Coprodução para a inclusão: o caso do Pró Autismo Floripa

Por Giovanni Dorneles Bosio e Mariana Laporta Barbosa*

De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (2010), existem, no mundo, cerca de 70 milhões de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), um transtorno do neurodesenvolvimento que influencia no comportamento do indivíduo. Nos Estados Unidos, dados do Center of Diseases Control and Prevention (CDC) apontam para um aumento progressivo no número dessa população ao longo dos anos. No ano de 2004, o número divulgado pelo CDC era de um caso de TEA a cada 166 pessoas. Já na última publicação, em 2020, a prevalência estava em um para cada 44.

No Brasil, estima-se haver aproximadamente 2 milhões de pessoas com TEA (OMS, 2010), porém esse número ainda é incerto e precisa ser oficializado, o que deve ocorrer a partir dos dados do censo 2022, iniciado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar da incerteza numérica, sabe-se que milhares de pessoas com TEA ainda enfrentam dificuldades para obter acesso ao diagnóstico precoce, e consequentemente, às intervenções adequadas.

Por não se tratar de uma doença, o TEA não possui cura, mas sim a necessidade, que deve ser avaliada individualmente, de uma intervenção multiprofissional, que irá auxiliar a pessoa no seu desenvolvimento e promover a qualidade de vida. Crianças com o diagnóstico precoce costumam realizar uma combinação de terapias, como fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, psicopedagogia, estimulação motora, entre outras. Por isso, é comum que a somatória das intervenções necessárias possua um custo bastante elevado, sendo que, muitas vezes, essas são aliadas ao uso de medicamentos específicos.

Assim, além de múltiplos atendimentos, são necessários profissionais especializados e preparados para lidar com o transtorno, o que frequentemente apresenta-se como um desafio, devido a dois fatores estreitamente relacionados: a baixa formação de profissionais para esse tipo de atendimento e a indisponibilidade de especialistas de forma gratuita. Foi esse o cenário com que a influenciadora Laryssa Smith, administradora do perfil @familiassmith, se deparou ao compartilhar a rotina do filho, Pedro, diagnosticado com TEA. Com mais de 130 mil seguidores no instagram, Laryssa recebe diariamente relatos de pessoas que não conseguem acessar as terapias necessárias e buscam, nas suas postagens, informações sobre o TEA.

Inconformada com as dificuldades impostas para a realização das terapias multiprofissionais, Laryssa** se candidatou em 2020 ao cargo de vereadora do município de Florianópolis. Embora não tenha sido eleita, foi nesse período que ela teve a oportunidade de apresentar para a Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) a ideia de um projeto, cujo objetivo seria oferecer terapias especializadas e gratuitas a pessoas com TEA. Para demonstrar a existência da demanda percebida nas redes sociais, a influenciadora abriu um formulário online, que foi preenchido por 500 pessoas interessadas no projeto. Assim, em fevereiro de 2021 nascia o Projeto Estimular TEA, que em julho do mesmo ano passou a se chamar Pró Autismo Floripa. Inicialmente, com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Lazer (SECULT), o projeto limitava-se à terapia aquática, realizada na Piscina Pública da Passarela Nego Quirido.

No espaço concedido pela PMF, uma vez por semana, crianças e adolescentes com TEA, de 3 a 16 anos, realizam atividades de estimulação aquática, que auxiliam na diminuição do estresse, regulação de alguns comportamentos, redução da ansiedade, entre outros benefícios. Com uma equipe especializada, a terapia aquática teve uma grande procura e, logo, o projeto e a parceria cresceram, passando a oferecer outras atividades. Além do espaço da piscina, a Prefeitura passou a contribuir com o financiamento do projeto, destinando recursos públicos para o pagamento de profissionais e outras despesas. Além do investimento público, o Pró Autismo conta com doações de pessoas físicas e jurídicas, como é o caso da Cooperativa de Crédito Únilos.

Atualmente, com sede no bairro Capoeiras, na Grande Florianópolis, o Pró Autismo Floripa oferece, além da terapia aquática, atividades de estimulação motora, jiu-jitsu adaptado para TEA, pet terapia (Figura 1), terapia sensorial, terapia social e atendimento psicológico familiar. Todas as atividades são ofertadas de forma gratuita, e realizadas por profissionais treinados para o atendimento de pessoas com TEA. Para participar, é preciso realizar uma inscrição online e aguardar o contato da secretária do projeto. O que começou em fevereiro de 2021 com 20 crianças, em junho de 2022 já conta com cerca de 3.000 pessoas na lista de espera.

Figura 1 – Pet terapia realizada em parceria com o Corpo de Bombeiros de Florianópolis

Fonte: Instagram @proautismofloripa

Apesar do foco nas terapias, o trabalho do Pró Autismo Floripa vai além de benefícios individuais, contribuindo para a socialização e a inclusão de pessoas com TEA na sociedade. Um exemplo disso é a ação Criança Inclusiva, na qual crianças de 6 a 16 anos, sem autismo, podem se inscrever para participar, uma vez por semana, de uma terapia ofertada pelo projeto. A partir da interação com pessoas autistas, mediada por terapeutas, as crianças que participam da ação aprendem a conviver com a diversidade e a adaptar as brincadeiras, para que todos possam brincar.

Ao ensinar sobre a necessidade de incluir crianças com dificuldades de sociabilização, o Pró Autismo Floripa busca formar pequenos agentes de mudança, que podem levar seus aprendizados adiante, para a família, amigos e colégio. Esse trabalho é fundamental para quebrar tabus que existem na sociedade, que muitas vezes acabam barrando a inclusão de pessoas com TEA. Após sua participação na atividade, a criança sem deficiência ganha um certificado de “criança inclusiva”, personalizado com o seu nome (Figura 2).

Figura 2 – O certificado de criança inclusiva

Fonte: Instagram @proautismofloripa

Para que ocorra, o Pró Autismo Floripa necessita da participação ativa dos responsáveis, que além de terem disponível o atendimento psicológico familiar, estão diretamente envolvidos com o planejamento e desenvolvimento das terapias. Isso ocorre a partir de feedbacks realizados entre os profissionais e os familiares, buscando informações acerca de como as atividades realizadas estão repercutindo nas atitudes e comportamentos das crianças fora do projeto.

Por vivenciarem o dia a dia de crianças e adolescentes com TEA, os familiares também contribuem com as suas percepções e conhecimentos sobre o autismo, auxiliando na implementação de um projeto melhor. Um exemplo disso, relatado pela Laryssa, foi a casinha de madeira (Figura 3), que inicialmente havia sido pensada para estar no quintal da organização, na entrada. Entretanto, logo essa ideia foi descartada, pois as crianças com autismo poderiam se distrair e acabar não acessando as salas de terapia. No mesmo sentido, responsáveis que aguardavam o atendimento, relataram e pediram para que fossem retirados os brinquedos disponíveis da sala de espera do projeto. Adequações de estímulos ambientais (iluminação, ruídos etc.) são essenciais no atendimento de pessoas com TEA. Porém, com a falta de envolvimento direto de pessoas com conhecimento de causa, se tornam detalhes que podem passar despercebidos e serem negligenciados em ambientes que deveriam incluir.

Figura 3 – Casinha de madeira utilizada na terapia sensorial

Fonte: Instagram @proautismofloripa

Percebe-se no caso estudado que, ao coproduzirem o serviço, ou seja, ao realizarem o Pró Autismo de forma conjunta, as partes participantes (agentes públicos, agentes privados e cidadãos) conseguem alcançar resultados superiores àqueles que seriam obtidos caso trabalhassem isoladamente, ou seja, geram sinergia (OSTROM, 1996). Um indicativo dos bons resultados proporcionados por esse engajamento mútuo são os constantes relatos de que as crianças atendidas estão tendo mais qualidade de vida, havendo mudanças principalmente na questão do relacionamento social. De acordo com Laryssa, são frequentes os relatos de pais cujos filhos não tinham amigos antes das atividades, e isso foi proporcionado pelo projeto.

O Pró Autismo Floripa já é uma iniciativa de referência para tratamento do TEA no Brasil, sendo procurado por familiares, profissionais e autoridades, locais e nacionais, que buscam entender  o tema e replicar o projeto ou desenvolver iniciativas similares. Recentemente, foi inaugurada a segunda unidade do projeto no município de Lages, e existem conversas avançadas para a abertura em outras regiões. Então, podem ficar de olho na mídia que este projeto ainda vai dar muito o que falar!

* Texto elaborado por Giovanni Dorneles Bosio e Mariana Laporta Barbosa, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.

** Laryssa Smith é coordenadora do Pró Autismo Floripa e Presidente do Instituto Pró Autismo. Para o desenvolvimento desse texto, concedeu aos autores, no dia 7 de junho de 2022, uma entrevista de aproximadamente 1h40, realizada na sede do projeto.

PARA SABER MAIS SOBRE O TEMA:

Instagram @ProautismoFloripa

Atividade de Pet Terapia

Projeto Criança Inclusiva

REFERÊNCIAS

CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. 2021. Prevalence and Characteristics of Autism Spectrum Disorder Among Children Aged 8 Years: Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 Sites, United States, 2018. Disponível em: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/70/ss/ss7011a1.htm. Acesso em 05 de jul. de 2022.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Autism. 2010. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/autism-spectrum-disorders. Acesso em 01 de jul. de 2022.

OSTROM, E. Crossing the great divide: Coproduction, synergy, and development. World Development, v. 24, n. 6, p. 1073-1087, 1996.

PRÓ AUTISMO FLORIPA. Pró autismo Floripa. 2022. Disponível em: https://www.proautismofloripa.com.br/. Acesso em 01 de jul. de 2022.