Capital social, accountability e as relações entre sociedade civil e a Prefeitura Municipal: o Marco Regulatório das OSCs e a visão do Fórum de Políticas Públicas de Florianópolis.

Por André Manoel, Bárbara Ferrari e Júlia Wildner Cunha*

Foi com o objetivo de identificar se os mecanismos criados pelo governo municipal contribuem ou atrapalham a formação de redes baseadas em confiança com as Organizações da Sociedade Civil, que nós, estudantes da disciplina Sistemas de Accountability do curso de Administração Pública, da Udesc Esag, buscamos estudar as implicações do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) e do Decreto 17.361 em Florianópolis a partir da perspectiva do Fórum de Políticas Públicas de Florianópolis (FPPF). Vamos lá.

Em 2014, foi aprovado o MROSC (Lei nº 13.019) regulamentando as parcerias entre o governo e as Organizações da Sociedade Civil no Brasil. A lei busca facilitar e promover a igualdade de oportunidades no acesso aos recursos públicos, através de maior segurança jurídica, valorização das Organizações da Sociedade Civil, transparência na aplicação dos recursos e efetividade nas parcerias. A sua implementação busca estimular a gestão pública democrática nas diferentes esferas de governo e valoriza as organizações da sociedade civil como parceiras do Estado na garantia e efetivação de direitos.

O marco pode ser considerado uma conquista social, por sua construção amplamente democrática e participativa. Foram ouvidos 250 gestores públicos e mais de 50 mil OSCs puderam contribuir, de novembro de 2011 a junho de 2012.

A lei entrou em vigor nos municípios no dia 1º de janeiro de 2017, ano limite para que fosse regulamentada por meio de um ato administrativo local, ou seja, um decreto. É nesse contexto que entra o Fórum de Políticas Públicas de Florianópolis, espaço de diálogo e mobilização da sociedade civil, que busca ampliar a democracia, qualificando e articulando a participação cidadã, especialmente dos conselhos de políticas públicas do município.

Com o intuito de colaborar com o Poder Executivo e de alcançar uma regulamentação do MROSC no município mais próxima dos interesses das OSCs, as Organizações da Sociedade Civil articuladas pelo Fórum estudaram as mudanças decorrentes da lei nacional e promoveram o  debate a respeito da regulamentação em Florianópolis. Toda essa discussão, iniciada em meados de 2016, contou a participação de uma equipe de transição do governo municipal, para que não findasse com a troca de mandato que ocorreu logo depois em janeiro de 2017.

Apesar do compromisso com esse processo assumido pelo prefeito eleito, em março de 2017 foi publicado o Decreto 17.361, que não respondeu a grande parte das expectativas das organizações que participaram da construção conjunta e ignorando tal processo. As organizações constataram que alguns dispositivos do Decreto vinham na contramão de várias propostas do MROSC. De acordo com Cíntia de Moura Mendonça, coordenadora do FPPF, em entrevista à Rádio Udesc: “quando surgiu o Decreto, as organizações se sentiram excluídas do processo de participação porque ali mesmo já havia uma análise anterior de vários itens que precisavam ser mais debatidos e discutidos para ficar de acordo com a lei nacional”.

Uma das grandes diferenças em relação ao texto da lei nacional foi a vedação do direito de participação de dirigentes, sócios ou membros de OSCs que celebram parcerias com a prefeitura em conselhos municipais. Esta vedação e outros critérios criados não estão no MROSC. O Marco, inclusive, em momento algum coloca a participação nos conselhos como impedimento para a organização celebrar quaisquer das modalidades de parceria previstas na lei. Em relação a essa pauta, foram realizadas diversas mobilizações do Fórum de Políticas Públicas, que inclusive recorreu ao Ministério Público para garantir que não houvesse, como supunham, uma desocupação em massa dos Conselhos de Políticas Públicas em Florianópolis. Essa parte do decreto, após intensa mobilização, foi revogada e reformulada, atendendo as reivindicações.

Outro desses critérios diz respeito a prestação de contas. Enquanto o Marco Regulatório tem claramente o foco no resultado da parceria, com um olhar mais voltado ao monitoramento, o decreto municipal focaliza apenas aspectos econômico-financeiros. Segundo o relato das organizações, isso transparece certo grau de desconfiança da prefeitura em relação às organizações que com ela firmam parcerias. O que talvez dificulte a colaboração em rede entre poder público e sociedade civil.

Um aporte teórico que nos ajuda a interpretar o caso, ou seja, as relações de confiança entre Estado e sociedade civil, é o que associa capital social, redes, governança democrática e accountability.

O primeiro conceito que nos orienta e, talvez, o principal na construção da pesquisa, seja o de capital social. Mas por que esse conceito é relevante nessa análise? Baquero (2004) resgata alguns dos conceitos mais conhecidos de capital social, evidenciando que boa parte deles trata sobre confiança nas relações, engajamento em associações e como uma característica que favorece determinadas ações cooperativas.

As ideias de confiança nas relações e cooperação possibilitam a formação das redes que podem congregar atores do Estado, do mercado e da própria sociedade civil. A partir dessas redes, novos arranjos para a provisão do bem público podem surgir, algo que pode auxiliar no aprofundamento democrático. É a partir disso que se afirma que as redes constituem a matéria prima da governança pública democrática (RONCONI, 2011). Além disso, Ronconi (2011) destaca a importância de uma atitude dialógica do Estado diante dos atores que compõem essas redes: é preciso que ele promova espaços de diálogo com a sociedade civil em todas as etapas do ciclo de políticas públicas, algo que exige práticas de publicização e accountability, para que os cidadãos possam monitorar e questionar a gestão das políticas.

Corrobora com essa visão a associação das ideias de accountability democrática e controle social. Esse último pode ser compreendido como uma das formas de exercício da accountability como controle institucional durante o mandato (ABRUCIO; LOUREIRO, 2004). Além disso, vale ressaltar que a accountability como meio para a construção democrática só pode ser plenamente exercida quando a participação ativa do cidadão estiver associada ao acesso a informações públicas que possibilitem o controle (DOIN et al, 2012)

Por fim, é preciso compreender que o modelo de governança pública está associado a uma intensa mudança na gestão política. Essa mudança envolve a intensificação da cooperação entre os atores, o estabelecimento de estratégias eficiente por meio das redes e, justamente, a confiança. (KISSLER e HEIDEMANN 2006; RONCONI, 2011).

O processo que culminou com a edição do decreto do MROSC no município permite alguns apontamentos e questionamentos. Considerando que as relações entre Estado e sociedade civil nem sempre foram harmoniosas e cooperativas, o processo inicial de cooperação entre ambos aponta para a percepção da necessidade de colaboração a fim de encontrar soluções inovadoras aos problemas públicos. Entretanto, os atos que seguiram com a troca de gestão prejudicaram essa ação cooperativa.

A negação de todo o processo construído em parceria anteriormente denota, como se percebe em outros casos (processo de discussão do estatuto da cidade, processo eleitoral do conselho da cidade, aprovação da lei das OSs, por exemplo), uma atitude bastante autoritária do poder público municipal. Além disso, demonstra que não há predisposição ao diálogo e estabelecimento de consensos, algo próprio da cooperação e das redes.

Outro apontamento interessante está ligado com o processo de qualificação das OSCs para participarem de chamamento público. A prefeitura insere uma série de critérios que foram totalmente desconsiderados pela lei nacional, como forma de dar mais dinamismo às parcerias. O controle “além da conta” parece a algumas OSCs uma evidência de desconfiança em relação a sua idoneidade, mais um entrave ao estabelecimento de uma relação cooperativa e de confiança.

Por fim, pode-se dizer que o estabelecimento de relações de confiança e cooperação entre Estado e sociedade civil no município encontra uma série de dificuldades. Por um lado, a prefeitura não hesita em colocar entraves mesmo em processos avançados de cooperação e ação conjunta. Por outro, por mais que participem de diversas formas, as organizações da sociedade civil parecem estar tão acostumadas à oposição à prefeitura, encontrando  dificuldades em cooperar em determinadas situações. Para que isso seja superado, é necessário que haja mais disposição à cooperação por parte da prefeitura, ao mesmo tempo em que demonstre mais confiança nas OSCs através de seus atos.

Referências

ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças Públicas, democracia e accountability. In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2004.

BAQUERO, Marcello. Construindo uma outra sociedade: O capital social na estruturação de uma cultura política participativa no Brasil. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 21, p. 83-108, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n21/a07n21.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2018

DOIN, Guilherme A.; DAHMER, Jeferson; SCHOMMER, Paula. Chies; SPANIOL, Enio L. Mobilização social e coprodução do controle: o que sinalizam os processos de construção da Lei da Ficha Limpa e da Rede Observatório Social do Brasil de Controle Social.Pensamento & Realidade, v. 27, p. 56-78, 2012. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/pensamentorealidade/article/view/12648>. Acesso em: 12 jun. 2018

KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Governança pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade? Revista de Administração Pública, 40(3), 479-99, mai./jun. 2006. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6826/5409. Acesso: 04 jul. 2018

RONCONI, Luciana. Governança pública: um desafio à democracia (Public governance). Emancipação, [s.l.], v. 11, n. 1, p.21-34, 20 jul. 2011. Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/1696/2349>. Acesso em: 12 jun. 2018

 

* Texto elaborado por André Manoel (manoel130596@gmail.com), Bárbara Ferrari (barbaraferrari97@gmail.com) e Júlia Wildner Cunha (juwcunha@gmail.com), graduandos em administração pública da Udesc Esag, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, ministrada pela professora Paula Chies Schommer