Por Letícia Martins, Isabela Balza e Cauê Marchionatti *
Já é sabido, principalmente desde a promulgação da Lei de Acesso à Informação (LAI), em 2011, que é dever do Estado brasileiro garantir o direito de acesso à informação de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão. Ainda, que os órgãos públicos devem divulgar amplamente todas as informações de interesse coletivo relativas a sua atuação.
Nesse sentido, foram criados, nos últimos anos, organizações e índices de transparência voltados ao acompanhamento e à cobrança do poder público na aplicação de dispositivos como a LAI, a exemplo da Escala Brasil Transparente (EBT), elaborada pela Controladoria-Geral da União (CGU). Outros índices, que vão além do cumprimento de dispositivos legais, como o Corruption Perceptions Index (CPI), ou Índice de Percepção da Corrupção, produzido pela Transparência Internacional, ganham espaço e impacto na percepção política dos cidadãos.
Esse movimento de atenção à transparência pública foi acentuado com a pandemia da COVID-19, aumentando o interesse da sociedade acerca das informações sobre contratações emergenciais, doações e medidas de estímulo econômico e proteção social. É o que mostra o exemplo do Ranking de Transparência no combate à COVID-19, produzido pela Transparência Internacional – Brasil. Cresce a compreensão da população de que, a corrupção e a falta de transparência sobre critérios e processos, além de prejudicar o atendimento básico de saúde, afetam as tentativas dos governos de estimular a economia e proteger as famílias em situação vulnerável.
A descentralização administrativa, ao atribuir responsabilidade para vários níveis de governo na provisão de serviços, amplifica a necessidade e as formas de controle dos atos dos gestores públicos. Não só no que concerne à regularidade e à legalidade desses atos, mas, principalmente, à eficácia e efetividade das ações empreendidas. Assim, é imprescindível que o município disponha de um sistema de controle confiável e bem estruturado que consiga, entre outras atribuições, avaliar o cumprimento das metas estabelecidas, estar aberto ao cidadão, demonstrar a execução dos programas de governo e da execução orçamentária, prestar contas, comprovar a legalidade dos atos e avaliar os resultados quanto à eficiência e à eficácia da gestão orçamentária, financeira, patrimonial e operacional dos órgãos e entidades da administração municipal.
No município de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, que vem alcançando desempenho ruim em transparência, em comparação com outras capitais, alguns fatores recentes podem representar condições para melhorias. No âmbito do Executivo, a Secretaria Municipal da Transparência, Auditoria e Controle, juntamente com a estruturação do Sistema de Controle Interno, tem como objetivos, de acordo com sua apresentação no site, melhorar a organização e o desempenho do governo municipal e dotá-lo de ferramentas indispensáveis para o incremento da efetividade, da eficácia e da transparência das suas ações e de um eficiente instrumento de controle social.
No âmbito do Legislativo, uma proposta de “Política de Transparência na Administração Pública de Florianópolis” foi elaborada pela CPE: Comissão Parlamentar Especial pela Transparência na Administração Pública de Florianópolis, criada através do Requerimento 382/2019 em novembro de 2019.
A CPE foi composta pela Câmara Municipal aliada a membros da área acadêmica, de órgãos de controle e da sociedade civil, sendo eles: o grupo de pesquisa Politeia, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), a Controladoria Geral da União (CGU), o Ministério Público de Contas (MPC/SC), o grupo de pesquisa Nigep, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), o Observatório Social de Florianópolis, o Instituto Politize! e o Tribunal de Contas do Estado (TCE/SC). A comissão reuniu-se entre 2019 e 2020 para diagnosticar as práticas de transparência no Executivo e no Legislativo municipais, estudar, debater e planejar questões acerca de boas práticas, melhorias e estratégias para aumentar a transparência pública no município.
Foram constituídos três grupos de trabalho na CPE: Legislação e Transparência, Serviços e Compras Públicas e Participação e Controle Social. O primeiro grupo observou o envolvimento do município em relação às obrigações presentes na Lei da Transparência, Lei de Acesso à Informação e Lei de Responsabilidade Fiscal. Como guia para o diagnóstico, o grupo utilizou um instrumento disponibilizado pelo Ministério Público de Contas de Santa Catarina, o “checklist” da Transparência.
O segundo grupo abordou o desempenho e sugestões no que diz respeito a Carta de Serviços, a observação das diretrizes e leis relativas à transparência nas contratações públicas pela Prefeitura e Câmara Municipal de Florianópolis e, por fim, as indicações de áreas prioritárias candidatas a inovar no quesito transparência em serviços públicos.
Por fim, o terceiro grupo ficou responsável por verificar e explorar os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo, bem como a atuação pública aliada à sociedade civil no sentido da participação e do controle social.
Um grande fruto do trabalho realizado pela CPE foi a elaboração de um Projeto de Lei (PL) para instituir uma Política Municipal de Transparência. O projeto de lei pode ser conferido na íntegra aqui, bem como o acompanhamento de sua tramitação.
O projeto traz diversos conceitos vistos como instrumentos fundamentais para a accountability, como também introduz e fomenta um processo de educação e engajamento sobre a importância da transparência. Além disso, o PL visa melhorar o posicionamento do município de Florianópolis em rankings renomados de transparência, fomentar a inovação, a aproximação e a ampliação de acesso a serviços públicos, e a participação e o controle social através de iniciativas do município, órgãos públicos, instituições de ensino e servidores públicos.
Dentro do contexto da pandemia do novo coronavírus, vale ressaltar também o “Covidômetro” como um fator de inovação na transparência pública, criado como um instrumento para informar diariamente sobre os casos de COVID-19 no município de Florianópolis e suas decorrências, permitindo controlar e avaliar de maneira objetiva a situação de saúde no município. Para conhecer mais sobre esse instrumento e o que representa em termos de valorização da transparência pública, durante a pandemia do novo coronavírus, vale a leitura do seguinte texto: Qual a importância da transparência pública no tempo de pandemia?
Diante do desempenho ainda frágil em transparência no município de Florianópolis, ainda que haja avanços e grande potencial, em debate na disciplina de Sistemas de Accountability da Udesc Esag, em março de 2021, foi feita a seguinte pergunta aos participantes da aula: “Em poucas palavras, qual você considera ser o maior desafio no futuro da transparência em Florianópolis?”. Das respostas, “vontade política” foi a expressão que mais se repetiu, trazendo consigo o questionamento sobre o seu significado.
Sabemos que a participação de diferentes atores na concepção de políticas públicas é essencial para construirmos resultados relevantes para a sociedade. Porém, é na ação política e nas atividades cotidianas no trabalho de servidores públicos, representantes políticos e cidadãos que esses expressam suas visões de mundo, valores e prioridades e as “materializam” em escolhas, comportamentos e ações. O que se pode chamar de vontade política. Assim, os anseios e propostas ganham vida, geram eventuais mudanças e produzem efeitos reais.
Entre as barreiras da aplicação plena da transparência pelos gestores e servidores públicos, podemos encontrar um certo receio de como esses dados serão interpretados e utilizados por atores de oposição. É lógico pensar que a transparência amplia o papel de controle da sociedade e de opositores ou críticos, o que pode, não apenas gerar controvérsias, mas, sobretudo, contribuir para melhorias. A demanda por transparência cobra, também do cidadão, o acompanhamento ativo dos atos e omissões do poder público e maior contribuição para o aprimoramento da gestão pública, criando assim uma via de mão dupla de responsabilidade.
Aqui se observa que a transparência nas propostas políticas de candidatos a cargos eletivos ainda é pouco demandada pela população em geral, que coloca esse assunto em segundo plano no momento da definição dos posicionamentos e estratégia de atuação. Como nos mostra a experiência das recentes eleições municipais, a ausência de uma proposta para a transparência no plano de governo não é impeditivo para uma campanha bem sucedida em número de votos.
O que se observa na prática das gestões transparentes é claro: ao envolver os cidadãos no contexto das decisões, abre-se a oportunidade de entender a fundo as motivações de cada posicionamento, aumentando o amparo dos gestores na sua rede de apoio político. Quando o cidadão entende o porquê das decisões e está alinhado com elas, tem-se um aliado na busca por soluções.
Essa oxigenação na rede de pessoas e organizações dedicadas a resolverem os problemas públicos que define o ganho inegável decorrente do investimento em transparência. Nesse tema, o conceito de dados abertos surge como uma das pontes entre os desafios da gestão e a geração de alternativas por parte da sociedade civil.
Uma vez que os dados estejam publicizados de maneira acessível, cidadãos, conselheiros, organizações da sociedade civil e empresas conseguem propor críticas mais construtivas aos assuntos de interesse da sociedade e sugerir soluções mais assertivas ao poder público e à provisão de serviços públicos, que por meio da implementação destas medidas tem um retorno positivo da população, à medida que os efeitos são sentidos com maior precisão.
A disponibilização eficiente dos dados ajuda ainda os gestores públicos a tomarem melhores decisões internas, visto que facilita a análise dos dados gerados no setor público, dependendo de menos intermediários para acessar, tratar e julgar dados relativos ao panorama da gestão.
Na prática, os benefícios da abertura e disponibilização de dados públicos superam o esforço para a mudança cultural necessária. O momento é de evidenciar, por meio de casos de sucesso e experiências bem sucedidas de aplicação da transparência, que a adoção desse princípio, dessa política e dessa prática cotidiana se torna “um bom negócio” para todos os envolvidos, criando uma comunidade mais engajada e participativa, ampliando o poder dos gestores e do coletivo para a entrega de melhores serviços públicos e a realização da democracia. Como por exemplo, no município de Blumenau com o programa “Pavimenta Ação”, que, a partir da transparência, ampliou a confiança, a participação e a capacidade de entrega de serviços. Será que o município de Florianópolis também virá a apresentar exemplos nesse sentido?
* Texto elaborado pelos acadêmicos de administração pública Letícia Martins, Isabela Balza e Cauê Marchionatti, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela Professora Paula Chies Schommer, com a mestranda Bárbara Ferrari, entre 2020 e 2021.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, Lucas; VANDRESEN, Luana; ALVES, Thiago. Qual a importância da transparência pública no tempo de pandemia? Grupo de Pesquisa Politeia, Udesc Esag, 2020. Disponível em: http://politeiacoproducao.com.br/qual-a-importancia-da-transparencia-publica-no-tempo-de-pandemia-o-caso-da-prefeitura-de-florianopolis-que-construiu-um-mecanismo-de-transparencia-mas-tomou-decisoes-questionaveis-durante-a-sua-ope/. Acesso em: 24 mar.2021.
BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.html. Acesso em: 24 mar.2021.
BRASIL. Escala Brasil Transparente. Disponível em: https://mbt.cgu.gov.br/publico/avaliacao/escala_brasil_transparente/66#ranking. Acesso em: 24 mar.2021.
OPEN KNOWLEDGE BRASIL. Open Data Index. Disponível em: https://www.ok.org.br/projetos/open-data-index/. Acesso em: 24.mar.2021.
PREFEITURA DE FLORIANÓPOLIS. Secretaria Municipal de Transparência, Auditoria e Controle. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/smtac/index.php. Acesso em: 24 mar.2021.
PAPERLESS GOV. PL n. 18124-2020. Disponível em: https://paperlessgov-editor.cmf.sc.gov.br/visualizador/publico/anexo/1261. Acesso em: 24 mar.2021.
POLITEIA. Comissão Parlamentar Especial pela Transparência no município de Florianópolis. Disponível em: http://politeiacoproducao.com.br/comissao-parlamentar-especial-pela-transparencia-no-municipio-de-florianopolis/. Acesso em: 24 mar.2021.
POLITEIA. Londrina – Da opacidade à transparência, da corrupção à gestão, da perplexidade à coprodução. Disponível em: https://politeiacoproducao.com.br/londrina-da-opacidade-a-transparencia-da-corrupcao-a-gestao-da-perplexidade-a-coproducao/. Acesso em: 24.mar.2021.
ROCHA, Arlindo Carvalho; SCHOMMER, Paula Chies; DEBETIR, Emiliana; PINHEIRO, Daniel Moraes. Transparência como elemento da coprodução na pavimentação de vias públicas. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 24 (78): 1-22, 2019. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cgpc/article/view/74929. Acesso em: 24.mar.2021.
SOCIAL GOOD BRASIL. Festival 2019 | Dados abertos e transparência no governo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=e5fAvLcbEA0. Acesso em: 24.mar.2021.
TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL. Índice de percepção da corrupção 2020. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ipc/. Acesso: 24 mar.2021.
TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL. Ranking de transparência no combate à COVID-19. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ranking/. Acesso: 24 mar.2021.
Para saber mais:
Canal YouTube do Grupo de Pesquisa POLITEIA – Webinars relativos ao trabalho da Comissão Parlamentar Especial pela Transparência em Florianópolis