Vida alternativa (mas nem tanto): reflexões sobre o filme Capitão Fantástico à luz da delimitação dos sistemas sociais de Guerreiro Ramos (1989)

Por Maria Clara Ames*



Quem já assistiu ao filme Capitão Fantástico (2016) (trailer) sabe do inspirador personagem de Viggo Mortensen como pai de seis filhos. Ele e sua esposa haviam optado por morar com os filhos isolados em uma floresta. Longe da sociedade, a família cria seus próprios métodos de estudo, de produção de alimentos e de cuidados com a saúde do corpo e da mente.
O filme pode levar a uma reflexão sobre a diferença entre os sistemas de ensino tradicionais e a possibilidade de outras alternativas, como o ensino em casa ou homescholing.

Outro elemento para reflexão, para o qual este texto se direciona, diz respeito à escolha dos personagens por viver uma vida alternativa e isolada da sociedade convencional. A história se desenrola quando o “capitão fantástico”, como era chamado pela esposa, fica sabendo que ela cometera suicídio, enquanto estava internada para tratamento psicológico. Diante disso, os membros da família se veem obrigados a interagir com outras pessoas, enfrentando problemas decorrentes de seu estilo de vida peculiar.

Ao abrir mão do que seria uma vida típica em seu país, especialmente sua cultura de consumo (“O negócio dos Estados Unidos são os negócios”, ironiza o personagem de Mortensen), uma vida alternativa e livre de regras estabelecidas pela sociedade nem sempre permite uma ausência de regras ou um isolamento total do convívio social. Na verdade, as regras desse pequeno grupo eram bastante rígidas e seguiam uma rotina altamente disciplinada: acordar cedo, se exercitar, se alimentar, caçar, estudar, meditar, estudar música, regar plantas, entre outras tarefas.

O filme revela dilemas e desafios em se tentar reduzir a existência a um enclave individual e privado, longe de outros grupos ou regras convencionadas. Baseando-se no paradigma paraeconômico de Guerreiro Ramos (1989), o que vemos é a substituição do enclave econômico, altamente regrado e coletivo, por um enclave muito próximo do individual/familiar, porém não livre de regras.

Segundo Ramos (1989), o ser humano se atualiza ao participar de várias esferas da vida, em espaços de igualdade (isonomia) e em outros individuais, em contextos regulados e em esferas com poucas ou nenhuma regra. Além disso, quando um enclave, como o do mercado, predomina e seu ethos se insere nos demais, as pessoas perdem essa capacidade de atualização e desenvolvimento pessoal e passam a comportar-se segundo uma determinação externa. Nesse aspecto, a família em questão se aproxima do enclave isolado, o que, segundo França-Filho (2010), não constitui propriamente um sistema social.

O filme expõe pontos interessantes sobre o estilo de vida adotado, como diferentes possibilidades de crescimento intelectual e de conhecimento sobre o meio-ambiente. Mas suas exigências eram bastante rígidas, expondo os filhos a certos riscos, privações e constrangimentos. Tanto que os avós maternos se preocupavam com a segurança e o futuro dos netos.

Além disso, a falta de relacionamentos com outras pessoas fez com que os filhos tivessem dificuldades de interação, ao ir a um centro urbano ou ao fazer algo habitual para um jovem. Os dois mais velhos passam a questionar se o “método” do pai é adequado e paralelamente tecem planos para frequentar a escola e o ensino superior. O maior deles, por exemplo, com um incrível conhecimento sobre filosofia e ciências, ilustra essa dificuldade de interação social e, ao final, parte para conhecer outros países, como que compreendendo sua carência por experiência de vida.

Apoiando-se em Ramos (1989), percebe-se que a forma de criação do Capitão Fantástico parece ter reduzido as oportunidades de participação na esfera da vida convivial e política, pois embora desde crianças conhecessem a obra de pensadores políticos, não tinham oportunidades de debater essas ideias com quem pensasse diferente, ou de contribuir na coprodução de bens e serviços públicos em sua localidade.

O filme nos permite refletir que a unidimensionalização da vida humana pode restringir a atualização, se qualquer outro enclave social vier a predominar sobre os demais possíveis (Ver artigo França-Filho). O que se pode fazer então? Deve-se procurar viver uma vida harmoniosa entre os diferentes enclaves sociais, em espaços de isonomia (orientação comunitária) e de fenonomia (orientação individual), saber agir em esferas com alta ou pouca regulação, produzir, agir e participar da vida política, desenvolver diferentes atividades em diferentes organizações e saber distinguir entre as esferas reguladas e de lógica competitiva, como o mercado formal, de esferas onde prevalecem outras lógicas. Dito de outra forma, é estar atento para que um enclave não absorva ou anule as outras esferas da vida.

Referências

Capitão Fantástico (2016). Direção: Matt Ross. Universal Pictures, EUA, 118 min.

França-Filho, Genauto Carvalho de (2010). Decifrando a noção de Paraeconomia em Guerreiro Ramos: a atualidade de sua proposição. Organizações & Sociedade, 17(52), 175-197.
Ramos, Alberto Guerreiro (1989). A nova ciência das organizações. 2a ed. Rio de Janeiro: FGV.
* Texto elaborado por Maria Clara Ames, doutoranda em administração, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público, do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc Esag.