A transparência dos dados e a sobrevivência de transexuais

Por Shely de Farias, Valeska Boscato Eede e Carlos Eduardo Machado Massulo*

Entre os instrumentos para garantir os direitos básicos à vida dos transexuais e enfrentar as desigualdades históricas  que afetam essa população, estão as leis e o aparato estatal para seu cumprimento. Apesar da importância das leis, apenas isso não garante a proteção à vida dos transexuais. É importante que se tenha conhecimento dessas leis e que as informações sobre esse tema, que ainda hoje é um tabu, sejam difundidas para a sociedade. Os dados sobre o cumprimento ou não da legislação são também fundamentais para a manutenção e o aprimoramento das políticas que afetam diretamente a sobrevivência dos transexuais.  

O Brasil está dentro do grupo de países com maior número de leis em defesa das pessoas LGBTQIA+. A Constituição de 1988, apesar de não fazer menção explícita ao tema, assegura em diversos artigos a todo e qualquer cidadão o direito à vida, à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à igualdade, à liberdade, bem como aos direitos civis e políticos. 

Há também  leis  específicas, como a Portaria nº 2.836 do Ministério da Saúde, em 2011, que estabeleceu a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, com o objetivo de promover a saúde dessa população, instituindo mecanismos de gestão para atingir mais equidade no Sistema Único de Saúde, SUS, e a Resolução nº 175, de 2013, do Conselho Nacional de Justiça, que determinou proibição às autoridades competentes de recusarem habilitar ou celebrar o casamento civil entre pessoas do mesmo gênero. Ainda, em 2019, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, o STF decretou a possibilidade de atos homofóbicos e transfóbicos serem punidos como racismo, com base na Lei nº 7.716/1989, até que uma lei específica que trate sobre a homofobia e transfobia seja elaborada.

Na imagem 1, a seguir, é possível ver a situação atual quando o assunto são leis relacionadas à orientação sexual no mundo. A coloração varia entre aqueles com maior aparato protetivo legal – quanto mais intenso o azul, mais desenvolvido é o arcabouço legal de proteção de direitos – e aqueles com maior aparato legal voltado à criminalização, em que quanto mais intenso o  vermelho, mais fortes são as penalidades.

Imagem 1 – Leis de orientação sexual no mundo

Fonte: ILGA (2020)

Em contrapartida, ao buscar por dados em relação à violência às pessoas LGBTQIA+, podemos identificar que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo há alguns anos, além de registrar outros atos de crueldade. Segundo o projeto de pesquisa Trans Murder Monitoring (TMM), que monitora, coleta e analisa os relatórios de homicídios de pessoas trans e com diversidade de gênero em todo o mundo, desde o início do levantamento, o Brasil tem sido o país que mais reporta assassinatos de pessoas trans no mundo. 

Dados atualizados em 2021 pela Transgender Europe (TGEU) mostram que, do total de 4.042 assassinatos catalogados, 1.549 foram no Brasil. Ou seja, sozinho, o país acumula 38,2% de todas as mortes notificadas de pessoas trans do mundo. A atualização de 2021 revelou, ainda, o total de 375 casos reportados de pessoas trans em 74 países em todo o mundo, entre 1 de outubro de 2020 e 30 de setembro de 2021. Conforme é possível visualizar no gráfico a seguir (Imagem 2), o Brasil permanece como o país que mais assassinou pessoas trans do mundo neste período, com 125 mortes, seguido do México (65) e dos Estados Unidos (53).

Imagem 2 – Gráfico: Levantamento Assassinatos TGEU

Fonte: Antra (2022)

Segundo a TGEU, no entanto, esses números não representam a transfobia no Brasil, já que não existem dados oficiais sobre a população trans. São redes como o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), Antra e a Rede Trans que fazem o levantamento desses dados. Além disso, estima-se uma  quantidade gritante de casos não reportados e mortes com motivação transfóbica não registradas no sistema  de segurança pública. 

Mas quais os motivos para o contraste: um dos países que tem mais leis de proteção à diversidade de gênero é também o que mais mata? O caminho que buscamos para entender essa questão foi pela accountability e seus princípios, sendo ela uma obrigação que os governos e agentes públicos têm de justificar e explicar suas ações (answerability) e serem responsabilizados por seus atos e omissões (enforcement). Uma das dimensões essenciais para se garantir a accountability é a informação, disponibilizada de forma transparente e confiável, pois sem isso não é possível aplicar os instrumentos de controle e encontrar soluções para os problemas identificados.

A informação pública possibilita a accountability, enriquece o debate para a criação e avaliação das políticas públicas, reforça a defesa dos direitos humanos e ajuda a prevenir e  combater a corrupção. Com a transparência de dados e informações, os cidadãos podem inclusive apurar se tais informações estão de acordo com a realidade. O que vemos no Brasil com a falta de dados oficiais sobre as mortes dos transexuais parte de uma prerrogativa em que, se não há dados, não há responsabilização. A ausência de dados qualificados e disponíveis é um mecanismo que o governo e outros responsáveis utilizam para evitar a responsabilização.

Por isso, é importante que a sociedade cobre que essas informações sejam fornecidas de forma efetiva e que haja o cumprimento dos instrumentos legais já existentes. A confiança já está afetada, o espaço público, corrompido, a violência, difundida. Para que se possa (re)construir confiança nas relações entre as pessoas e entre cidadãos e governantes, para que se possa proteger a vida e os direitos, e desenvolver a democracia, há que promover continuamente a transparência, a accountability, a participação cidadã e o controle social. Para as pessoas transexuais, é uma questão de sobrevivência.

* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Shely de Farias, Valeska Boscato Eede e Carlos Eduardo Machado Massulo, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências 

BRUNA G. BENEVIDES (Brasília). ANTRA, 2022. Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021.  Disponível em: <https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf >. Acesso em: 08 jun. de 2022.

ILGA (Brasil, 2020). Mapas: leis de orientação sexual. Este mapa é apoiado pelos dados coletados em Homofobia Patrocinada pelo Estado 2020: Atualização da Visão Geral da Legislação Global (publicado em dezembro de 2020). Disponível em: <https://ilga.org/maps-sexual-orientation-laws >. Acesso em: 06 jun. 2022.

PINHEIRO, Ester. Há 13 anos no topo da lista, Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo: segurança pública no país continua a ignorar questões de gênero e 11 estados brasileiros não têm dados sobre lgtbi+fobia. Segurança pública no país continua a ignorar questões de gênero e 11 estados brasileiros não têm dados sobre LGTBI+fobia. 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/01/23/ha-13-anos-no-topo-da-lista-brasil-continua-sendo-o-pais-que-mais-mata-pessoas-trans-no-mundo >. Acesso em: 09 jun. 2022.

Para saber mais sobre a luta para sobrevivência dos transexuais no Brasil:

[NUGEN – Núcleo De Gênero e Diversidade] Dia da Visibilidade Trans: uma linha do tempo da luta e dos direitos de travestis, transexuais e transgêneros

[UNIPÊ] Travestis-e-Transexuais-desigualdade-e-exclusão-social-.pdf (unipe.edu.br)

[POLITEIA] Pessoas autodeclaradas LGBTQIA+ no sistema penitenciário brasileiro: o que dizem (e não dizem) os dados – POLITEIA

[Associação Nacional de Travestis e Transexuais] https://antrabrasil.org/

[No Corpo Certo]  https://nocorpocerto.com/tag/trans/