados em inserção social e profissional, educação, saúde das PCDs não seriam alcançados sem o envolvimento mútuo continuado entre profissionais, familiares, comunidade e as próprias pessoas com deficiência. O desenvolvimento social e político das pessoas envolvidas e da causa dos direitos e inclusão das PCDs também depende dessa sinergia para acontecer.

Outro exemplo desse modelo de coprodução é a The Network is the Key: How KeyRing supports vulnerable adults in the community. A instituição The KeyRing criou uma rede de apoio a adultos vulneráveis ​​em comunidades carentes na Europa, e desenvolveu uma abordagem de rede baseada em voluntários ativos dando suporte para melhorar a qualidade de vida de adultos vulneráveis. A Figura 2 mostra uma das comunidades dessa Rede.

Figura 2 – Uma das comunidades da rede The Key Ring / Fonte: KeyRing, 2013.

Mas, você deve estar se perguntando: como funcionam essas redes? 

O funcionamento das redes é simples: dez pessoas vivem a uma curta distância umas das outras. Nove dessas pessoas são adultos vulneráveis ​​e a décima é um Voluntário de Vida Comunitária (VVC), que vive sem aluguel na área da Rede.

O VVC fornece pelo menos 12 horas de seu tempo por semana para ajudar os membros com questões como contas e orçamento, ingresso na educação, emprego ou voluntariado.

A abordagem dos voluntários é de líderes, e a sua missão é envolver outros membros do KeyRing e outros cidadãos, garantindo a capacitação de outros a assumir a liderança para garantir maior eficácia, propriedade, sustentabilidade aprimorada e autonomia das pessoas e comunidades, não criando dependência nelas. Portanto, os VVCs conectam as pessoas umas às outras e a ativos comunitários mais amplos, sendo um modo de empoderar, pois ouvem, perguntam e incentivam os membros a mostrar liderança local.

Pesquisando mais sobre os temas, chegamos ao desfecho de que as duas iniciativas têm princípios semelhantes, demonstrando compaixão e empatia pelos que precisam de apoio, seja por qual for o motivo. O Estado, em ambos os casos, financia parte do trabalho das instituições, sem muita interferência em outras esferas, para que assim a comunidade voluntária e os profissionais atuem realizando esses lindos trabalhos de inclusão e assistência social – um modelo nítido de Coprodução Representativa com Sustentabilidade. Usando as premissas da coprodução (Salm, 2014), nos dois casos podemos observar a multidimensionalidade humana e o empoderamento da comunidade.

Conforme o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, a multidimensionalidade humana (em seus aspectos biológicos, econômicos, sociais e políticos) pode ser desenvolvida na medida em que o ser humano participe de diferentes espaços ou enclaves sociais. A multidimensionalidade dos espaços considera que a sociedade unicêntrica – centrada no  mercado – opõe-se a uma sociedade multicêntrica. Para ele, essa sociedade ordena, por razões substantivas e multicêntricas, espaços sociais adequadamente delimitados, o que permite a expressão da natureza humana multifacetada, de acordo com um paradigma paraeconômico (RAMOS, 1989). 

Em meio à multidimensionalidade, destaca-se o empoderamento da comunidade, uma vez que quanto mais políticas e espaços inclusivos existam, mais empoderada a comunidade se sentirá.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Maria Beatriz de Oliveira e Natália Brasil Silva, na disciplina Coprodução do Bem Público, da Universidade do Estadol de Santa Catarina, ministrada pela professora Paula Chies Schommer e pelo doutorando Renato Costa, em 2022.

Referências

APAE Floripa. Home. Disponível em: <https://www.apae.floripa.br/site/>. Acesso em: 8 dez. 2022.

‌30a Feira da Esperança abre com sucesso na sede da Apae Florianópolis | ND Mais. Disponível em: <https://ndmais.com.br/noticias/30a-feira-da-esperanca-abre-com-sucesso-na-sede-da-apae-florianopolis/>. Acesso em: 9 dez. 2022.

Governance International – KeyRing Living Support Networks. Disponível em: <https://www.govint.org/good-practice/case-studies/keyring-living-support-networks/#:~:text=KeyRing%20Living%20Support%20Networks%20are>. Acesso em: 8 dez. 2022.

‌GUERREIRO RAMOS, Alberto. A nova ciência das organizações: Uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas – Reeditado em 1989, p. 207.

KEYRING. KeyRing Networks Supported Independent Living Services Autism Learning Disabilities Mental Health. Disponível em: <https://www.keyring.org/>.

‌OSTROM, Elinor. Crossing the great divide: coproduction, synergy, and development. World Development. v.24, n.6, p.1073-1087, 1996.

SALM, J.F., MENEGASSO, M.E. Proposta de Modelos para a Coprodução do Bem Público a partir das Tipologias de Participação. XXXIV Encontro da ANPAD. Rio de Janeiro, setembro de 2010.

CÃO TERAPIA: um projeto que uniu mãos e patas

Por Jamyly Schmitz Schroeder, Jéssica Peri, Juliana Korb Nogueira e Maysa Klausen da Silveira*

“A grandeza de uma nação e seu progresso moral  podem ser avaliados pela forma como ela trata  os seus animais” (Mahatma Gandhi)

Figura 1-Logomarca Cão Terapia

Fonte: Facebook OBA!

Tratar bem seus animais reflete o perfil de cidadania em cada contexto. Em Florianópolis,  o projeto “CãoTerapia”, realizado entre 2007 e 2022, visava amenizar a solidão e os traumas dos animais resgatados a partir de um trabalho conjunto entre sociedade civil e Prefeitura.

Legislação de proteção aos animais  

O primeiro país a legislar em prol dos animais e contra os maus-tratos e a crueldade foram os Estados Unidos da América, EUA, com  a “Lei de Proteção Animal”, editada em 1781.

A primeira norma legal brasileira a dispor sobre proteção aos animais foi o Decreto nº 16.590, de 1924, que embora fosse um decreto, expedido pelo então presidente Getúlio Vargas (Poder Executivo), teve força de lei, e é conhecido até hoje como “Lei de Proteção aos Animais Brasileira”. 

Em 1988, a Constituição Federal (Brasil, 1988), seguindo a tendência mundial de preocupação com a preservação do meio ambiente, incluiu, em seu texto, um capítulo específico sobre esse assunto e nele, entre outras disposições, expressamente vedou as práticas que submetem os animais à crueldade. Os maus-tratos são regulados pelo art. 29 e 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) e pelo Decreto-Lei nº 3.688/41 (Contravenções penais). 

Somente em 2012, surge o Projeto de Lei, PL N.º 3.676, do deputado federal  Eliseu Padilha, que pleiteia a criação do Estatuto dos animais. Esse projeto de lei sintetizou sugestões das associações representativas que militam em defesa dos animais, e, acima de tudo, refletiu os anseios de parcela da sociedade engajada em exigir punição aos atos de violência praticados contra os animais.

Em Santa Catarina, duas leis que tratam do assunto merecem destaque: a Lei nº 18.058, de 2021, que altera a Lei nº 12.854, de 2003 (Código Estadual de Proteção aos Animais), a fim de incluir a garantia de disponibilização de alimento e/ou água aos animais que estão na rua, pelos cidadãos em espaços públicos no Estado de Santa Catarina. E a Lei nº 18.057, de 2021, que dispõe sobre a conscientização dos direitos dos animais domésticos e silvestres nas escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio, e adota outras providências. 

Já em Florianópolis, destacamos a Lei Complementar nº 643/2018, sobre os animais comunitários. A Lei passou a estabelecer atribuições para os voluntários da comunidade acolhedora do animal comunitário poderem manter o mesmo em sua comunidade, ou seja, o animal deixa de ser de rua, e passa ser um morador oficial do bairro. 

Casos de abandono e maus-tratos a animais domésticos na Grande Florianópolis aumentam no verão. Entre os motivos, estão os donos que viajam para a praia e deixam cães em casa sem água e ração. Em algumas situações, a prefeitura de Florianópolis, por meio da Diretoria de Bem-Estar Animal, DIBEA, age com o apoio da Guarda Municipal para poder entrar na residência, que está fechada e sem moradores, e então retirar o animal que corre risco de morrer por desidratação e inanição. O animal então é resgatado e levado para um espaço onde recebe cuidados de um protetor.

No texto base do PL 215/2007 , que busca instituir o Código Federal de Bem-Estar Animal. A Animal Legal & Historical Center defende que “a legislação ganha força e eficácia na medida em que as organizações não governamentais passam a fiscalizar o seu cumprimento e exigir a participação da sociedade na elaboração de políticas públicas em prol dos animais”.

Marco histórico e mecanismos de participação 

A partir dos anos 1980, novos espaços de participação da sociedade civil foram criados na tentativa de romper com os limites de um Estado com resquícios autoritários, centralizadores, clientelistas e patrimonialistas. O novo arcabouço constitucional criado em 1988 estabeleceu mecanismos institucionais de participação, abrindo à sociedade diferentes possibilidades de atuação no aparato estatal.

A democratização do país favorece a colaboração entre governantes e cidadãos também por meio da estratégia da coprodução. No Brasil, o debate em torno do tema de coprodução de bens e serviços públicos vem ganhando mais espaço, como salientam Rodrigues e Lui (2020, pg. 196), enumerando autores e complementando sobre o conceito de coprodução que,  

estaria associada ao compartilhamento de poderes e responsabilidades entre agentes públicos e cidadãos na produção de bens e serviços públicos. Desse modo, ela ocorre quando o Estado não está sozinho na tarefa de planejar e executar a entrega dos serviços à sociedade, dividindo essa responsabilidade com empresas, organizações do terceiro setor ou ambos, simultaneamente.

Surgiram assim experiências consideradas inovadoras por incorporarem a participação do cidadão na definição de políticas públicas e em decisões no âmbito da gestão local, a exemplo dos conselhos gestores, das conferências de políticas, dos orçamentos participativos e de outros fóruns (Novaes e Santos, 2014).

O sociólogo britânico Thomas Marshall, conhecido por seu trabalho sobre cidadania, é mencionado por Salm e Menegasso (2010) ao abordar a coprodução a partir da participação cidadã. A partir das reflexões realizadas por estes estudiosos, as quais são baseadas no estudo do sociólogo, entende-se que a coprodução só ocorre quando há oportunidade e disposição do cidadão em participar. Mas é essencial que haja oportunidade para que o cidadão possa realizar essa participação.

O cidadão pode compartilhar do poder de deliberação e decisão em prol do bem de sua comunidade. Nessa forma de participação, o cidadão se engaja em um processo de diálogo e aprendizagem em condição de igualdade com  os demais participantes, incluindo aqueles que representam o estado.

Salm e Menegasso (2010) salientam que o poder do cidadão sobre o estado é uma forma de participação que está associada ao empowerment (empoderamento), ou seja, ao poder que nasce na comunidade mercê da sinergia que resulta da interação de seus membros com os servidores públicos, ao coproduzirem um bem ou serviço público. 

Dentro deste contexto, destacam-se os elementos estruturantes da coprodução, conforme abordado por Rocha e coautores (2021), sendo estes representados na figura 2, a seguir.

Figura 2- Elementos estruturantes da coprodução

Fonte: Adaptado pelas autoras de Rocha et al (2021)

Sobre o Projeto Cão Terapia

O Cão Terapia era um encontro promovido todos os sábados – quando não chovia – para levar aos cerca de 70 animais recolhidos pela DIBEA um pouco de carinho e atenção. A Cão Terapia teve início em 2007, em uma parceria da Organização Bem-Animal, OBA!  com a Dibea, e foi finalizado em 11 de maio de 2022. Voluntários e a comunidade em geral visitavam aos sábados o canil e gatil municipal para amenizar a solidão e traumas dos animais resgatados de denúncias de maus-tratos, atropelamentos e outras situações emergenciais.

Através dos passeios, das brincadeiras, da interação e do carinho, os animais recuperam a confiança nos seres humanos e são preparados para serem inseridos em novas famílias. O principal objetivo do projeto é dar visibilidade para os animais e possibilitar a adoção consciente. A Cão Terapia é responsável, direta ou indiretamente, pelo encaminhamento de centenas de cães e gatos desde a sua criação. Além disso, possibilita a relação próxima das pessoas com os animais, tornando-se uma atividade terapêutica e também um exercício de cidadania e solidariedade. 

Segundo Fabiana Bast, Diretora da Dibea entrevistada pelas autoras, “o objetivo do projeto de passeios e socialização com os animais,era proporcionar uma relação de cuidado e carinho, juntamente com uma preparação para eles receberem uma nova família, aumentando as chances de adoção”. Ainda, segundo ela, “o projeto funcionou muito bem durante 11 anos, e atingiu muitos dos seus objetivos. A tutela dos animais era da prefeitura, bem como, os veterinários e as atividades eram realizadas dentro das dependências da Prefeitura Municipal de Florianópolis, nas instalações da Dibea no Itacurubi”. 

A idealização foi da arquiteta Ana Lúcia Martendal, que é voluntária da Organização Bem-Animal, OBA! Pelo projeto, moradores da cidade podiam retirar os animais do canil e levá-los para passeios em uma área verde de Florianópolis. “Os cães estão preparados para o passeio: estão limpos, alimentados e castrados”, diz Ana Lúcia, em entrevista ao jornalista Chico Fireman, para o Jornal G1,em junho de 2007. E acrescenta que, para participar dos passeios, a  seleção é rigorosa: todas as pessoas interessadas em passar algumas horas de folga com estes animais passavam por entrevistas.

Naquela época, haviam duas modalidades de adesão ao projeto: ou o voluntário poderia levar o cão para passear em períodos específicos (sábados, das 10h às 12h ou das 15h às 18h) ou poderia fazer uma adoção provisória do animal por todo o fim de semana, levando o bicho para casa e entregando-o na segunda-feira pela manhã.

Para a grande surpresa, já no primeiro fim de semana mais de 30 pessoas apareceram, interessadas em ganhar a companhia temporária dos cães. Segundo Ana Lúcia, “geralmente são pessoas entre 20 e 30 anos que trabalham muito ou que moram em apartamentos e não podem dar tanta atenção aos animais no dia-a-dia”.  O projeto logo surtiu efeito dentro e fora dos canis, e foram sendo percebidos no dia dos animais. “Muitos animais, que antes estavam ‘deprimidos’ e chegavam até a desenvolver doenças ocasionadas pelo isolamento, já demonstram mais vitalidade, segundo os técnicos da coordenadoria. “No canil, eles têm água, comida e roupa lavada. O que eles precisavam é de carinho”, diz Ana Lúcia.

Em 05 de outubro de 2020, a fundadora da OBA! , Ana Lúcia Martendal, concedeu entrevista ao colunista do ND Mais, Marcos Cardoso, quando falou sobre a ONG e o projeto Cão Terapia, e sua primeira interrupção das atividades em 2018:  

Como se deu a criação da OBA!? Qual o seu objetivo primordial?

O projeto Cão Terapia nasceu com o objetivo de incentivar a adoção de animais, tendo como principal foco os cães resgatados por maus-tratos pela Prefeitura de Florianópolis e que aguardavam adoção no antigo canil municipal, que naquela época – antes da construção do (CCZ) Centro de Controle de Zoonoses localizado no bairro Itacorubi –, ficava no município de São José.

A Cão Terapia começou com os passeios aos sábados à tarde para que cada animal tivesse momentos de lazer, pudesse sair da baia, receber carinho e atenção dos voluntários, mas, sobretudo, tivesse visibilidade para que, finalmente, fosse adotado. O projeto foi imediatamente abraçado pela sociedade, tornando-se parte do calendário de eventos da cidade de Florianópolis.

Como funciona a Cão Terapia?

Em fevereiro de 2009, com a inauguração do CCZ, (…) a Cão Terapia, que antes tinha uma média de 30 voluntários, passou a ter uma participação expressiva de pessoas de todas as idades, muitas vezes, chegando a 100 voluntários a cada sábado, tornando um projeto referência e conhecido nacionalmente, mobilizando muitas pessoas e apoiadores. Entretanto, em novembro de 2018, com o início da reforma e ampliação das instalações do CCZ e Dibea – que teria duração de um ano –, o projeto foi suspenso por decisão da Prefeitura.

Esta mesma entrevista foi reproduzida na íntegra pelo site da ONG Olhar Animal que faz uma nota ao final:

Nota do Olhar Animal: O belíssimo projeto Cão Terapia, da ONG OBA Floripa!, foi inexplicavelmente interrompido pela Prefeitura, em uma decisão claramente POLÍTICA e que há dois anos vêm privando os animais da benéfica visita de voluntários e de potenciais adotantes. Os cães ganhavam passeios, carinho e, muitas vezes, um lar amoroso. É VERGONHOSA a postura da Prefeitura de Florianópolis, comandada por Gean Loureiro (MDB), ao interromper uma ação tão positiva. Parabéns à ONG por este projeto e também pela atuação junto às comunidades indígenas, invariavelmente carentes e com assistência precária, seja a destinada aos humanos, seja a dirigida aos animais. (2020)

Em maio de 2022, o projeto foi suspenso em decorrência do fim do termo de cooperação que existia entre as entidades envolvidas no projeto, e houve  a necessidade de uma readequação e readaptação. Segundo Fabiana:

a participação da comunidade como voluntária sempre foi um suporte muito grande para o projeto e atuação da Dibea. E com o término do termo de cooperação entre a entidade OBA e a Prefeitura, não houve mais interesse da Prefeitura em renovar, por uma série de problemas que aconteceram após a pandemia. Um fator importante foi o aumento do número de animais, chegando a mais de 200 animais, e o Cão Terapia não tinha mais uma estrutura de voluntários capacitados para tirar todos os animais em segurança para fazer o passeio. Isso exigindo uma reformulação do projeto, atentando-se em seguir as regras do órgão e as regras técnicas dos médicos veterinários. Na ausência de uma reformulação que se adaptasse a essa nova realidade, com grande número de animais, não foi possível continuar com o Cão Terapia. 

Sobre a suspensão do projeto Cão Terapia, a OBA! (Organização Bem-Animal) fez diversos posts na sua página do Facebook, que transcrevemos:

Cão Terapia suspensa por decisão da Diretoria de Bem-Estar Animal de Florianópolis (Dibea). O Termo de Cooperação venceu e não houve interesse da Dibea em renovar a parceria, que neste mês completa 15 anos. A Dibea está conversando com profissionais em educação canina para conduzir os passeios e a socialização dos animais nas tardes de sábado. Entretanto, podemos trabalhar de forma cooperativa e colaborativa com estas profissionais,  somando esforços. (…) #EuApoioCaoTerapia” Publicação da OBA no facebook, em 14 de maio de 2022.

Cão Terapia deste Sábado,  07/05, CANCELADA! Lembramos que a Diretoria de Bem-Estar Animal de Florianópolis (Dibea) suspendeu a Cão Terapia deste sábado, 07/05/2022, em razão do término do Termo de Cooperação entre a Organização Bem-Animal (OBA!) e a Fundação Rede Solidária Somar Floripa. 

Nos últimos meses, a Dibea frequentemente tem comunicado aos munícipes a suspensão de novos resgates por estar com canis e gatis superlotados. Desta forma, reforçamos a importância do projeto Cão Terapia, que tem justamente a missão de encontrar lares amorosos e responsáveis para os animais sob tutela da Prefeitura de Florianópolis. Mesmo que não possam falar, o semblante dos animais diz tudo, não é mesmo? Temos certeza de que eles torcem para que o Termo de Cooperação seja renovado! Aliás, neste mês de maio a Cão Terapia comemora 15 anos. Parabéns para todos nós!!Publicação da OBA no facebook, em 07 de maio de 2022.

É notável o quanto o projeto gerou bons frutos, durante um período longo de 11 anos. É um prejuízo à sociedade quando um projeto assim acaba. Contudo, como observaremos a frente, a Diretoria do Bem-Estar Animal tem buscado dar sequência naquilo que mais beneficiou os animais.

Outros exemplos de coprodução com assistência de animais

Dentro do contexto do projeto “Cão Terapia”, encontra-se outros com a mesma temática,  com meios e resultados diversos. 

Em 26 de setembro de 2003, foi criado oficialmente a Organização Não Governamental de Proteção Animal e Educação Ambiental, dirigida por Maurício Varallo, chamada “Instituto É oBicho!”, que além de intermediar voluntários que abrigam os animais e que podem vir a adotá-los, e orientar sobre como fazer denúncias de maus tratos, a organização repassa alimentos e cuida da saúde dos animais, em colaboração com o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), uma das diretorias da Secretaria Municipal de Saúde. 

No estado da Paraíba, um estudo sobre a importância da Terapia Assistida por Animais (TAA) afirmou que esta possui o poder de melhorar o bem-estar das pessoas, ampliando suas capacidades físicas e mentais, além de uma descontração e relaxamento. A TAA é utilizada por diversos programas e projetos, visto que esta melhora o desempenho cognitivo e proporciona uma atividade prazerosa para ambos os lados. Este tipo de tratamento é utilizado como instrumento de ressocialização de apenados. 

O professor da Universidade de Osnabruck, Hans Dieter Schwind, afirma em seu estudo que a empatia dentro dos presídios pode ser desenvolvida através da pedagogia baseada em animais. Esta análise demonstrou que indivíduos encarcerados que cuidam de animais têm maior tendência a desenvolver emoções positivas e reduzir a agressividade. O projeto “Jail Dogs” no Condado de Gwinnett, foi o pioneiro neste tipo de ressocialização de detentos. 

No estado de Santa Catarina, a penitenciária de Itajaí também utilizou deste método para a ressocialização de seus apenados. O projeto “ReabilitaCão” foi criado pela agente Bruna Logen, que além de tratar das questões de maus-tratos e abandono animal, proporcionou cursos profissionalizantes de banho e tosa aos encarcerados. Esse projeto foi adotado por outras unidades prisionais no Brasil, e foi alvo de críticas positivas. 

Através de projetos como este, é possível notar a essência da coprodução, tendo em vista que  beneficiam a comunidade a partir de uma atuação conjunta do poder público, associações voluntárias e os cidadãos encarcerados. A finalidade é  que os mesmos possam voltar a ingressar na sociedade contando com  animais abandonados que também buscam seu lugar nela. 

Nossa análise final 

A coprodução apresentada no projeto “Cão Terapia” pode ser entendida, segundo as classificações do estudioso do tema Tony Bovaird (2007), como um tipo de coprodução na qual usuários/comunidade entregam serviços planejados em conjunto com profissionais.

Além de o projeto tratar da socialização entre cidadãos e animais, traz consigo uma conscientização acerca da questão animal, como o abandono e os maus-tratos. 

O funcionamento do projeto compreende a complexidade de seus agentes, visto que há uma interdependência entre eles. 

Alguns elementos essenciais da coprodução, como a transparência e a accountability, que são elementos estruturantes da coprodução,  poderiam ser mais evidentes e desenvolvidos.  

Entre os desafios para a continuidade de projetos como este, estão: transparência e indicadores, que são importantes para analisar o progresso; autonomia para os cidadãos no design; colaboração de profissionais, como adestradores; ampliar o projeto para o “pouso responsável”, criar mais proximidade entre cidadãos e os animais. 

Não temos elementos suficientes para analisar ou classificar o novo formato do projeto, tão pouco a forma de coprodução que passou a ser empregada, já que não há mais ONGs envolvidas na concepção e implantação do projeto e a participação da sociedade civil passou a ser mobilizada e viabilizada por outros canais. Até aqui, parece que o acolhimento dos bichinhos vem dando bons resultados e torcemos para que todos ganhem um lar.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Jamyly Schmitz Schroeder, Jéssica Peri, Juliana Korb Nogueira e Maysa Klausen da Silveira, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer e pelo doutorando Renato Costa, no segundo semestre de 2022.

Referências

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Uso de dados abertos para evitar e prevenir desastres: uma reflexão a partir do desastre na Lagoa da Conceição em 2021

Por Eduarda Bez Gouveia, Elisa Régis de Souza e Ana Carolina de Souza*

O foco deste trabalho está na ligação entre dados abertos e prevenção de desastres, guiada pelo desastre ocorrido na Lagoa da Conceição, no município de Florianópolis, em 2021. Para elaborar esta reflexão, foram relembradas algumas tragédias ocorridas no Brasil e apresentados dados sobre o estado de Santa Catarina. O texto perpassa pela discussão sobre o uso da nomenclatura “desastres naturais” e caracteriza o ocorrido na Lagoa. Por fim, evidenciou-se o conceito de dados abertos, a responsabilidade governamental de produzi-los, bem como exemplos de dados e organizações que são utilizadas para a prevenção, a diminuição do risco e impacto de desastres e o aumento da resiliência da população atingida por tragédias. 

Desastres no Brasil: do passado ao presente 

Ao longo da história, no período medieval e na Idade Moderna, o adensamento populacional das urbes expôs ainda mais o homem a situações de riscos (MACIEL, G. F.; TONIATI, A. L.; FERREIRA, F. O.; 2021). Os desastres,  de diferentes naturezas e magnitudes, faz parte da história do brasileiro com o passar dos anos: em 1987, Goiás vivenciou um dos maiores desastres por contaminação de substância radioativa do mundo; em 2000, o ecossistema da Baía de Guanabara ficou imerso no óleo devido a um vazamento em uma das tubulações de uma refinaria de petróleo; em 2011, a região serrana do Rio de Janeiro foi atingida por uma enchente e deslizamentos que deixaram mais de mil pessoas mortas ou desabrigadas – situação que se repetiu em 2022;  em 2015 e 2019, tivemos o rompimentos as barragens de Mariana e Brumadinho, no estado de Minas Gerais, com efeitos devastadores sobre as pessoas e o ambiente. Já em Santa Catarina, os maiores desastres registrados na região foram devido a chuvas que causaram enxurradas, deslizamentos e enchentes, conforme visto na tabela 1.

Tabela 1: Soma de desastres naturais climatológico, geológico, hidrológico, meteorológico mensais no período de 1998 a 2019 em Santa Catarina. Fonte: RAIMUNDO; MEDEIROS; COSTA; MAGNAGO, 2021, pg.405).

Apesar da chuva, fenômeno meteorológico natural que resulta na precipitação de água, ser mencionada na maioria destes desastres, ela não é a protagonista vilã desses momentos. A ideia de desastres causados somente pelas forças da natureza não é coerente com a realidade e, por isso, não utilizaremos o termo “desastre natural” durante nossas reflexões. Conforme o professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra João Arriscado, não existe propriamente um desastre natural. Em diferentes momentos, existem sempre intervenções humanas, ou de organizações ou de fatores sociais que levam a uma catástrofe. Nesse mesmo sentido,  Maciel; Toniati e Ferreira (2021, pg. 677) afirmam que, 

O  termo  desastre  ‘natural’  resulta  de  uma  combinação  de  fatores,  sendo  eles a ocorrência  de  um fenômeno  (evento  natural);  um  sistema  social  (população  exposta);  condições  de  vulnerabilidade;  e resiliência. Assim, os desastres ‘naturais’ envolvem processos naturais e sociais que comumente alteram a dinâmica social local, causando sérias depreciações e/ou danos irreversíveis, tais como perda de moradias, mortes, perda de suprimentos básicos, dentre outros tantos efeitos que permeiam, até mesmo, o psíquico dos indivíduos.

O município de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, foi palco em 2021 de uma tragédia devido ao rompimento de uma lagoa artificial de infiltração que recebe efluente tratado da Estação de Tratamento de Esgotos da região. Segundo a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), responsável pelo serviço, a grande quantidade de água da chuva nos dias que antecederam o desastre provocou o rompimento da estrutura.

O desastre na Lagoa da Conceição

No dia 25 de janeiro de 2021, aconteceu o rompimento de uma lagoa artificial de evapoinfiltração que recebe efluentes tratados da Estação de Tratamento de Esgotos da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN), onde os mais de 130 milhões de litros de matéria orgânica acabaram invadindo mais de 50 residências localizadas na servidão Manoel Luiz Duarte e adjacentes, e fluiu até a Lagoa da Conceição. Diante disso, o ocorrido acabou deixando diversas famílias desabrigadas, com danos materiais e emocionais, além de deixar às águas da tradicional Lagoa da Conceição com níveis de oxigênio perto de zero – conforme o monitoramento do Laboratório de Ficologia, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Conforme a entrevistada, moradora da região, “Foi um susto, muita água barrenta vindo, muita sujeita, fomos esperar a defesa civil e bombeiros em cima do telhado, vizinhos mergulhando na água para buscar cachorro, vizinhos que não tinham condições de sair, me senti incapaz, com medo, mas também indignada.”

Segundo a Casan, o rompimento da estrutura foi um acidente ocasionado pelo excesso de chuvas naqueles dias, porém, segundo os moradores, dias antes do ocorrido, ocorreram denúncias de que algo poderia estar errado. Técnicos da empresa visitaram o local, porém, nenhuma providência foi tomada para que a tragédia fosse evitada. Ainda segundo a morada, “Descaso, isso que foi, até hoje me sinto abandonada de ajuda pela Casan, principalmente no pós, sentimento de humilhação”. Devido ao acontecimento, a Casan foi acusada por crime de poluição ambiental e multada pela Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) no valor de R$15 milhões de reais, segundo dados da reportagem de Borges (2021) publicada no G1 SC. 

A Figura 1, a seguir, mostra o estrago e destruição que o rompimento causou aos moradores locais e a própria Lagoa da Conceição.

Figura 1: Desastre da Lagoa da Conceição. Fonte: Reprodução de  ND+ (2021)

Entre os atores envolvidos no ocorrido ou responsáveis por algum aspecto relativo ao acontecimento, podemos destacar onze, que seriam: a Casan, que é a principal envolvida, sendo uma empresa pública do estado de Santa Catarina responsável pelo tratamento de esgoto que também foi a responsável pelo rompimento da Lagoa; os moradores locais, que foram as principais vítimas, os quais se mobilizaram e conscientizaram o Ministério Público sobre o risco de alagamento na região; o Ministério Público de Santa Catarina, que abriu um inquérito civil para apurar as causas e responsabilidades do rompimento da Lagoa; a mídia, que repercutiu os fatos e exigiu esclarecimentos por parte da Casan; o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), responsável pela mobilização dos atingidos por barragens, antes, durante e depois de desastres como esse; a Comissão da Câmara dos Vereadores de Florianópolis, criada para acompanhar o processo e fazer a negociação entre os moradores e a empresa; a Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente), o principal órgão fiscalizador das questões ambientais causadas pelo rompimento; a UFSC, com laboratórios especializados para elaborar um plano de diagnóstico e recuperação dos danos ambientais; o IMA – Instituto do Meio Ambiente, órgão estadual que realizarou sobrevoo com drones para identificar a abrangência e buscaram avaliar os impactos ambientais realizando diversas vistoria na região; a Defesa Civil, responsável por toda assistência e socorro, principalmente na parte do cadastramento para oferecer apoio aos atingidos; e por fim, o Corpo de Bombeiros, equipe operacional acionada para estancar a ruptura e outra equipe de salvamento que atendeu as vítimas que tiveram seus imóveis alagados. 

Dados abertos e accountability em desastres 

Os dados abertos consistem em dados digitais brutos que são disponibilizados com características técnicas e legais necessárias, sobretudo pelo poder público, para que sejam livremente usados, reutilizados e redistribuídos por qualquer pessoa, a qualquer hora, em qualquer lugar (Murnane et al., 2019). No âmbito público, 

os dados abertos promovem transparência ao possibilitar ao cidadão ver o que o governo faz, permitindo a responsabilização dos agentes públicos e dos representantes eleitos por suas ações e decisões tomadas, além de divulgar informações governamentais capazes de ser reutilizadas e proporcionar valor social ou econômico (KLEIN; KLEIN; LUCIANO, 2019, pg. 09).

O acesso adequado às informações possibilita a fiscalização de prestação de serviços e da atuação do poder público, que muitas vezes é omisso. A transparência favorece a cidadania e permite que o cidadão acompanhe a gestão pública, analise os procedimentos de seus representantes e controle o poder público. Sendo assim, podemos considerar que uma das funções de um governo é produzir dados sobre riscos de desastres relevantes para o seu território, o que pode ser realizado em sinergia com os demais atores urbanos, como o setor privado, universidades, organizações não-governamentais e sociedade (FERRENTZ; GARCIAS; NOLI, 2020).

Historicamente, no Brasil e no resto do mundo, a ocorrência de desastres abre portas para os poderes e instituições públicas repensarem suas ações e políticas nesses âmbitos, podendo os  desastres  ser  considerados  como  laboratórios sociológicos,  permitindo  aos  cientistas  aprimorarem  suas  análises  e  compreensão  sobre  a  resiliência,  os fatores que podem contribuir ou dificultar a adoção de estratégias para fazer frente às situações adversas   (MARCHEZIN  et  al., 2012). Essa afirmação foi reforçada por Fábio Castagna da Silva, Diretor do IMA, durante entrevista às autoras, que afirmou “a gente acaba aprendendo com os erros, infelizmente é assim que se faz no brasil, se tornou um case negativo para os olhos para situações similares”. Sendo assim, os dados abertos podem também facilitar no processo de aprendizagem e melhoramento desses atores no que tange ações e políticas para prevenção, gestão e recuperação da resiliência de áreas suscetíveis a desastres. 

Existe uma série de dados que podem ser utilizados como fonte e base para a criação de estratégias de redução de riscos e danos de desastres, como por exemplo, implementação dos parâmetros de zoneamento e de uso e ocupação do solo; caracterização da região quanto os tipos de solo, bacias hidrográficas e vegetação; monitoramento das infraestruturas críticas; identificação das cotas de inundação; mapeamento das áreas de risco e vulnerabilidade social; dentre outros (FERRENTZ; GARCIAS; NOLI, 2020).

Nesse sentido, instituições e organizações vêm fazendo um trabalho significativo em prol da transparência e promoção de dados abertos. Uma destas ações é desenvolvida pela Secretaria de Estado da Defesa Civil de Santa Catarina, que criou o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), que tem o objetivo de qualificar e dar transparência à gestão de riscos e desastres no Brasil, por meio da informatização de processos e disponibilização de informações sistematizadas dessa gestão. Você pode ler mais sobre o tema aqui.  

Além disso, as organizações da sociedade civil têm atuado no engajamento e visibilidade da importância dos dados abertos relacionados a desastres, como é o caso do projeto “Dados à Prova D’Água”. O projeto foi idealizado pela Maria Alexandra Viegas Cortez da Cunha, professora da FGV em São Paulo, envolvendo a FGV, a Heidelberg University, o Institute of Global Sustainable Development e o National Disaster Monitoring and Early-Warning Centre in Brazil. A imagem 2, a seguir, mostra o uso do aplicativo.

Imagem 2: Alunas catarinenses fazendo o uso do aplicativo Dados à Prova D’Água. Fonte: Reprodução Fapesp, 2022. 

A visão geral do projeto consiste em: 

“Engajando as partes interessadas na governança sustentável do risco de inundação para a resiliência urbana. O projeto Dados à Prova D’água investiga a governança dos riscos relacionados à água, com foco nos aspectos sociais e culturais das práticas de dados. Normalmente, os dados fluem dos níveis locais para os “centros de especialização” científicos e, em seguida, alertas e intervenções relacionados a inundações retornam para os governos locais e para as comunidades. Repensar como os dados relacionados às inundações são produzidos e como eles fluem pode ajudar a construir comunidades sustentáveis ​​e resilientes às inundações”.

Conforme explanado pela professora, a ideia era simplificar o uso dos dados para comunidade, colocando eles mesmos como atores principais do compartilhamento, tornando de fato parte da cultura.

Existem também os mapeamentos colaborativos, que consistem em mapas elaborados pelos próprios usuários das informações inseridas, um conteúdo gerado pelos usuários de forma simples e voluntária. O projeto Dados à Prova D’água, em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Global Sustentável da Universidade de Warwick, desenvolveram um tutorial de mapeamento colaborativo com a OpenStreetMap: 

“a OpenStreetMap é uma ferramenta livre e colaborativa de mapeamento digital com dados abertos fundado em 2004, em que qualquer pessoa pode fornecer informações geográficas sobre elementos  presentes na superfície terrestre, tais como edifícios comerciais, escolas, hospitais, rodovias, áreas residenciais, ferrovias, etc. Todos esses componentes geográficos que são adicionados ao OSM são de conhecimento do próprio colaborador ou de fontes livres de direitos autorais.”

Os mapeamentos colaborativos mostram-se relevantes quando falamos em desastres, já que eles podem ser essenciais na fase de resposta. Por meio do mapeamento colaborativo comunidades, governos e organizações, podem ter um conhecimento mais detalhado da área e, assim, prevenir e responder a desastres de maneira mais eficaz. 

O que aprendemos com o desastre 

Com isso, é possível concluir que os dados abertos são uma ferramenta para a prevenção desastres, pois, por meio da disponibilização de dados, a população pode ter mais acesso à informação e assim entender mais sobre as características do meio em que vive (FERRENTZ; GARCIAS; NOLI, 2020). Os dados abertos podem contribuir também para  o aprimoramento e a compreensão  sobre  fatores e estratégias para fazer frente às situações adversas por parte do governo. Para atingir tal objetivo, os dados devem cumprir com requisitos importantes, como: precisam existir; precisam ser completos e sem restrições; o usuário precisa ter conhecimento da existência; e o usuário precisa ter conhecimento de como analisar e aplicar. 

Dessa forma, os dados abertos podem contribuir para a criação ou fortalecimento da resiliência de uma população, além do conhecimento dos cidadãos sobre o local onde os mesmo vivem, trazendo mais autonomia e segurança para a população local, aumentam a governabilidade, pois a transparência é uma das ferramentas essenciais para o desenvolvimento da confiança das pessoas com os representantes do Estado.

O desastre ocorrido na Lagoa da Conceição poderia ter sido evitado através do uso de dados do limite da lagoa de evapotranspiração e do monitoramento da mesma pelos órgãos responsáveis e pelos moradores vizinhos, principalmente em períodos de chuvas, quando o ambiente está mais propício para a sobrecarga dessa e de outras barragens. 

Desastres como o experienciado pelos moradores da região leste de Florianópolis não são naturais e devem ser evitados. Dessa forma, se faz necessário o amadurecimento do uso de dados para a prevenção destes ocorridos e a responsabilização dos entes envolvidos para que, além da transparência, a accountability também seja praticada. 

*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública, Eduarda Bez Gouveia, Elisa Régis de Souza e Ana Carolina de Souza, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências

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