Da ressocialização do apenado à reincidência no crime: uma responsabilidade exclusiva do Estado?

Por Liliane Mendes, Kamila Coelho e André Cardoso*

A abordagem da accountability social considera o engajamento mútuo entre o poder público, suas instituições e os cidadãos para o exercício do controle social sobre os processos e resultados da administração pública. A accountability social e a coprodução bens e serviços públicos são nossas lentes neste texto, em que buscamos refletir sobre o problema público da reincidência criminal do egresso do sistema prisional, discutindo o papel de diferentes atores para mitigação do problema e comentando sobre políticas públicas aplicadas pela gestão prisional no estado de Santa Catarina nessa área.

A reincidência em um crime, segundo o Código Penal em seu artigo 63 traz a seguinte definição:

“verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha sido condenado por crime anterior.”

No sentido amplo, consiste no novo ato delituoso cometido por um indivíduo que já tenha cometido um ou mais atos criminosos anteriormente.

As ações de uma instituição prisional a fim de prevenir a reincidência é algo que foi incorporado à função social da pena privativa de liberdade, passando a receber atenção do Poder público. Em lugar do punitivo como um fim em si mesmo, considera-se o caráter pedagógico e humanitário na Lei de execução penal, que norteará a execução da pena. Uma vez tendo sido privado a seu direito de liberdade, deve ser assegurado ao cidadão, pelo Estado, garantias mínimas constitucionais, como rege a Constituição Federal de 1988 acerca da dignidade da pessoa humana.

Apesar de ser referência nacional nas atividades laborais e ressocialização dentro dos presídios, ainda não é possível mensurar, no Estado de Santa Catarina, o quão eficiente  o sistema prisional catarinense tem sido em sua atribuição na prestação deste serviço público que lhe é atribuído.

O TCE/SC, em auditoria realizada em 2014, mostra que Estado não sabe quanto gasta por preso

e quais são os índices de reincidência nas unidades penais, e não segue diversas diretrizes da lei de execução penal, como o que se refere à alocação de presos. A lei, em seus artigos 82, § 1º, 87, 91, 93 e 102, estipula que a ocupação de cada estabelecimento penal deve se destinar a um público carcerário específico. Outro ponto verificado pela auditoria do TCE é a inexistência de registro dos índices de reincidência e o custo médio mensal de cada apenado para os cofres públicos.

Em um estudo feito por uma equipe de pesquisadores da PUC Minas, verificou-se que o tema da reincidência não tem merecido atenção por parte do aparato estatal responsável pelas políticas públicas direcionadas aos autores de ato infracional. No campo acadêmico, da mesma forma, são rarefeitas as produções científicas sobre o tema. Em função dessa lacuna de conhecimento, não existem dados oficiais e conhecimento aprofundado sobre a magnitude da reincidência no Brasil.

Sendo assim, fica impossibilitada a verificação da eficiência e efetividade das políticas de ressocialização. O que é um problema também de accountability sob a ótica da avaliação de resultados e de transparência dos gastos públicos no sistema penitenciário, o que exige informação clara e fidedigna, para avaliação da gestão das unidades prisionais e de seus resultados.

Pode-se questionar: uma instituição prisional, de posse dos devidos instrumentos legais, dotada de estrutura física, aparato estatal, armamento, sistema de monitoramento, cercado de muros e grades, é o que basta para ressocializar um indivíduo no cárcere?

No texto da LEP, como instrumento legal que norteia a execução da pena, versa em seu artigo 4º:

“O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança.”

De que modo pode haver coprodução entre o poder público, enquanto detentor da tutela do apenado, e os demais atores, como organizações comunitárias ou da sociedade civil, universidades, empresas e os próprios apenados e suas famílias e comunidades, para que se possa entender o problema e mitigá-lo?

Quando falamos em controle social acerca de um problema público, tendemos a pensar somente em um problema que nos afeta diretamente ou trás implicações negativas diretas em nosso dia-a-dia. Por isso, cobramos mais ações eficazes, mais transparência e impomos mais controle sobre o poder público. Convidamos o leitor a refletir sobre até que ponto a falta de controle e engajamento social se reflete sobre as ações do Estado, no que diz respeito ao processo de ressocialização?  Em que medida as políticas públicas pouco eficazes, ou a até mesmo negligenciadas por parte do Estado são legitimadas pela sociedade através do seu desinteresse nessa problemática?

Nos deparamos com um imenso e complexo desafio, que abarca fatores multidisciplinares, quando falamos da trajetória de um indivíduo que cumpre pena restritiva de liberdade dentro de um sistema prisional. Um aparato estatal que se espera siga as diretrizes legais para executar a pena, uma sociedade que por vezes se omite, enquanto espera um resultado eficaz do poder público. Vale refletir, ainda, que é questionável se falar em ressocialização sobre a vida de um indivíduo que muitas vezes teve seus direitos básicos negligenciados pelo Estado, como educação de qualidade, serviços de saúde e condições minimamente dignas.

Voltar a cometer um ato criminoso não é um fator que traz implicações negativas somente para o indivíduo egresso do sistema prisional, mas também para a sociedade como um todo, que tem papel importante nesse contexto, quando coopera direta ou indiretamente com o que pode ser um ciclo perverso de reincidência no crime ou um ciclo de ressocialização.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Liliane Mendes, Kamila Coelho e André Cardoso no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, no primeiro semestre de 2020.

Referências

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>

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http://portal.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20181210100418