Coprodução na educação popular: o caso do 1º pré-vestibular gratuito no Norte da Ilha, em Florianópolis

Por Maicon Estevam, Gabriel da Silveira e Ricardo Souza Silva*

A educação popular é uma realidade em diversas partes do mundo, atravessando diferentes contextos históricos, tomada como ferramenta de resistência para comunidades, bem como instrumento de ascensão social, promoção da cidadania e inserção em uma realidade mais igualitária de condições e direitos. Na educação popular, educandos, educadores e espaços são marcados pela pluralidade e diversidade de identidades, origens e posicionamentos. O termo educação popular apresenta polissemia e flexibilidade, adaptando-se em contextos diversos, mas sempre objetivando o acesso ao conhecimento e a cultura, além da compreensão da multidimensionalidade do indivíduo, onde quer que seja aplicado.

No Brasil, uma teia de projetos relacionados às camadas populares germinou em todas as regiões do país. Pautados na ausência do Estado enquanto promotor de políticas públicas para as comunidades que mais precisam, tais projetos propiciam que os espaços de acesso aos direitos da cidade sejam promovidos pelas próprias iniciativas sociais e comunitárias.

Em Florianópolis, Santa Catarina, os diversos Cursinhos Comunitários evidenciam essas problemáticas. Em uma cidade com uma universidade federal e uma estadual e, ainda, com um polo tecnológico e turístico, a distância financeira entre as pessoas ainda é grande. O abismo entre estudantes de instituições privadas e públicas se verifica também no acesso ao nível superior. Nesse contexto, a educação popular surge como oportunidade de disputar uma vaga na universidade pública para os estudantes das camadas populares. Por vezes, o contraste financeiro é também geográfico, na medida em que o deslocamento das regiões periféricas da ilha até o centro, onde mais instituições de ensino se localizam, demanda muito tempo e dinheiro, devido à deficitária mobilidade urbana.

Neste cenário, em 2019, se iniciaram as aulas do primeiro Cursinho Pré-vestibular Comunitário do Norte da Ilha de Florianópolis, cuja geografia dialoga com o movimento da educação popular na cidade. O Cursinho do Zinga (Figura 1), em seu primeiro ano de atividade, preencheu mais de quatro turmas e, ao superar 40 aprovações em vestibulares ao final do ano, somou uma turma inteira de graduandos do ensino superior tangenciados pela educação popular.

Figura 1 – Logo do Cursinho do Zinga

   

A perspectiva do Cursinho do Zinga caminha junto do entendimento de práticas integradoras entre comunidade e educação. Estas são perceptíveis no contato entre o Pré-vestibular comunitário, no qual todos os professores dão aula de forma voluntária, e a Escola Básica Herondina Medeiros Zeferino, localizada no bairro Ingleses, na região Norte de Florianópolis, espaço este, cedido pela Prefeitura de forma gratuita, onde são ministradas as aulas.

Visualizar a disposição dos cursinhos populares no espaço geográfico, da mesma maneira que o público ao qual atende, as características dos estudantes, os fatores socioeconômicos, bem como a contextualização do acesso à educação durante sua trajetória estudantil, manifesta-se como uma potente amostragem de como se comporta a demografia de vestibulandos e vestibulandas das periferias.

Vislumbrando a distribuição no Mapa 1, a seguir, percebe-se que o Cursinho do Zinga é o único pré-vestibular gratuito no Norte da Ilha. Localizado mais especificamente no bairro Ingleses do Rio Vermelho, em que se nota as diferentes espacialidades constitutivas da trama social brasileira e a concentração e centralização das atividades educacionais.

      Mapa 1: Distribuição dos Cursinhos Gratuitos em Florianópolis, SC

Percebe-se que há uma maior concentração de cursinhos gratuitos na porção central da cidade. O Cursinho do Zinga se instalou em um território onde havia um vazio de preparatórios para o vestibular, o que tonifica a sua importância tanto no aspecto geográfico quanto no formativo. A inserção dos cursinhos populares na região central pode se justificar pela presença das universidades públicas UFSC e UDESC, localizadas em meio a esse espaço geográfico.

Além disso, é notável que, além da distribuição das universidades, se produz no Centro uma série de territórios anexos às edificações verticalizadas. Nas encostas dos morros, em especial ao longo do Maciço do Morro da Cruz, muitos/as trabalhadores/as se instalam a partir da possibilidade de moradia, numa cidade onde a especulação imobiliária e a segregação socioespacial corroboram para a marginalização e o adensamento populacional neste setor. 

Desta forma, não só é plausível e lógico que a maior parte dos cursinhos se posicionem no Centro, mas também é necessário, uma vez que inexiste uma real iniciativa do Estado em estimular e proporcionar o ingresso das pessoas que habitam as periferias da ilha. Portanto, é fundamental que os cursinhos populares ocupem esses lugares.

Com a inserção de um cursinho pré-vestibular gratuito, há o aumento das condições materiais para a entrada das classes populares ao ensino superior público, e o Cursinho do Zinga representa essa possibilidade na região norte da ilha. No entanto, as condições materiais por si só não garantem o ingresso, pois os processos seletivos conteudistas, em especial do vestibular da UFSC e da UDESC, fornecem uma vantagem aos estudantes do ensino médio privado e cursinhos mais alinhados com o pré-vestibular; enquanto cursinhos que projetam uma formação mais ampla precisam encontrar meios de equilibrar os processos e objetivos formativos.

Dessa maneira, importa ressaltar que o Cursinho do Zinga não é e nem pode ser um oásis da educação pré-vestibular popular no norte da ilha de Florianópolis, assim como qualquer outro cursinho popular. O Cursinho do Zinga se coloca como pioneiro na região, de forma que, para além de uma possível expansão (em turmas, voluntários e atividades formais e não formais), seja estimulada a vinda e a elaboração de novos cursinhos populares na região, corroborando com uma educação do povo para o povo, na busca de um mundo novo por meio da educação popular.

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Maicon Estevam, Gabriel da Silveira e Ricardo Souza Silva, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer  e pelo doutorando Renato Costa, em 2022.

Referências 

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Boitempo, 2019. 326 p. (Estado de sítio). Tradução de Mariana Echalar.

MARTINS, B. A Geografia do movimento popular. Monografia (Licenciatura em Geografia). Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc – 2021.SANTOS, Milton, 1926 – 2001. Sociedade e espaço: a formação social como categoria e como método. Boletim Paulista de Geografia, nº 54. São Paulo: USP, 1977, p. 81-100.

O modelo de coprodução representativa com sustentabilidade visto na prática: os exemplos da APAE e da Key Ring

Por Maria Beatriz de Oliveira e Natália Brasil Silva*

A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, APAE, promove e articula ações de defesa de direitos e prevenção, orientações, prestação de serviços e apoio à família, direcionadas à melhoria da qualidade de vida da pessoa com deficiência (PCD) intelectual e ou múltipla/autismo, e a construção de uma sociedade justa e igualitária. O Brasil conta com mais de 2.200 unidades de APAEs espalhadas pelo país, atendendo a cerca de 1.300.000 pessoas assistidas.

Essa instituição promove uma interação qualificada entre os profissionais e as famílias de PCDs, como o exemplo mostrado na Figura 1, a 30ª Feira da Esperança na Apae da unidade de Florianópolis. A Feira conta com apresentações culturais e artísticas e um bazar de eletrônicos, brinquedos, perfumes, roupas, artigos de decoração e sapatos. Além da integração entre os participantes, visa arrecadar recursos para continuar suprindo mais de 600 crianças, jovens e adultos com atendimento de saúde, educação e assistência social. Em edições anteriores da Feira, segundo o Coordenador de Divulgação Roberto Schweitzer, supriu com pelo menos 70% do custeio anual da Apae.

Figura 1 – A madrinha da Feira da Esperança 2019, Késia Martins da Silva (em pé, atrás), e o Grupo de Dança da Apae Florianópolis – Divulgação/ND

Analisando o trabalho realizado pela APAE sob o enfoque da coprodução de bens e serviços públicos, recorremos aos modelos de coprodução desenvolvidos  por José Francisco Salm e Maria Ester Menegasso (2010), a partir de três tipologias de participação. Dentre os cinco modelos de coprodução que os autores propõem, consideramos que a Coprodução Representativa com Sustentabilidade corresponde ao tipo de relação observada na APAE. Segundo os autores, esse modelo é “resultado da sinergia estabelecida na realização dos serviços públicos de que participam os cidadãos, as organizações da comunidade e o aparato administrativo do Estado que, no seu conjunto, interagem em prol do bem comum” (SALM e MENEGASSO, 2010, pg. 14). Nesse modelo, a coprodução ocorre por meio da “interação do cidadão com o aparato administrativo do Estado e da delegação de poder pelo Estado. O empowerment e a accountability são essenciais, requerendo o engajamento cívico do cidadão e da comunidade.”  (SALM e MENEGASSO, 2010, pg. 14).

O conceito de sinergia é interessantíssimo e importante nos estudos para compreender a coprodução. Sinergia é o valor alcançado pela interação entre um grupo cidadãos e profissionais durante a coprodução. Para Ostrom (1996), se há sinergia, isso  significa que foram alcançados resultados superiores àqueles que seriam obtidos caso cada parte trabalhasse isoladamente.

No trabalho da APAE, é evidente que os resultados em inserção social e profissional, educação, saúde das PCDs não seriam alcançados sem o envolvimento mútuo continuado entre profissionais, familiares, comunidade e as próprias pessoas com deficiência. O desenvolvimento social e político das pessoas envolvidas e da causa dos direitos e inclusão das PCDs também depende dessa sinergia para acontecer.

Outro exemplo desse modelo de coprodução é a The Network is the Key: How KeyRing supports vulnerable adults in the community. A instituição The KeyRing criou uma rede de apoio a adultos vulneráveis ​​em comunidades carentes na Europa, e desenvolveu uma abordagem de rede baseada em voluntários ativos dando suporte para melhorar a qualidade de vida de adultos vulneráveis. A Figura 2 mostra uma das comunidades dessa Rede.

Figura 2 – Uma das comunidades da rede The Key Ring / Fonte: KeyRing, 2013.

Mas, você deve estar se perguntando: como funcionam essas redes? 

O funcionamento das redes é simples: dez pessoas vivem a uma curta distância umas das outras. Nove dessas pessoas são adultos vulneráveis ​​e a décima é um Voluntário de Vida Comunitária (VVC), que vive sem aluguel na área da Rede.

O VVC fornece pelo menos 12 horas de seu tempo por semana para ajudar os membros com questões como contas e orçamento, ingresso na educação, emprego ou voluntariado.

A abordagem dos voluntários é de líderes, e a sua missão é envolver outros membros do KeyRing e outros cidadãos, garantindo a capacitação de outros a assumir a liderança para garantir maior eficácia, propriedade, sustentabilidade aprimorada e autonomia das pessoas e comunidades, não criando dependência nelas. Portanto, os VVCs conectam as pessoas umas às outras e a ativos comunitários mais amplos, sendo um modo de empoderar, pois ouvem, perguntam e incentivam os membros a mostrar liderança local.

Pesquisando mais sobre os temas, chegamos ao desfecho de que as duas iniciativas têm princípios semelhantes, demonstrando compaixão e empatia pelos que precisam de apoio, seja por qual for o motivo. O Estado, em ambos os casos, financia parte do trabalho das instituições, sem muita interferência em outras esferas, para que assim a comunidade voluntária e os profissionais atuem realizando esses lindos trabalhos de inclusão e assistência social – um modelo nítido de Coprodução Representativa com Sustentabilidade. Usando as premissas da coprodução (Salm, 2014), nos dois casos podemos observar a multidimensionalidade humana e o empoderamento da comunidade.

Conforme o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, a multidimensionalidade humana (em seus aspectos biológicos, econômicos, sociais e políticos) pode ser desenvolvida na medida em que o ser humano participe de diferentes espaços ou enclaves sociais. A multidimensionalidade dos espaços considera que a sociedade unicêntrica – centrada no  mercado – opõe-se a uma sociedade multicêntrica. Para ele, essa sociedade ordena, por razões substantivas e multicêntricas, espaços sociais adequadamente delimitados, o que permite a expressão da natureza humana multifacetada, de acordo com um paradigma paraeconômico (RAMOS, 1989). 

Em meio à multidimensionalidade, destaca-se o empoderamento da comunidade, uma vez que quanto mais políticas e espaços inclusivos existam, mais empoderada a comunidade se sentirá.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Maria Beatriz de Oliveira e Natália Brasil Silva, na disciplina Coprodução do Bem Público, da Universidade do Estadol de Santa Catarina, ministrada pela professora Paula Chies Schommer e pelo doutorando Renato Costa, em 2022.

Referências

APAE Floripa. Home. Disponível em: <https://www.apae.floripa.br/site/>. Acesso em: 8 dez. 2022.

‌30a Feira da Esperança abre com sucesso na sede da Apae Florianópolis | ND Mais. Disponível em: <https://ndmais.com.br/noticias/30a-feira-da-esperanca-abre-com-sucesso-na-sede-da-apae-florianopolis/>. Acesso em: 9 dez. 2022.

Governance International – KeyRing Living Support Networks. Disponível em: <https://www.govint.org/good-practice/case-studies/keyring-living-support-networks/#:~:text=KeyRing%20Living%20Support%20Networks%20are>. Acesso em: 8 dez. 2022.

‌GUERREIRO RAMOS, Alberto. A nova ciência das organizações: Uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas – Reeditado em 1989, p. 207.

KEYRING. KeyRing Networks Supported Independent Living Services Autism Learning Disabilities Mental Health. Disponível em: <https://www.keyring.org/>.

‌OSTROM, Elinor. Crossing the great divide: coproduction, synergy, and development. World Development. v.24, n.6, p.1073-1087, 1996.

SALM, J.F., MENEGASSO, M.E. Proposta de Modelos para a Coprodução do Bem Público a partir das Tipologias de Participação. XXXIV Encontro da ANPAD. Rio de Janeiro, setembro de 2010.

CÃO TERAPIA: um projeto que uniu mãos e patas

Por Jamyly Schmitz Schroeder, Jéssica Peri, Juliana Korb Nogueira e Maysa Klausen da Silveira*

“A grandeza de uma nação e seu progresso moral  podem ser avaliados pela forma como ela trata  os seus animais” (Mahatma Gandhi)

Figura 1-Logomarca Cão Terapia

Fonte: Facebook OBA!

Tratar bem seus animais reflete o perfil de cidadania em cada contexto. Em Florianópolis,  o projeto “CãoTerapia”, realizado entre 2007 e 2022, visava amenizar a solidão e os traumas dos animais resgatados a partir de um trabalho conjunto entre sociedade civil e Prefeitura.

Legislação de proteção aos animais  

O primeiro país a legislar em prol dos animais e contra os maus-tratos e a crueldade foram os Estados Unidos da América, EUA, com  a “Lei de Proteção Animal”, editada em 1781.

A primeira norma legal brasileira a dispor sobre proteção aos animais foi o Decreto nº 16.590, de 1924, que embora fosse um decreto, expedido pelo então presidente Getúlio Vargas (Poder Executivo), teve força de lei, e é conhecido até hoje como “Lei de Proteção aos Animais Brasileira”. 

Em 1988, a Constituição Federal (Brasil, 1988), seguindo a tendência mundial de preocupação com a preservação do meio ambiente, incluiu, em seu texto, um capítulo específico sobre esse assunto e nele, entre outras disposições, expressamente vedou as práticas que submetem os animais à crueldade. Os maus-tratos são regulados pelo art. 29 e 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) e pelo Decreto-Lei nº 3.688/41 (Contravenções penais). 

Somente em 2012, surge o Projeto de Lei, PL N.º 3.676, do deputado federal  Eliseu Padilha, que pleiteia a criação do Estatuto dos animais. Esse projeto de lei sintetizou sugestões das associações representativas que militam em defesa dos animais, e, acima de tudo, refletiu os anseios de parcela da sociedade engajada em exigir punição aos atos de violência praticados contra os animais.

Em Santa Catarina, duas leis que tratam do assunto merecem destaque: a Lei nº 18.058, de 2021, que altera a Lei nº 12.854, de 2003 (Código Estadual de Proteção aos Animais), a fim de incluir a garantia de disponibilização de alimento e/ou água aos animais que estão na rua, pelos cidadãos em espaços públicos no Estado de Santa Catarina. E a Lei nº 18.057, de 2021, que dispõe sobre a conscientização dos direitos dos animais domésticos e silvestres nas escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio, e adota outras providências. 

Já em Florianópolis, destacamos a Lei Complementar nº 643/2018, sobre os animais comunitários. A Lei passou a estabelecer atribuições para os voluntários da comunidade acolhedora do animal comunitário poderem manter o mesmo em sua comunidade, ou seja, o animal deixa de ser de rua, e passa ser um morador oficial do bairro. 

Casos de abandono e maus-tratos a animais domésticos na Grande Florianópolis aumentam no verão. Entre os motivos, estão os donos que viajam para a praia e deixam cães em casa sem água e ração. Em algumas situações, a prefeitura de Florianópolis, por meio da Diretoria de Bem-Estar Animal, DIBEA, age com o apoio da Guarda Municipal para poder entrar na residência, que está fechada e sem moradores, e então retirar o animal que corre risco de morrer por desidratação e inanição. O animal então é resgatado e levado para um espaço onde recebe cuidados de um protetor.

No texto base do PL 215/2007 , que busca instituir o Código Federal de Bem-Estar Animal. A Animal Legal & Historical Center defende que “a legislação ganha força e eficácia na medida em que as organizações não governamentais passam a fiscalizar o seu cumprimento e exigir a participação da sociedade na elaboração de políticas públicas em prol dos animais”.

Marco histórico e mecanismos de participação 

A partir dos anos 1980, novos espaços de participação da sociedade civil foram criados na tentativa de romper com os limites de um Estado com resquícios autoritários, centralizadores, clientelistas e patrimonialistas. O novo arcabouço constitucional criado em 1988 estabeleceu mecanismos institucionais de participação, abrindo à sociedade diferentes possibilidades de atuação no aparato estatal.

A democratização do país favorece a colaboração entre governantes e cidadãos também por meio da estratégia da coprodução. No Brasil, o debate em torno do tema de coprodução de bens e serviços públicos vem ganhando mais espaço, como salientam Rodrigues e Lui (2020, pg. 196), enumerando autores e complementando sobre o conceito de coprodução que,  

estaria associada ao compartilhamento de poderes e responsabilidades entre agentes públicos e cidadãos na produção de bens e serviços públicos. Desse modo, ela ocorre quando o Estado não está sozinho na tarefa de planejar e executar a entrega dos serviços à sociedade, dividindo essa responsabilidade com empresas, organizações do terceiro setor ou ambos, simultaneamente.

Surgiram assim experiências consideradas inovadoras por incorporarem a participação do cidadão na definição de políticas públicas e em decisões no âmbito da gestão local, a exemplo dos conselhos gestores, das conferências de políticas, dos orçamentos participativos e de outros fóruns (Novaes e Santos, 2014).

O sociólogo britânico Thomas Marshall, conhecido por seu trabalho sobre cidadania, é mencionado por Salm e Menegasso (2010) ao abordar a coprodução a partir da participação cidadã. A partir das reflexões realizadas por estes estudiosos, as quais são baseadas no estudo do sociólogo, entende-se que a coprodução só ocorre quando há oportunidade e disposição do cidadão em participar. Mas é essencial que haja oportunidade para que o cidadão possa realizar essa participação.

O cidadão pode compartilhar do poder de deliberação e decisão em prol do bem de sua comunidade. Nessa forma de participação, o cidadão se engaja em um processo de diálogo e aprendizagem em condição de igualdade com  os demais participantes, incluindo aqueles que representam o estado.

Salm e Menegasso (2010) salientam que o poder do cidadão sobre o estado é uma forma de participação que está associada ao empowerment (empoderamento), ou seja, ao poder que nasce na comunidade mercê da sinergia que resulta da interação de seus membros com os servidores públicos, ao coproduzirem um bem ou serviço público. 

Dentro deste contexto, destacam-se os elementos estruturantes da coprodução, conforme abordado por Rocha e coautores (2021), sendo estes representados na figura 2, a seguir.

Figura 2- Elementos estruturantes da coprodução

Fonte: Adaptado pelas autoras de Rocha et al (2021)

Sobre o Projeto Cão Terapia

O Cão Terapia era um encontro promovido todos os sábados – quando não chovia – para levar aos cerca de 70 animais recolhidos pela DIBEA um pouco de carinho e atenção. A Cão Terapia teve início em 2007, em uma parceria da Organização Bem-Animal, OBA!  com a Dibea, e foi finalizado em 11 de maio de 2022. Voluntários e a comunidade em geral visitavam aos sábados o canil e gatil municipal para amenizar a solidão e traumas dos animais resgatados de denúncias de maus-tratos, atropelamentos e outras situações emergenciais.

Através dos passeios, das brincadeiras, da interação e do carinho, os animais recuperam a confiança nos seres humanos e são preparados para serem inseridos em novas famílias. O principal objetivo do projeto é dar visibilidade para os animais e possibilitar a adoção consciente. A Cão Terapia é responsável, direta ou indiretamente, pelo encaminhamento de centenas de cães e gatos desde a sua criação. Além disso, possibilita a relação próxima das pessoas com os animais, tornando-se uma atividade terapêutica e também um exercício de cidadania e solidariedade. 

Segundo Fabiana Bast, Diretora da Dibea entrevistada pelas autoras, “o objetivo do projeto de passeios e socialização com os animais,era proporcionar uma relação de cuidado e carinho, juntamente com uma preparação para eles receberem uma nova família, aumentando as chances de adoção”. Ainda, segundo ela, “o projeto funcionou muito bem durante 11 anos, e atingiu muitos dos seus objetivos. A tutela dos animais era da prefeitura, bem como, os veterinários e as atividades eram realizadas dentro das dependências da Prefeitura Municipal de Florianópolis, nas instalações da Dibea no Itacurubi”. 

A idealização foi da arquiteta Ana Lúcia Martendal, que é voluntária da Organização Bem-Animal, OBA! Pelo projeto, moradores da cidade podiam retirar os animais do canil e levá-los para passeios em uma área verde de Florianópolis. “Os cães estão preparados para o passeio: estão limpos, alimentados e castrados”, diz Ana Lúcia, em entrevista ao jornalista Chico Fireman, para o Jornal G1,em junho de 2007. E acrescenta que, para participar dos passeios, a  seleção é rigorosa: todas as pessoas interessadas em passar algumas horas de folga com estes animais passavam por entrevistas.

Naquela época, haviam duas modalidades de adesão ao projeto: ou o voluntário poderia levar o cão para passear em períodos específicos (sábados, das 10h às 12h ou das 15h às 18h) ou poderia fazer uma adoção provisória do animal por todo o fim de semana, levando o bicho para casa e entregando-o na segunda-feira pela manhã.

Para a grande surpresa, já no primeiro fim de semana mais de 30 pessoas apareceram, interessadas em ganhar a companhia temporária dos cães. Segundo Ana Lúcia, “geralmente são pessoas entre 20 e 30 anos que trabalham muito ou que moram em apartamentos e não podem dar tanta atenção aos animais no dia-a-dia”.  O projeto logo surtiu efeito dentro e fora dos canis, e foram sendo percebidos no dia dos animais. “Muitos animais, que antes estavam ‘deprimidos’ e chegavam até a desenvolver doenças ocasionadas pelo isolamento, já demonstram mais vitalidade, segundo os técnicos da coordenadoria. “No canil, eles têm água, comida e roupa lavada. O que eles precisavam é de carinho”, diz Ana Lúcia.

Em 05 de outubro de 2020, a fundadora da OBA! , Ana Lúcia Martendal, concedeu entrevista ao colunista do ND Mais, Marcos Cardoso, quando falou sobre a ONG e o projeto Cão Terapia, e sua primeira interrupção das atividades em 2018:  

Como se deu a criação da OBA!? Qual o seu objetivo primordial?

O projeto Cão Terapia nasceu com o objetivo de incentivar a adoção de animais, tendo como principal foco os cães resgatados por maus-tratos pela Prefeitura de Florianópolis e que aguardavam adoção no antigo canil municipal, que naquela época – antes da construção do (CCZ) Centro de Controle de Zoonoses localizado no bairro Itacorubi –, ficava no município de São José.

A Cão Terapia começou com os passeios aos sábados à tarde para que cada animal tivesse momentos de lazer, pudesse sair da baia, receber carinho e atenção dos voluntários, mas, sobretudo, tivesse visibilidade para que, finalmente, fosse adotado. O projeto foi imediatamente abraçado pela sociedade, tornando-se parte do calendário de eventos da cidade de Florianópolis.

Como funciona a Cão Terapia?

Em fevereiro de 2009, com a inauguração do CCZ, (…) a Cão Terapia, que antes tinha uma média de 30 voluntários, passou a ter uma participação expressiva de pessoas de todas as idades, muitas vezes, chegando a 100 voluntários a cada sábado, tornando um projeto referência e conhecido nacionalmente, mobilizando muitas pessoas e apoiadores. Entretanto, em novembro de 2018, com o início da reforma e ampliação das instalações do CCZ e Dibea – que teria duração de um ano –, o projeto foi suspenso por decisão da Prefeitura.

Esta mesma entrevista foi reproduzida na íntegra pelo site da ONG Olhar Animal que faz uma nota ao final:

Nota do Olhar Animal: O belíssimo projeto Cão Terapia, da ONG OBA Floripa!, foi inexplicavelmente interrompido pela Prefeitura, em uma decisão claramente POLÍTICA e que há dois anos vêm privando os animais da benéfica visita de voluntários e de potenciais adotantes. Os cães ganhavam passeios, carinho e, muitas vezes, um lar amoroso. É VERGONHOSA a postura da Prefeitura de Florianópolis, comandada por Gean Loureiro (MDB), ao interromper uma ação tão positiva. Parabéns à ONG por este projeto e também pela atuação junto às comunidades indígenas, invariavelmente carentes e com assistência precária, seja a destinada aos humanos, seja a dirigida aos animais. (2020)

Em maio de 2022, o projeto foi suspenso em decorrência do fim do termo de cooperação que existia entre as entidades envolvidas no projeto, e houve  a necessidade de uma readequação e readaptação. Segundo Fabiana:

a participação da comunidade como voluntária sempre foi um suporte muito grande para o projeto e atuação da Dibea. E com o término do termo de cooperação entre a entidade OBA e a Prefeitura, não houve mais interesse da Prefeitura em renovar, por uma série de problemas que aconteceram após a pandemia. Um fator importante foi o aumento do número de animais, chegando a mais de 200 animais, e o Cão Terapia não tinha mais uma estrutura de voluntários capacitados para tirar todos os animais em segurança para fazer o passeio. Isso exigindo uma reformulação do projeto, atentando-se em seguir as regras do órgão e as regras técnicas dos médicos veterinários. Na ausência de uma reformulação que se adaptasse a essa nova realidade, com grande número de animais, não foi possível continuar com o Cão Terapia. 

Sobre a suspensão do projeto Cão Terapia, a OBA! (Organização Bem-Animal) fez diversos posts na sua página do Facebook, que transcrevemos:

Cão Terapia suspensa por decisão da Diretoria de Bem-Estar Animal de Florianópolis (Dibea). O Termo de Cooperação venceu e não houve interesse da Dibea em renovar a parceria, que neste mês completa 15 anos. A Dibea está conversando com profissionais em educação canina para conduzir os passeios e a socialização dos animais nas tardes de sábado. Entretanto, podemos trabalhar de forma cooperativa e colaborativa com estas profissionais,  somando esforços. (…) #EuApoioCaoTerapia” Publicação da OBA no facebook, em 14 de maio de 2022.

Cão Terapia deste Sábado,  07/05, CANCELADA! Lembramos que a Diretoria de Bem-Estar Animal de Florianópolis (Dibea) suspendeu a Cão Terapia deste sábado, 07/05/2022, em razão do término do Termo de Cooperação entre a Organização Bem-Animal (OBA!) e a Fundação Rede Solidária Somar Floripa. 

Nos últimos meses, a Dibea frequentemente tem comunicado aos munícipes a suspensão de novos resgates por estar com canis e gatis superlotados. Desta forma, reforçamos a importância do projeto Cão Terapia, que tem justamente a missão de encontrar lares amorosos e responsáveis para os animais sob tutela da Prefeitura de Florianópolis. Mesmo que não possam falar, o semblante dos animais diz tudo, não é mesmo? Temos certeza de que eles torcem para que o Termo de Cooperação seja renovado! Aliás, neste mês de maio a Cão Terapia comemora 15 anos. Parabéns para todos nós!!Publicação da OBA no facebook, em 07 de maio de 2022.

É notável o quanto o projeto gerou bons frutos, durante um período longo de 11 anos. É um prejuízo à sociedade quando um projeto assim acaba. Contudo, como observaremos a frente, a Diretoria do Bem-Estar Animal tem buscado dar sequência naquilo que mais beneficiou os animais.

Outros exemplos de coprodução com assistência de animais

Dentro do contexto do projeto “Cão Terapia”, encontra-se outros com a mesma temática,  com meios e resultados diversos. 

Em 26 de setembro de 2003, foi criado oficialmente a Organização Não Governamental de Proteção Animal e Educação Ambiental, dirigida por Maurício Varallo, chamada “Instituto É oBicho!”, que além de intermediar voluntários que abrigam os animais e que podem vir a adotá-los, e orientar sobre como fazer denúncias de maus tratos, a organização repassa alimentos e cuida da saúde dos animais, em colaboração com o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), uma das diretorias da Secretaria Municipal de Saúde. 

No estado da Paraíba, um estudo sobre a importância da Terapia Assistida por Animais (TAA) afirmou que esta possui o poder de melhorar o bem-estar das pessoas, ampliando suas capacidades físicas e mentais, além de uma descontração e relaxamento. A TAA é utilizada por diversos programas e projetos, visto que esta melhora o desempenho cognitivo e proporciona uma atividade prazerosa para ambos os lados. Este tipo de tratamento é utilizado como instrumento de ressocialização de apenados. 

O professor da Universidade de Osnabruck, Hans Dieter Schwind, afirma em seu estudo que a empatia dentro dos presídios pode ser desenvolvida através da pedagogia baseada em animais. Esta análise demonstrou que indivíduos encarcerados que cuidam de animais têm maior tendência a desenvolver emoções positivas e reduzir a agressividade. O projeto “Jail Dogs” no Condado de Gwinnett, foi o pioneiro neste tipo de ressocialização de detentos. 

No estado de Santa Catarina, a penitenciária de Itajaí também utilizou deste método para a ressocialização de seus apenados. O projeto “ReabilitaCão” foi criado pela agente Bruna Logen, que além de tratar das questões de maus-tratos e abandono animal, proporcionou cursos profissionalizantes de banho e tosa aos encarcerados. Esse projeto foi adotado por outras unidades prisionais no Brasil, e foi alvo de críticas positivas. 

Através de projetos como este, é possível notar a essência da coprodução, tendo em vista que  beneficiam a comunidade a partir de uma atuação conjunta do poder público, associações voluntárias e os cidadãos encarcerados. A finalidade é  que os mesmos possam voltar a ingressar na sociedade contando com  animais abandonados que também buscam seu lugar nela. 

Nossa análise final 

A coprodução apresentada no projeto “Cão Terapia” pode ser entendida, segundo as classificações do estudioso do tema Tony Bovaird (2007), como um tipo de coprodução na qual usuários/comunidade entregam serviços planejados em conjunto com profissionais.

Além de o projeto tratar da socialização entre cidadãos e animais, traz consigo uma conscientização acerca da questão animal, como o abandono e os maus-tratos. 

O funcionamento do projeto compreende a complexidade de seus agentes, visto que há uma interdependência entre eles. 

Alguns elementos essenciais da coprodução, como a transparência e a accountability, que são elementos estruturantes da coprodução,  poderiam ser mais evidentes e desenvolvidos.  

Entre os desafios para a continuidade de projetos como este, estão: transparência e indicadores, que são importantes para analisar o progresso; autonomia para os cidadãos no design; colaboração de profissionais, como adestradores; ampliar o projeto para o “pouso responsável”, criar mais proximidade entre cidadãos e os animais. 

Não temos elementos suficientes para analisar ou classificar o novo formato do projeto, tão pouco a forma de coprodução que passou a ser empregada, já que não há mais ONGs envolvidas na concepção e implantação do projeto e a participação da sociedade civil passou a ser mobilizada e viabilizada por outros canais. Até aqui, parece que o acolhimento dos bichinhos vem dando bons resultados e torcemos para que todos ganhem um lar.

* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Jamyly Schmitz Schroeder, Jéssica Peri, Juliana Korb Nogueira e Maysa Klausen da Silveira, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer e pelo doutorando Renato Costa, no segundo semestre de 2022.

Referências

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ROCHA, Arlindo Carvalho; SCHOMMER, Paula Chies; DEBETIR, Emiliana. PINHEIRO, Daniel Moraes. Elementos estruturantes para a realização da coprodução do bem público: uma visão integrativa. Cadernos Ebape, 19(3), 2021.

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SCHOMMER, Paula C. e TAVARES, Augusto de Oliveira. Gestão social e coprodução. Capítulo 4. In: Curso gestão social / concepção e coordenação geral, Cliff Villar; organizadores de conteúdo; João Martins de Oliveira Neto e Jeová Torres Silva Júnior. – Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha/UANE/BID/STDS-Ce, 2017. 288. il. color. (Curso em 12 Fascículos).

TANURE, J. D. O convívio com os animais como instrumento da ressocialização do apenado. 10 jun. 2020. Disponível em:<http://ri.ucsal.br:8080/jspui/bitstream/prefix/1584/1/TCCJ%C3%9ALIATANURE.pdf>. Acesso em 14 Nov 2022.

Uso de dados abertos para evitar e prevenir desastres: uma reflexão a partir do desastre na Lagoa da Conceição em 2021

Por Eduarda Bez Gouveia, Elisa Régis de Souza e Ana Carolina de Souza*

O foco deste trabalho está na ligação entre dados abertos e prevenção de desastres, guiada pelo desastre ocorrido na Lagoa da Conceição, no município de Florianópolis, em 2021. Para elaborar esta reflexão, foram relembradas algumas tragédias ocorridas no Brasil e apresentados dados sobre o estado de Santa Catarina. O texto perpassa pela discussão sobre o uso da nomenclatura “desastres naturais” e caracteriza o ocorrido na Lagoa. Por fim, evidenciou-se o conceito de dados abertos, a responsabilidade governamental de produzi-los, bem como exemplos de dados e organizações que são utilizadas para a prevenção, a diminuição do risco e impacto de desastres e o aumento da resiliência da população atingida por tragédias. 

Desastres no Brasil: do passado ao presente 

Ao longo da história, no período medieval e na Idade Moderna, o adensamento populacional das urbes expôs ainda mais o homem a situações de riscos (MACIEL, G. F.; TONIATI, A. L.; FERREIRA, F. O.; 2021). Os desastres,  de diferentes naturezas e magnitudes, faz parte da história do brasileiro com o passar dos anos: em 1987, Goiás vivenciou um dos maiores desastres por contaminação de substância radioativa do mundo; em 2000, o ecossistema da Baía de Guanabara ficou imerso no óleo devido a um vazamento em uma das tubulações de uma refinaria de petróleo; em 2011, a região serrana do Rio de Janeiro foi atingida por uma enchente e deslizamentos que deixaram mais de mil pessoas mortas ou desabrigadas – situação que se repetiu em 2022;  em 2015 e 2019, tivemos o rompimentos as barragens de Mariana e Brumadinho, no estado de Minas Gerais, com efeitos devastadores sobre as pessoas e o ambiente. Já em Santa Catarina, os maiores desastres registrados na região foram devido a chuvas que causaram enxurradas, deslizamentos e enchentes, conforme visto na tabela 1.

Tabela 1: Soma de desastres naturais climatológico, geológico, hidrológico, meteorológico mensais no período de 1998 a 2019 em Santa Catarina. Fonte: RAIMUNDO; MEDEIROS; COSTA; MAGNAGO, 2021, pg.405).

Apesar da chuva, fenômeno meteorológico natural que resulta na precipitação de água, ser mencionada na maioria destes desastres, ela não é a protagonista vilã desses momentos. A ideia de desastres causados somente pelas forças da natureza não é coerente com a realidade e, por isso, não utilizaremos o termo “desastre natural” durante nossas reflexões. Conforme o professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra João Arriscado, não existe propriamente um desastre natural. Em diferentes momentos, existem sempre intervenções humanas, ou de organizações ou de fatores sociais que levam a uma catástrofe. Nesse mesmo sentido,  Maciel; Toniati e Ferreira (2021, pg. 677) afirmam que, 

O  termo  desastre  ‘natural’  resulta  de  uma  combinação  de  fatores,  sendo  eles a ocorrência  de  um fenômeno  (evento  natural);  um  sistema  social  (população  exposta);  condições  de  vulnerabilidade;  e resiliência. Assim, os desastres ‘naturais’ envolvem processos naturais e sociais que comumente alteram a dinâmica social local, causando sérias depreciações e/ou danos irreversíveis, tais como perda de moradias, mortes, perda de suprimentos básicos, dentre outros tantos efeitos que permeiam, até mesmo, o psíquico dos indivíduos.

O município de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, foi palco em 2021 de uma tragédia devido ao rompimento de uma lagoa artificial de infiltração que recebe efluente tratado da Estação de Tratamento de Esgotos da região. Segundo a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), responsável pelo serviço, a grande quantidade de água da chuva nos dias que antecederam o desastre provocou o rompimento da estrutura.

O desastre na Lagoa da Conceição

No dia 25 de janeiro de 2021, aconteceu o rompimento de uma lagoa artificial de evapoinfiltração que recebe efluentes tratados da Estação de Tratamento de Esgotos da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN), onde os mais de 130 milhões de litros de matéria orgânica acabaram invadindo mais de 50 residências localizadas na servidão Manoel Luiz Duarte e adjacentes, e fluiu até a Lagoa da Conceição. Diante disso, o ocorrido acabou deixando diversas famílias desabrigadas, com danos materiais e emocionais, além de deixar às águas da tradicional Lagoa da Conceição com níveis de oxigênio perto de zero – conforme o monitoramento do Laboratório de Ficologia, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Conforme a entrevistada, moradora da região, “Foi um susto, muita água barrenta vindo, muita sujeita, fomos esperar a defesa civil e bombeiros em cima do telhado, vizinhos mergulhando na água para buscar cachorro, vizinhos que não tinham condições de sair, me senti incapaz, com medo, mas também indignada.”

Segundo a Casan, o rompimento da estrutura foi um acidente ocasionado pelo excesso de chuvas naqueles dias, porém, segundo os moradores, dias antes do ocorrido, ocorreram denúncias de que algo poderia estar errado. Técnicos da empresa visitaram o local, porém, nenhuma providência foi tomada para que a tragédia fosse evitada. Ainda segundo a morada, “Descaso, isso que foi, até hoje me sinto abandonada de ajuda pela Casan, principalmente no pós, sentimento de humilhação”. Devido ao acontecimento, a Casan foi acusada por crime de poluição ambiental e multada pela Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) no valor de R$15 milhões de reais, segundo dados da reportagem de Borges (2021) publicada no G1 SC. 

A Figura 1, a seguir, mostra o estrago e destruição que o rompimento causou aos moradores locais e a própria Lagoa da Conceição.

Figura 1: Desastre da Lagoa da Conceição. Fonte: Reprodução de  ND+ (2021)

Entre os atores envolvidos no ocorrido ou responsáveis por algum aspecto relativo ao acontecimento, podemos destacar onze, que seriam: a Casan, que é a principal envolvida, sendo uma empresa pública do estado de Santa Catarina responsável pelo tratamento de esgoto que também foi a responsável pelo rompimento da Lagoa; os moradores locais, que foram as principais vítimas, os quais se mobilizaram e conscientizaram o Ministério Público sobre o risco de alagamento na região; o Ministério Público de Santa Catarina, que abriu um inquérito civil para apurar as causas e responsabilidades do rompimento da Lagoa; a mídia, que repercutiu os fatos e exigiu esclarecimentos por parte da Casan; o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), responsável pela mobilização dos atingidos por barragens, antes, durante e depois de desastres como esse; a Comissão da Câmara dos Vereadores de Florianópolis, criada para acompanhar o processo e fazer a negociação entre os moradores e a empresa; a Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente), o principal órgão fiscalizador das questões ambientais causadas pelo rompimento; a UFSC, com laboratórios especializados para elaborar um plano de diagnóstico e recuperação dos danos ambientais; o IMA – Instituto do Meio Ambiente, órgão estadual que realizarou sobrevoo com drones para identificar a abrangência e buscaram avaliar os impactos ambientais realizando diversas vistoria na região; a Defesa Civil, responsável por toda assistência e socorro, principalmente na parte do cadastramento para oferecer apoio aos atingidos; e por fim, o Corpo de Bombeiros, equipe operacional acionada para estancar a ruptura e outra equipe de salvamento que atendeu as vítimas que tiveram seus imóveis alagados. 

Dados abertos e accountability em desastres 

Os dados abertos consistem em dados digitais brutos que são disponibilizados com características técnicas e legais necessárias, sobretudo pelo poder público, para que sejam livremente usados, reutilizados e redistribuídos por qualquer pessoa, a qualquer hora, em qualquer lugar (Murnane et al., 2019). No âmbito público, 

os dados abertos promovem transparência ao possibilitar ao cidadão ver o que o governo faz, permitindo a responsabilização dos agentes públicos e dos representantes eleitos por suas ações e decisões tomadas, além de divulgar informações governamentais capazes de ser reutilizadas e proporcionar valor social ou econômico (KLEIN; KLEIN; LUCIANO, 2019, pg. 09).

O acesso adequado às informações possibilita a fiscalização de prestação de serviços e da atuação do poder público, que muitas vezes é omisso. A transparência favorece a cidadania e permite que o cidadão acompanhe a gestão pública, analise os procedimentos de seus representantes e controle o poder público. Sendo assim, podemos considerar que uma das funções de um governo é produzir dados sobre riscos de desastres relevantes para o seu território, o que pode ser realizado em sinergia com os demais atores urbanos, como o setor privado, universidades, organizações não-governamentais e sociedade (FERRENTZ; GARCIAS; NOLI, 2020).

Historicamente, no Brasil e no resto do mundo, a ocorrência de desastres abre portas para os poderes e instituições públicas repensarem suas ações e políticas nesses âmbitos, podendo os  desastres  ser  considerados  como  laboratórios sociológicos,  permitindo  aos  cientistas  aprimorarem  suas  análises  e  compreensão  sobre  a  resiliência,  os fatores que podem contribuir ou dificultar a adoção de estratégias para fazer frente às situações adversas   (MARCHEZIN  et  al., 2012). Essa afirmação foi reforçada por Fábio Castagna da Silva, Diretor do IMA, durante entrevista às autoras, que afirmou “a gente acaba aprendendo com os erros, infelizmente é assim que se faz no brasil, se tornou um case negativo para os olhos para situações similares”. Sendo assim, os dados abertos podem também facilitar no processo de aprendizagem e melhoramento desses atores no que tange ações e políticas para prevenção, gestão e recuperação da resiliência de áreas suscetíveis a desastres. 

Existe uma série de dados que podem ser utilizados como fonte e base para a criação de estratégias de redução de riscos e danos de desastres, como por exemplo, implementação dos parâmetros de zoneamento e de uso e ocupação do solo; caracterização da região quanto os tipos de solo, bacias hidrográficas e vegetação; monitoramento das infraestruturas críticas; identificação das cotas de inundação; mapeamento das áreas de risco e vulnerabilidade social; dentre outros (FERRENTZ; GARCIAS; NOLI, 2020).

Nesse sentido, instituições e organizações vêm fazendo um trabalho significativo em prol da transparência e promoção de dados abertos. Uma destas ações é desenvolvida pela Secretaria de Estado da Defesa Civil de Santa Catarina, que criou o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), que tem o objetivo de qualificar e dar transparência à gestão de riscos e desastres no Brasil, por meio da informatização de processos e disponibilização de informações sistematizadas dessa gestão. Você pode ler mais sobre o tema aqui.  

Além disso, as organizações da sociedade civil têm atuado no engajamento e visibilidade da importância dos dados abertos relacionados a desastres, como é o caso do projeto “Dados à Prova D’Água”. O projeto foi idealizado pela Maria Alexandra Viegas Cortez da Cunha, professora da FGV em São Paulo, envolvendo a FGV, a Heidelberg University, o Institute of Global Sustainable Development e o National Disaster Monitoring and Early-Warning Centre in Brazil. A imagem 2, a seguir, mostra o uso do aplicativo.

Imagem 2: Alunas catarinenses fazendo o uso do aplicativo Dados à Prova D’Água. Fonte: Reprodução Fapesp, 2022. 

A visão geral do projeto consiste em: 

“Engajando as partes interessadas na governança sustentável do risco de inundação para a resiliência urbana. O projeto Dados à Prova D’água investiga a governança dos riscos relacionados à água, com foco nos aspectos sociais e culturais das práticas de dados. Normalmente, os dados fluem dos níveis locais para os “centros de especialização” científicos e, em seguida, alertas e intervenções relacionados a inundações retornam para os governos locais e para as comunidades. Repensar como os dados relacionados às inundações são produzidos e como eles fluem pode ajudar a construir comunidades sustentáveis ​​e resilientes às inundações”.

Conforme explanado pela professora, a ideia era simplificar o uso dos dados para comunidade, colocando eles mesmos como atores principais do compartilhamento, tornando de fato parte da cultura.

Existem também os mapeamentos colaborativos, que consistem em mapas elaborados pelos próprios usuários das informações inseridas, um conteúdo gerado pelos usuários de forma simples e voluntária. O projeto Dados à Prova D’água, em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Global Sustentável da Universidade de Warwick, desenvolveram um tutorial de mapeamento colaborativo com a OpenStreetMap: 

“a OpenStreetMap é uma ferramenta livre e colaborativa de mapeamento digital com dados abertos fundado em 2004, em que qualquer pessoa pode fornecer informações geográficas sobre elementos  presentes na superfície terrestre, tais como edifícios comerciais, escolas, hospitais, rodovias, áreas residenciais, ferrovias, etc. Todos esses componentes geográficos que são adicionados ao OSM são de conhecimento do próprio colaborador ou de fontes livres de direitos autorais.”

Os mapeamentos colaborativos mostram-se relevantes quando falamos em desastres, já que eles podem ser essenciais na fase de resposta. Por meio do mapeamento colaborativo comunidades, governos e organizações, podem ter um conhecimento mais detalhado da área e, assim, prevenir e responder a desastres de maneira mais eficaz. 

O que aprendemos com o desastre 

Com isso, é possível concluir que os dados abertos são uma ferramenta para a prevenção desastres, pois, por meio da disponibilização de dados, a população pode ter mais acesso à informação e assim entender mais sobre as características do meio em que vive (FERRENTZ; GARCIAS; NOLI, 2020). Os dados abertos podem contribuir também para  o aprimoramento e a compreensão  sobre  fatores e estratégias para fazer frente às situações adversas por parte do governo. Para atingir tal objetivo, os dados devem cumprir com requisitos importantes, como: precisam existir; precisam ser completos e sem restrições; o usuário precisa ter conhecimento da existência; e o usuário precisa ter conhecimento de como analisar e aplicar. 

Dessa forma, os dados abertos podem contribuir para a criação ou fortalecimento da resiliência de uma população, além do conhecimento dos cidadãos sobre o local onde os mesmo vivem, trazendo mais autonomia e segurança para a população local, aumentam a governabilidade, pois a transparência é uma das ferramentas essenciais para o desenvolvimento da confiança das pessoas com os representantes do Estado.

O desastre ocorrido na Lagoa da Conceição poderia ter sido evitado através do uso de dados do limite da lagoa de evapotranspiração e do monitoramento da mesma pelos órgãos responsáveis e pelos moradores vizinhos, principalmente em períodos de chuvas, quando o ambiente está mais propício para a sobrecarga dessa e de outras barragens. 

Desastres como o experienciado pelos moradores da região leste de Florianópolis não são naturais e devem ser evitados. Dessa forma, se faz necessário o amadurecimento do uso de dados para a prevenção destes ocorridos e a responsabilização dos entes envolvidos para que, além da transparência, a accountability também seja praticada. 

*Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública, Eduarda Bez Gouveia, Elisa Régis de Souza e Ana Carolina de Souza, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências

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Tendências na padronização e divulgação de dados contábeis dos clubes de futebol brasileiros

Por Atila Alencar Rodrigues e João Felipe Dorneles Tournier*

O aumento da profissionalização dos clubes no futebol brasileiro vem gerando novos interesses e demandas dos atores envolvidos com os clubes, sejam eles os torcedores, associados, conselheiros, imprensa especializada, patrocinadores, investidores, entre outros. A informação contábil das entidades esportivas vem causando curiosidade e questionamento entre os chamados stakeholders devido aos esquemas de corrupções nos clubes, federações e confederações, e também pelo alto endividamento dos clubes brasileiros.

A divulgação das informações contábeis dos clubes que participam de competições com atletas profissionais está prevista na Lei nº 9.615 de 24 de março de 1998, conhecida como a Lei Pelé, que promoveu um avanço na regulamentação do futebol profissional no Brasil. O artigo 46-A da Lei Pelé define como prazo, para a publicação das demonstrações contábeis e dos balanços patrimoniais, o último dia do mês de abril. O artigo ainda apresenta uma série de punições aos gestores dos clubes que não cumprirem a determinação da publicação dos balanços. 

Outra ação que influencia a transparência dos clubes é o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (PROFUT), que vai além do parcelamento de dívidas. Inclui o objetivo de melhorar a gestão financeira através de comprovações de responsabilidade fiscal que demonstrem a regularidade do pagamento de tributos, salários e direitos de imagens dos atletas. 

No artigo Fatores Explicativos do Nível de Disclosure da Informação, Martins e Santos (2022) mostram a evolução da divulgação das informações contábeis dos clubes brasileiros da série A de 2018. Em comparação aos estudos de Souza et al (2016), Campeonato Brasileiro de 2013, e Mayer, Martins e Kronbauer (2018), 22 clubes foram analisados no período de 2012 a 2015, a média de divulgação foi de 68,66%, de 53,04% e 65,70% respectivamente.  

Com a obrigatoriedade da publicação anual do balanço patrimonial, muitos clubes passaram a informar seus balanços de forma complexa, sendo  que parte dos torcedores não possui conhecimento sobre análise contábil, deixando informações incompletas e despadronizadas. Conforme aumenta a profissionalização e o interesse dos stakeholders nos dados financeiros, vêm surgindo relatórios mais completos do futebol brasileiro, que agrupam elementos de outras áreas e cruzam com as informações financeiras, a fim de criar um contexto compreensível e que abarque diversos atores interessados. Em 2022, por exemplo, foi publicado o Relatório Convocados | XP: Finanças, História e Mercado do Futebol Brasileiro, da Convocados, empresa de consultoria focada em investidores no futebol, em conjunto com a XP Investimentos, que visa trazer uma visão completa da indústria. A figura 1, a seguir, ilustra a receita total dos clube da série A no ano de 2021:

Imagem 1: Receitas Totais por Clubes da Série A em 2021

Fonte: Relatório Convocados | XP: Finanças, História e Mercado do Futebol Brasileiro

A partir desse panorama, em que a transparência se tornou obrigatória e mais valorizada,  a divulgação contábil mais frequente mostrou ao público a necessidade de manter a situação financeira dos clubes saudável. A correlação entre desempenho esportivo e o endividamento dos clubes passou a ser mais visível e questionada, mostrando que os clubes endividados que montam times com performance positiva se tornaram esporádicos. Assim, a profissionalização da gestão dos clubes se torna peça fundamental na evolução esportiva e na aproximação com os torcedores.  A figura 2  ilustra a receita de transmissão por clube nos anos de 2020 e 2021:

Imagem 2: Direitos de Transmissão – Receitas por Clube (Clubes do Campeonato Brasileiro da Série A de 2022)

 Fonte: Relatório Convocados | XP: Finanças, História e Mercado do Futebol Brasileiro

A influência do desempenho esportivo não acontece apenas na arrecadação de receitas dos clubes, em que normalmente os clubes com maiores ganhos alcançam objetivos mais ambiciosos e recebem maiores cotas por isso. Influenciam também o nível de transparência e qualidade das informações contábeis divulgadas. No mesmo estudo de Martins e Santos (2022), a variável Ranking da CBF, colocada como fator de desempenho esportivo dos clubes da série A do campeonato brasileiro de 2018, confirma a relação positiva entre os dois fatores, confirmando que os clubes que obtiveram melhores resultados dentro de campo acabaram apresentando melhores níveis de divulgação contábil no período.

* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Atila Alencar Rodrigues e João Felipe Dorneles Tournier, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências

MARTINS, W. M.; SANTOS, R. R. dos. Fatores explicativos do nível de disclosure da informação contábil dos clubes de futebol brasileiros. CONTABILOMETRIA – Brazilian Journal of Quantitative Methods Applied to Accounting, Monte Carmelo, v. 9, n. 1, p. 57-72, jan.- jun./2022. 

MAYER R., MARTINS, V. Q.; KRONBAUER, C. A. A evidenciação de informações contábeis obrigatórias e voluntárias: um estudo em clubes de futebol brasileiros. In: Congresso Brasileiro de Custos, 25., 2018, Vitória. Anais […]. São Leopoldo, RS: Associação Brasileira de Custos, 2018. 

PROFUT – Mais do que o parcelamento de dívidas, uma esperança de dias melhores. Disponível em:

<https://universidadedofutebol.com.br/2020/08/08/profut-mais-do-que-o-parcelamento-de-dividas-uma-esperanca-de-dias-melhores/>. Acesso em: 04 dez. 2022.

A obrigatoriedade da publicação de balanços pelos clubes de futebol e … Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/328686/a-obrigatoriedade-da-publicacao-de-balancos-pelos-clubes-de-futebol-e-a-pandemia>. Acesso em: 03 dez. 2022.

Por que torcedores se interessam cada vez mais pelas finanças dos clubes. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/esportes/por-que-torcedores-se-interessam-cada-vez-mais-pelas-financas-dos-clubes-25231763>. Acesso em: 07 dez. 2022.

Os torcedores de futebol: uma visão atual, seus riscos e oportunidades – Opinião. Disponível em:

<https://www.infomoney.com.br/colunistas/cesar-grafietti/os-torcedores-de-futebol-uma-visao-atual-seus-riscos-e-oportunidades/>. Acesso em: 06 dez. 2022.

Privatização da Eletrobras: reflexão a partir de mudanças na fase interna preparatória de aquisições

Por Maria Fernanda Cunha Cordeiro*

Uma das empresas líder em transmissão de energia elétrica do país, a Eletrobras, Centrais Elétricas Brasileiras, passou por diversas tentativas de privatização ou capitalização até deixar de ser uma empresa estatal. Em 1990, o processo de privatizações encabeçado pelo ex-Presidente da República Fernando Collor de Mello gerou o Programa Nacional de Desestatização, PND, através da Lei nº 8.031/1990. A intenção de privatizar a Eletrobras foi fortalecida pelo governo de Itamar Franco. De acordo com um relatório elaborado pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), o programa continuou com suas metas mesmo com a renúncia de Collor, e promoveu a venda de Usiminas em 1991, a desestatização de 15 empresas no período de 1993 a 1994, a venda da Companhia Vale do Rio Doce, em 1997, a venda da Gerasul, em 1998, a venda do controle de outras três importantes geradoras de energia elétrica, em 1999, entre outros efeitos. Em 2003, o Congresso Nacional votou pela Medida Provisória nº 144,  que foi convertida na Lei nº 10.848 de 15 de março de 2004, que removeu a Eletrobras do PND. 

Em 2017, no contexto do Programa de Parcerias de Investimento, foi recomendada a inclusão da organização no PND, o que foi confirmado em 2018 pelo governo de Michel Temer, através de decretos que permitiram estudos para capitalização, conforme relata reportagem do G1. O Projeto de Lei 9463/2018 foi a primeira iniciativa legal de Temer para a privatização da organização. Esses estudos perderam a validade, pois os parlamentares estavam divididos, diversos debates aconteceram e o projeto ficou parado, sem chegar à fase de votações. Sendo assim, a empresa foi retirada do PND novamente. Em 2019, o Governo Bolsonaro conduziu ao Congresso Nacional o PL 5877/2019, que dizia respeito à redução da participação da União no quadro acionário da Eletrobras, através de uma capitalização da companhia, no entanto esse projeto também ficou parado no Poder Legislativo.

Em 2021, a elaboração de uma Medida Provisória 1.031, de 23 de fevereiro, definiu os planos do governo para a capitalização e obteve sucesso após uma longa trajetória de tentativas. A privatização foi uma promessa do Ministro da Economia, Paulo Guedes, concretizada em junho de 2021, próximo ao fim do mandato de Jair Bolsonaro. A promessa de capitalização da Eletrobras foi uma das poucas concretizadas pelo governo, e vinha sendo pretendida desde o início do mandato, sob a justificativa de possibilidade de gerar mais investimentos no setor elétrico e estimular a oferta de energia no país.

De modo geral, as privatizações podem trazer amplas reações sociais sustentadas pelos medos do que podem trazer a um país, em  aspectos sociais, econômicos e ambientais. Neste texto, busca-se refletir sobre os riscos relacionados à accountability dentro da empresa, em específico nas fases preparatórias para um processo de compra. Com a privatização, a Lei 13.303/2016, que rege as empresas públicas, incluindo seus processo de licitações, passa a não ser mais aplicável à Eletrobras, assim como os regulamentos internos associados a ela. Os processos aqui analisados se referem à subsidiária CGT Eletrosul, sediada  em Florianópolis, onde atuei como estagiária no Setor de Administração de Materiais (SETAM) do Departamento de Operações e Logísticas.

Antes da privatização, o processo para realizar uma  compra seguia as seguintes etapas: análise da demanda, gestão de estoque (na qual são calculadas as quantidades necessárias para compra), contato com fornecedores, mapa de preço (incluindo cálculo de ICMS, IPI e DIFAL), elaboração de um Termo de Referência completo, conforme determinado pela lei, análise detalhada do Termo pelo setor de Análise Crítica, correção do Termo após a análise (quantas vezes necessário) e, por fim, o envio do documento e processo para o setor responsável pela licitação. 

É notável a profundidade que um processo de aquisição requeria. Isso  mudou completamente após a capitalização, uma vez que as etapas (logo após a privatização) tornaram-se as seguintes: análise da demanda, gestão de estoque, relatório de preços anteriores, elaboração de um Termo de Referência muito mais simples, revisão básica da análise crítica e envio para o setor responsável pela licitação.

Com a mudança, pode-se observar, por exemplo, que os dados utilizados nos relatórios de preços não foram atualizados, pois eram usados os de processos antigos. A revisão pelo setor de análise crítica, por reflexo, tornou-se  mais simples. Sem regulamentos, a padronização dos procedimentos foi afetada, pois cada setor passou a  desenvolver seu trabalho conforme considerou pertinente, sem uma referência ou orientação. Além disso, podemos refletir acerca do setor de Análise Crítica, que era um dos principais mecanismos de fiscalização dentro da fase preparatória, mas como se baseava na Lei, ficou sem saber o que fiscalizar. Ainda nos primeiros dias de empresa privada, o setor estava cobrando informações e procedimentos que pareciam ser sem sentido do ponto de vista da eficiência.

A experiência vivenciada permitiu observar que, em processos de desestatização, principalmente em empresas de grande porte, existem dificuldades naturais nos andamentos de algumas atividades, incluindo aquelas mais específicas, como os procedimentos acerca da fase preparatória de uma licitação. No entanto, é válido refletir sobre o tempo que a empresa teve para se preparar para a efetiva capitalização. Em procedimentos como esse, a organização poderia ter conhecimento e orientação sobre as atividades, como um regulamento para ações durante o período de transição, visto que a mudança organizacional é uma consequência do processo de privatização (OLIVA, 2002).

*Texto elaborado pela acadêmica de administração pública, Maria Fernanda Cunha Cordeiro, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

Referências:

BNDES. Histórico. Disponível em: https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/desestatizacao/processos-encerrados/Historico#:~:text=1990%2F1992,-Cria%C3%A7%C3%A3o%20do%20PND&text=Em%201990%2C%20com%20a%20cria%C3%A7%C3%A3o,da%20privatiza%C3%A7%C3%A3o%20foram%20significativamente%20ampliados. Acesso em: 10 de dezembro de 2022.

CRISÓSTOMO, V. L.; GIRÃO, A. M. C. Análise do compliance das empresas brasileiras às boas práticas de governança corporativa. REVISTA AMBIENTE CONTÁBIL – Universidade Federal do Rio Grande do Norte – ISSN 2176-9036, [S. l.], v. 11, n. 2, p. 40–64, 2019. DOI: 10.21680/2176-9036.2019v11n2ID16369. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/ambiente/article/view/16369. Acesso em: 31 de outubro.

BRASIL. PL 5877/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2228666. Acesso em: 3 de novembro de 2022.

BRASIL. PL 9463/2018. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2167572. Acesso em: 3 de novembro de 2022.

CGT Eletrosul, 2022. Disponível em: https://www.cgteletrosul.com.br/. Acesso em: 10 de dezembro de 2022.

Eletrobras, 2022. Disponível em: https://eletrobras.com/pt/Paginas/Home.aspx. Acesso em: 10 de dezembro de 2022.

GONÇALVES, Júlia, Privatização no Brasil: descomplicando um tema econômico polêmico!. Politize!, 2022. Disponível em: https://www.politize.com.br/privatizacao-no-brasil/. Acesso em: 3 de novembro de 2022. 

MAZAUI, Guilherme; CASTILHOS, Roniara. Temer assina decreto que inclui a Eletrobras no programa de desestatização. G1 Globo, 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/temer-assina-decreto-que-inclui-a-eletrobras-no-programa-de-desestatizacao.ghtml. Acesso em: 10 de dezembro de 2022.

OLIVA, Eduardo de Camargo. A privatização de empresas siderúrgicas brasileiras: reflexos na gestão de recursos humanos. Revista de Administração Contemporânea [online]. 2002, v. 6, n. 1 [Acessado 11 Dezembro 2022], pp. 141-161. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1415-65552002000100009>. Epub 30 Mar 2009. ISSN 1982-7849. https://doi.org/10.1590/S1415-65552002000100009.

PINHEIRO, Armando Castelar. Privatização no Brasil: por quê? Até onde? Até quando? In: GIAMBIAGI, Fabio; MOREIRA, Maurício Mesquita (Org). A economia brasileira nos anos 90. 1. ed. Rio de Janeiro : Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 1999. p. 147-182.

Privatização da Eletrobras: entenda o que está sendo discutido! Politize!, 2021. Disponível em: https://www.politize.com.br/eletrobras-o-que-e/. Acesso em: 3 de novembro de 2022. 

Transparência e accountability na prestação de serviços públicos digitais

Por Naiala dos Santos e Tiago Batista*

Com as transformações sociais e tecnológicas contemporâneas, as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) expressam e contribuem para mudanças nas políticas públicas e nas formas de prestação do serviço público. Busca-se melhorias em processos, produtos e serviços, além do aumento na transparência e accountability das ações públicas.

A partir de mudanças na operação governamental, a presença de algoritmos na tomada de decisão tem sido crescente. A utilização de algoritmos tem o intuito de automatizar as decisões e torná-las mais efetivas, mas seu uso também pode dificultar o acesso claro às informações (Saldanha, 2020) e às decisões que estão por trás de sua produção.

Prado (2009) destaca que a democracia eletrônica deve garantir ao público a oportunidade de consultar eletronicamente as informações e não apenas obter uma permissão formal de acesso. Afirma que essa democracia eletrônica deve ser estabelecida em dois pilares: acesso, entendido como a possibilidade de obter a informação, e acessibilidade, ou a facilidade de aproximar-se da informação**. De modo que, quando não se tem bons acessos eletrônicos e acessibilidade correta das informações governamentais, não existirá o poder de julgamento, uma vez que não se consegue verificar quais são as decisões e planos da administração pública.

Isso pode ser observado quando alguém vai até uma concessionária de automóveis para comprar um carro e, a partir do seu CPF, o sistema utilizado pela loja disponibiliza os dados do cliente e quais as condições de pagamento podem ser estabelecidas no caso. Sem acesso à forma de decisão do sistema, o cliente tem dificuldades, ou não tem como contestar as decisões das condições de pagamento, podendo apenas aceitar as possibilidades ou não de comprar o carro.

Saldanha (2020) afirma que esses algoritmos não são simples e objetivos, mas estão fundamentados em diferentes percepções e entendimentos da sociedade, contendo vieses que podem em muitos casos refletir em práticas discriminatórias.

Sendo assim, torna-se importante a disponibilização para o conhecimento da população sobre a forma de funcionamento dos algoritmos que controlam a prestação de serviços públicos eletrônicos. A transparência é um instrumento que possibilita a identificação e a correção de eventuais erros. Em decorrência disso, surge o termo accountability de algoritmos, representando a responsabilização algorítmica, segundo a qual, se houver dano, este pode ser avaliado, controlado e reparado. Segundo New e Castro (2018), a accountability de algoritmos tem por objetivo promover resultados desejados ou benéficos, proteger contra resultados indesejáveis ou prejudiciais e garantir que as leis para decisões humanas possam ser utilizadas em decisões algorítmicas. 

No Brasil, a Lei 13.709/2018, chamada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD, assegura o direito à explicação sobre os critérios utilizados em uma tomada de decisão automatizada. No art. 20, § 1º afirma que “O controlador deverá fornecer, sempre que solicitadas, informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a decisão automatizada […]”. Pode inclusive ser realizada uma auditoria em caso de não oferecimento das informações.

A LGPD assegura, ainda, o direito à revisão da decisão tomada unicamente por tratamento automatizado, como explicitado no art. 20:

“O titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade” (BRASIL, 2018).

A redação original do art. 20 da LGPD possibilita a revisão por um ser humano, entretanto, em 2019, a possibilidade foi vetada pelo presidente, tornando possível apenas a revisão por outra máquina, também baseada em algoritmos.

Isto posto, podemos concluir que a tecnologia aplicada aos sistemas de e-GOV deve ser objeto de muita discussão e análise crítica, estando a e-transparência brasileira ainda em estágio embrionário, já que a disponibilização de um serviço mais célere, sem mecanismos de transparência e accountability suficientes, acaba tornando-se não democrático (SALDANHA, 2020).

*Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Naiala dos Santos e Tiago Batista, no âmbito da disciplina sistemas de accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

** Em 2005, foi lançado o Modelo de Acessibilidade de Governo Eletrônico (e-MAG), que recomenda a acessibilidade dos portais e sítios eletrônicos da administração pública ao maior número de pessoas possível, considerando as necessidades especiais de diferentes públicos que os utilizam.

Referências 

BRASIL. Lei nº 13709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). 14 ago. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 23 nov. 2022.

BRASIL. Do Eletrônico ao Digital. Ministério da Economia, 25 nov. 2019. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca-digital/do-eletronico-ao-digital. Acesso em: 6 dez. 2022.

NEW, Joshua. CASTRO, Daniel. How Policymakers Can Foster Algorithmic Accountability. 21 mai. 2019. Disponível em: http://www2.datainnovation.org/2018-algorithmic-accountability.pdf. Acesso em: 06 dez. 2022. 

PRADO, Otávio. GOVERNO ELETRÔNICO, REFORMA DO ESTADO E TRANSPARÊNCIA: O PROGRAMA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO BRASIL. 2009. Tese (Doutorado em Administração Pública e Governo) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2009. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/2501/72050100746.pdf?sequence=2&isAllowed=y. Acesso em: 23 nov. 2022.

SALDANHA, Douglas Morgan Fullin.Transparência e accountability em serviços públicos digitais. 2020. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) – Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FACE) da Universidade de Brasília, Brasília, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/38702/1/2020_DouglasMorganFullinSaldanha.pdf. Acesso em: 23 nov. 2022.

Outros artigos e links de assuntos relacionados:

AMERICAN Civil Liberties Union. Disponível em: <https://www.aclu.org/issues/racial-justice/accountability-in-artificial-intelligence>.

INSTITUTO de Tecnologia e Sociedade. Disponível em: <https://itsrio.org/pt/home/>.

SALDANHA, DOUGLAS MORGAN FULLIN e SILVA, MARCELA BARBOSA DA. Transparência e accountability de algoritmos governamentais: o caso do sistema eletrônico de votação brasileiro. Cadernos EBAPE.BR [online]. 2020, v. 18, n. spe pp. 697-712. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cebape/a/gQ4YDzBjxFp7PpK5SZHbdHL/>.