Uma coprodução franca – participação social e governança compartilhada na APA da Baleia Franca

Por Gessica Silva, Amanda Arioli Putti e Rafael Tachini de Melo*

Todos os anos, entre os meses de julho e novembro, o litoral catarinense vivencia uma experiência ambiental peculiar: torna-se o principal perímetro reprodutivo e de criação de filhotes da espécie Baleia Franca Austral em águas brasileiras.

Crédito: SCPar Porto de Imbituba

A histórica tradição da caça às baleias-francas em Santa Catarina quase levou a sua extinção na década de 1970. No entanto, um esforço para a preservação da espécie resultou, em 2000, na criação da Área de Proteção Ambiental (APA) da Baleia Franca, formalizada por meio de Decreto Federal s/n° de 14 de setembro de 2000.

Também conhecida como Unidade de Conservação (UC), a APA da Baleia Franca abrange nove municípios catarinenses, desde o sul da Ilha de Santa Catarina, onde fica a capital, Florianópolis, até Balneário Rincão, na Região Sul do estado.

Por ser um território densamente ocupado e de grande fragilidade ambiental, pois abriga diversas atividades, tais como mineração, turismo, agricultura e pecuária, pesca industrial e artesanal, etc., desde sua criação, o principal desafio de gestão da UC tem sido a elaboração do seu Plano de Manejo (PM), instrumento legal necessário para o ordenamento da ocupação territorial e da utilização dos seus recursos naturais.

Entre 2000 e 2007, a APA BF foi gerida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). O período foi marcado pela criação de rotinas de trabalho e de estruturação de um Conselho Gestor, atendendo o dispositivo legal de criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC, Lei Nº 9.985 de 2000, regulamentado pelo Decreto Nº 4.340, de 22 de agosto de 2002).

Assim, em 2006, nasce o Conselho Gestor da APA da Baleia Franca – CONAPA BF, órgão formado por 42 instituições conselheiras, divididas em uma gestão paritária de três setores: 1/3 do setor público, 1/3 dos usuários dos recursos (moradores, órgãos de representação de classe, universidades etc.) e 1/3 de Organizações Não-Governamentais (ONGs).

Os representantes se submetem voluntariamente à eleição, a cada dois anos, para formação de um novo conselho. Desde 2007, com a criação de uma autarquia do Ministério do Meio Ambiente (MMA) responsável pela gestão do SNUC, a gestão da APA BF está sob responsabilidade do ICMBio.

A rede CONAPA BF tem como objetivo essencial a proteção da baleia-franca.  Sua função é contribuir para o ordenamento do território da APA, a fim de preservar o habitat de procriação da espécie. De forma consultiva, o Conselho auxilia nas decisões do ICMBio sobre questões relacionadas à gestão do território da APA como, por exemplo, na avaliação de Estudos de Impacto Ambiental (EIAS) e Relatórios de Impacto ao Meio Ambiente (RIMAS). Além disso, nesses últimos 12 anos, o CONAPA BF dedicou-se à elaboração do Plano de Manejo da UC, instrumento que rege a utilização da APA, definindo as regulamentações para o uso e ocupação do território.

Relacionamento em Rede

A rede que constitui e dá sustentação ao CONAPA BF combina características de natureza formal e informal. Formal por ser hierarquizada em sua operação. Como podemos ver na imagem a seguir, a estrutura da rede é constituída pelo presidente, servidor do ICMBio que exerce o cargo de chefe da APA BF; um comitê executivo; câmaras técnicas e grupos de trabalho. O aspecto de uma rede formal também se apresenta no Regimento Interno e na metodologia de condução das reuniões. Convidados, por exemplo, não podem ter a fala se não forem indicados pelos atores formais.

Elaborado pelos autores com base no Regimento Interno.

Já a natureza informal da rede é observada quando a pluralidade dos atores que a constitui participa nos espaços de debate e influencia as discussões e as decisões. Além disso, pelas relações e processos informais gerados a partir da interação e dos objetivos mais formalizados.

Um ponto de destaque da participação social da rede englobada pelo CONAPA é o engajamento dos integrantes e o interesse na cooperação desses nas decisões, formulação das políticas e ações propostas. Por exemplo, durante a plenária para revisão do Plano de Manejo, realizada no segundo semestre de 2018, o contexto vivenciado em dois dias de reuniões do grupo demonstrou que o interesse na participação é tanto que a metodologia de condução dos encontros precisa delimitar quantos conselheiros vão expor a sua opinião sobre cada ponto a ser debatido e o tempo de fala de cada um, rigorosamente cronometrado pela equipe do ICMBio. Ainda assim, os encontros do Conselho se estendem por horas e horas de debate.

Uma hipótese para essa característica é o envolvimento destes pelo mesmo propósito. Tal objetivo é uma prerrogativa da equipe de servidores que trabalha na construção do plano, objetivo expresso no site da rede como “buscar a participação direta dos atores sociais da região na elaboração, para que o plano de manejo seja um ‘pacto social’ que garanta um desenvolvimento sustentável e diferenciado no sentido da proteção ambiental do território”.

Esse interesse na participação também é evidenciado na quantidade de instituições que disputam as 12 vagas em cada setor, na medida em que geralmente há mais interessados do que o número de cadeiras.

Além do propósito comum, que é a elaboração do Plano de Manejo da unidade, uma vez que a normativa tornará mais clara e personalizada as regras para uso da área, cada grupo de atores busca seus interesses próprios. Entre os benefícios buscados por cada instituição participante, podem ser citados: o uso racional dos recursos naturais da região; a normatização da ocupação e utilização do solo e das águas; o uso turístico e recreativo; as atividades de pesquisa e; o tráfego local de embarcações e aeronaves.

A participação dos atores nos espaços de debate é a oportunidade para colocarem suas necessidades, discutirem as melhores saídas e entrarem em um consenso para que algo seja realizado.

Na imagem a seguir, vê-se um registro do primeiro dia de plenária para finalização do PM, em 27 de setembro de 2018.

Crédito: Géssica Silva.

Em resumo, o trabalho do CONAPA BF vive uma rica experiência de participação social e coprodução em prol da construção de um ambiente em constante evolução e aprendizagem, incluindo divergências e conflitos para a convivência entre as atividades humanas e o propósito da conservação dos biomas presentes na APA e a proteção da baleia-franca. Representa, também, uma iniciativa que atravessa mais de uma década, liderada por um órgão público e fortemente enraizada no engajamento de diversos atores, marcada por fatores como articulação de interesses, codesign de metodologias de mediação e negociação e aprendizagens, como veremos a seguir.

Uma coprodução franca

Dada a diversidade de atores que se envolve no CONAPA BF e a ênfase nos esforços de codesign do Plano de Manejo, é perceptível, através do acompanhamento de um encontro do grupo e de entrevistas com um representante de cada setor, que o Conselho é um espaço fortemente político. Aqui entendendo política como arte de negociação para compatibilizar interesses.

1º dia de plenária para finalização do PM, em 27/09/2018.
Crédito: Géssica Silva

Ao longo da elaboração do Plano de Manejo, foi necessário o codesign de metodologias de mediação, negociação e comunicação para que o projeto desenvolvido em conjunto pudesse tomar forma. Esse processo foi do início ao fim discutido com as entidades participantes, através de oficinas de planejamento participativo, grupos de trabalho, câmaras técnicas, oficinas setoriais, intersetoriais e intrassetoriais e nas próprias assembleias ordinárias do Conselho, que ocorrem, no mínimo, quatro vezes ao ano.

Tinha razão o professor Francisco G. Heidemann, catedrático da gestão pública que em 15 de agosto de 2018 disse em sala de aula que a democracia é cara e demorada, propriedades que fizeram, nesse caso, e devem fazer parte de processos democráticos.

Para a própria governabilidade do sistema, percebe-se a importância da equipe técnica do ICMBio como mediadora dos debates, colocando na mesa de discussão o ponto de vista institucional e legal do órgão gestor da APA, mas aceitando a deliberação da maioria dos atores. Também revisões feitas pelo ICMBio passam pela defesa, discussão e aprovação da assembleia.

Durante a finalização do Plano de Manejo, a forma de chegar a uma “opinião comum” entre os atores pauta-se pela apresentação de propostas previamente apresentadas pelas entidades. Aqui, cabe um parênteses para o fato de que os técnicos do ICMBio se preocupam se todos entenderam as propostas, simplificando as informações quando necessário ao entendimento do interlocutor que representa a entidade. Isso denota o reconhecimento de que a participação de atores locais, como pescadores e moradores nativos, é essencial para o Plano.

Crédito: Géssica Silva

Em seguida, é aberta a rodada de discussão, com espaços para falas delimitados por tempo e número de “opinadores”, seguido de votação para verificar a concordância com a proposta. Nesse processo, vê-se debates acalorados, de prós e contras, de personalização da atuação na rede em detrimento da representação institucional e, portanto, de conflitos de interesses negociados, mas não evitados. É um processo demorado, tenso e truncado, que tem mantido a rede engajada e culminou, em 2018, no encaminhamento do que pode ser considerado o primeiro Plano de Manejo da APA da Baleia Franca, que passa agora para a aprovação do ICMBio, em Brasília.

O perfil dos diversos atores, sobretudo do Chefe da APA, coincide com aquele desenhado pelo modelo de administração pública do novo serviço público, caracterizado por Janet e Robert Denhardt como “uma alternativa para a ‘nova administração pública’ que tem origem em uma tradição mais humanista”.

O ‘Novo Serviço Público’ retira sua inspiração da teoria política democrática (especialmente enquanto preocupada com a conexão entre cidadãos e seus governos) e de abordagens alternativas à gestão e ao design organizacional. Desta maneira, o governo e, consequentemente, o servidor têm um papel de articulação e mediação dos atores e cidadãos interessados na política pública.

Neste ponto, destaca-se, como substrato da accountability democrática empreendida pelo Chefe da APA, a governança da rede, a qual inclui diferentes setores de representação institucional e participativa e tenta, a todo momento, compor com todas as partes interessadas. Também promove a responsividade da rede em face dos serviços codesenhados e coproduzidos, desde o Plano de Manejo até iniciativas que veremos a seguir.

Coprodução, codesign e cogestão. Coprodução se refere a relações regulares e de longo prazo entre profissionais prestadores de serviços públicos (em qualquer setor) e usuários, ou outros membros da comunidade, onde todas as partes fazem contribuições substanciais de recursos, protagonizando papéis diferentes de acordo com os seus interesses (BOVAIRD, 2007). A coprodução focaliza a participação do usuário ou da comunidade na entrega ou na implementação do serviço público. Codesign é a participação dos mais diversos atores no desenho do serviço público, enquanto cogestão é o engajamento dos atores interessados no gerenciamento da política pública e na prestação do serviço público. Alguns autores entendem que codesign e cogestão estão inseridos na coprodução, outros preferem distinguir bem os conceitos e práticas. Tony Bovaird, por exemplo, considera coprodução não apenas no relacionamento entre o provedor do serviço público e um conjunto de usuários de serviços públicos, mas também no Planejamento, Atribuição, Desenho, Gerenciamento, Prestação, Monitoramento e Avaliação do serviço público.

Muito além da baleia

Além da elaboração do Plano de Manejo e da avaliação, de maneira consultiva, de EIAS e RIMAS, o processo de cogestão e codesign desenvolvido no âmbito do CONAPA BF enseja o desenvolvimento de outras formas de coprodução de serviços na região da APA, para além do que está delimitado formalmente a priori.

Um dos serviços coproduzidos diz respeito, diretamente, ao objetivo básico de proteção da baleia. O Protocolo de Encalhe, elaborado por especialistas e usuários, trata de procedimentos para lidar com baleias em situação de encalhe nas praias abrangidas pela área de preservação, envolvendo ações delimitadas aos cidadãos, e aquelas a cargo das entidades comprometidas com o procedimento.

Outra circunstância de destaque na preservação do meio ambiente adequado à baleia-franca, a qual envolveu diversos atores na cogestão da APA, foi a obra de ampliação do Porto de Imbituba, realizada em 2009. Por causa do funcionamento de uma máquina de “bate-estacas”, com intenso ruído subaquático, o ICMBio embargou a obra e exigiu que fosse mitigado o impacto acústico no mar, que interfere no bem-estar dos cetáceos. Tal circunstância gerou, por parte da empresa responsável pela obra, método inédito de estaqueamento com ruído reduzido no mar. Também resultou na criação de um programa de monitoramento de baleias que é realizado até hoje.

Na interação em questão, verificou-se a coprodução na gestão da APA e uma solução para um problema específico com a participação, na esfera federal, do MMA, IBAMA, ICMBio e Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos (CMA)/ICMBio; e na esfera local, da APA BF, Prefeitura Municipal Imbituba, CIA Docas (então empresa administradora do Porto), Santos Brasil (empresa responsável pela execução das obras), e o Projeto Baleia Franca (PBF).

Programa de Monitoramento de Baleias-francas do Porto de Imbituba.
Crédito: SCPar Porto de Imbituba

O projeto de manejo da abertura da Barra da Ibiraquera também se originou de uma rede formada pela equipe da APA, denominada Comitê Gestor da abertura da barra. Este Comitê leva em consideração os interesses dos moradores locais, dos pescadores e a preservação do meio ambiente para definir o melhor momento da abertura da barra que liga o mar e a lagoa da Ibiraquera, que ocorre naturalmente pela deposição de areia pelo oceano.

Outra circunstância de destaque na preservação do meio ambiente adequado à baleia-franca, a qual envolveu diversos atores na cogestão da APA, foi a obra de ampliação do Porto de Imbituba, realizada em 2009. Por causa do funcionamento de uma máquina de “bate-estacas”, com intenso ruído subaquático, o ICMBio embargou a obra e exigiu que fosse mitigado o impacto acústico no mar, que interfere no bem-estar dos cetáceos. Tal circunstância gerou, por parte da empresa responsável pela obra, método inédito de estaqueamento com ruído reduzido no mar. Também resultou na criação de um programa de monitoramento de baleias que é realizado até hoje.

Abertura da Barra de Ibiraquera.
Crédito: Simão Marrul Filho

Além disso, há serviços coproduzidos que abarcam a aprendizagem e o compartilhamento de conhecimento entre os atores da rede CONAPA BF, envolvendo contextos que circundam o objetivo básico que os une. As Oficinas de Pesca Artesanal e Surf, por exemplo, buscam proporcionar o diálogo entre os pescadores artesanais e os surfistas, os quais compartilham o mesmo espaço, a praia, para suas respectivas atividades, sobretudo na época da pesca da tainha, quando a atividade de um pode prejudicar a do outro.

Percebe-se que a condução dessas redes pelo ICMBio busca valorizar a inclusão das populações tradicionais na Gestão Participativa e tornar as informações claras em todos os momentos do processo. Estabelece também diálogos e parcerias com o terceiro setor e com a iniciativa privada, sobretudo aqueles que causam impacto à Unidade de Conservação.

Neste contexto, com a entrega da 1ª versão do Plano de Manejo, vê-se como uma provocação para o futuro a própria manutenção da rede, buscando manter seus princípios no processo, valorizar o que foi alcançado e as aprendizagens conquistadas até aqui, com erros e acertos, sendo um grande envolvimento participativo dos atores e uma dinâmica de tomada de decisões eficiente.

Um desafio adicional é a participação destes atores em outras redes no âmbito regional, municipal e local, para que se engajem em “novas coproduções”, incluindo Planos institucionalmente exigidos, como o Plano Diretor e plano de resíduos sólidos, que, em tese, também envolvem atores presentes no CONAPA BF.

O CONAPA BF é uma iniciativa rica em práticas democráticas de governança, participação e controle social, na medida em que o Plano de Manejo foi codesenhado em rede com entidades representativas da região interessada, calcado em uma metodologia que franqueou e promoveu a participação efetiva dos interessados. Esta forma de trabalho da rede mostrou-se custosa sob a perspectiva de tempo, recursos e difusão do conhecimento de maneira permeável a todos, mas rendeu bons frutos ao desenvolvimento equilibrado e sustentável da região da APA BF.  

A rede CONAPA BF é um exemplo de que o exercício qualificado da democracia para se construir o desenvolvimento de uma região em que convivem atores com interesses tão diversos pode necessitar uma forma de organização complexa e com alta demanda de esforços e recursos, mas que nem por isso é inviável. A democracia é laboriosa, mas traz resultados profícuos à sociedade e ao cidadão.

*Texto elaborado por Amanda Arioli Putti (amandaarioli.putti@gmail.com), Géssica Silva (gessica.silvasc@gmail.com) e Rafael Tachini de Melo (rafaeltachini@gmail.com), no âmbito da disciplina Governança e Redes de Coprodução, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2018-2, no Mestrado Profissional em Administração da Udesc Esag.

Referências

BOVAIRD, Tony. Beyond engagement and participation: User and community coproduction of public services. Public administration review, v. 67, n. 5, p. 846-860, 2007.

DENHARDT, Janet. V.; DENHARDT, Robert. B. The New Public Service. Serving, not Steering. New York: M.E Sharpe, 2003.

Para saber mais sobre a APA Baleia Franca, visitar: http://www.icmbio.gov.br/apabaleiafranca/

Para saber mais sobre o Conapa, visitar: https://conapabaleiafranca.wordpress.com

Para saber mais sobre Plano de Manejo, visitar: http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/unidades-de-conservacao/plano-de-manejo

Alguns estudos já feitos sobre o Conapa:

Atores e redes na construção de territórios ambientais: o caso da APA da Baleia Franca: http://www.scielo.br/pdf/asoc/v20n2/pt_1809-4422-asoc-20-02-00039.pdf

Inovação, governabilidade e protagonismo de pessoas-chave na Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca (Santa Catarina, Brasil): http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/281118/1/Gerhardinger_LeopoldoCavaleri_D.pdf

“O Meu Lugar é do Outro”: As Vozes dos Invisíveis nos Espaços Formais de Gestão Ambiental Participativa do Território Sul da APA da Baleia Franca: http://www.anppas.org.br/encontro6/anais/ARQUIVOS/GT5-1269-1025-20120630155459.pdf