Gostei da história e da atuação dos atores, me emocionei e refleti bastante, mas senti certo incômodo com o tom e o cerne da crítica social presente no filme. Escrevi minhas impressões a um amigo, que me incentivou a publicá-las. Assim o faço agora, observando que o texto se dirige aos que já assistiram o filme. Portanto, aos que ainda não viram o filme e pretendem fazê-lo, sugiro não prosseguir com a leitura agora. Enfim, o que me ocorreu:
Somos mortais. Enquanto vivos, precisamos uns dos outros para sobreviver e para viver bem. Nem o Estado, enquanto entidade abstrata quase equivalente a Deus, na visão de alguns, nem a Sociedade, enquanto conjunto amplo abstrato, podem mudar isso ou serem responsabilizados por isso.
Somos seres multidimensionais. Uma boa vida, que inclui dores, frustrações e morte, depende de um delicado e dinâmico equilíbrio entre o que temos de natural/ambiental/físico, relacional/social, político, intelectual e espiritual. Há momentos em que estamos mais fortes, equilibrados, e assim podemos contribuir mais com outros. Há também momentos em que estamos mais frágeis ou desequilibrados, e aí precisamos pedir e aceitar receber mais ajuda.
O Estado, enquanto aparato legal, institucional e burocrático, por mais que funcione bem, não contempla ou satisfaz todas as nossas dimensões. Ainda bem. A Sociedade, por sua vez, é algo difuso, indefinido, contemplando todos, em múltiplas e dinâmicas relações. Quem faz a ponte entre indivíduo e sociedade é a Comunidade, em suas várias formas de articulação – família, vizinhança, igrejas, sindicatos, associações e grupos diversos.
Cada um de nós, em relações com outros, desenvolve suas múltiplas dimensões e define sua identidade ao longo da vida, em diferentes espaços e tipos de relações e organizações. Se nos isolamos, se participamos pouco da vida em comunidade, se não nos articulamos politicamente na comunidade, nos colocamos na condição de cliente, usuário, beneficiário, um número frente ao Estado e ao Mercado. Se não cultivamos relações afetivas, resumindo os “laços fortes” a uma pessoa (à esposa, no caso de Blake), nos limitamos afetivamente, e se essa única pessoa falta, ficamos perdidos. Se não nos adaptamos de alguma forma às mudanças em conhecimento e trabalho, tecnologias e formas de produção, se não buscamos alternativas para desenvolver nossos dons e talentos, inclusive produtivos, ficamos à margem.
Não coloco toda a responsabilidade no indivíduo, sim reforço o papel das comunidades – intermediadoras e articuladoras de indivíduos entre si e com o ambiente social mais amplo, em diferentes fases da vida. Nesse sentido, concordo com a análise de Leo Vinicius, em LeMonde Diplomatique Brasil: Nós, Daniel Blake, em lugar de Eu, Daniel Blake. Mas cada Eu tem muitos Nós envolvidos, não apenas a identidade como classe trabalhadora. Poderíamos, ainda, incluir o divino na equação, para além do que nos é possível alcançar como Eu e como Nós, humanos. Entretanto, acreditando-se ou não em Deus, o argumento central é o mesmo.
O aparato estatal e os servidores públicos podem e devem contribuir para incentivar, mobilizar e facilitar a cidadania e a mobilização comunitária, não as substituir. Também podem ser os garantidores de certas condições básicas a todos, mas não podem oferecer tudo o que desejamos.
Ser cidadão, por sua vez, é mais do que trabalhar, pagar impostos, cumprir regras, ser portador de direitos, beneficiário de programas e políticas ou usuário de serviços públicos. É ser sujeito de deveres e direitos, sujeito ativo em opinião, ação e articulação política. O que é trabalhoso e exigente. Além disso, cada um de nós não é apenas um cidadão, condição associada à nossa dimensão política. Há as demais dimensões para cultivar, desenvolver e harmonizar.
Daniel Blake declara que não quer ser reduzido a beneficiário, usuário ou cliente, quer ser cidadão. Ele trabalha, paga impostos, não joga lixo no chão, reclama dos que pervertem a ordem, é amigável com as pessoas e ajuda os outros – ótimo. Mas exerce a cidadania um tanto individualmente. Para além disso, resiste a ser ajudado, resiste a admitir que não pode fazer tudo sozinho (quando pede ajuda, recebe – não de todos, mas de muitos, que se mostram satisfeitos em ajudar) e, aparentemente, não participa de qualquer grupo mais regular, embora seja convidado. Sua família se resumia à esposa. Seus amigos são vizinhos ou colegas que ele encontra eventualmente. Até que aparece uma família – mãe e duas crianças recém-chegadas à cidade. Tornam-se amigos, visitam-se, ele os ajuda em vários aspectos e, depois de muita insistência, permite que o ajudem também.
Essa família está em uma condição difícil, mudou para a cidade porque era onde havia moradia oferecida pela assistência social. A mãe busca emprego e mal consegue garantir que os filhos não passem fome. Mas ela não se coloca como vítima do sistema. Observa que ignorou os conselhos da mãe e não quer que esta a veja sem dinheiro. Percebe que se enganou nas expectativas em relação aos pais de seus filhos. Admite que se tivesse estudado estaria em uma condição melhor. Ela aceita ajuda, às vezes um pouco constrangida, mas sabe que precisa e é grata. Oferece ajuda, pois mesmo quando estamos frágeis podemos ajudar os outros em algo. Vê a prostituição como legítima para garantir comida para os filhos.
É claro que seria mais fácil se houvesse mais empregos, se os benefícios sociais fossem mais generosos e eficientes e se os pais ajudassem a criar os filhos, mas ela não está abandonada pelo Estado ou pela Sociedade. Sente e sofre as consequências dos problemas e virtudes do sistema, das pessoas próximas e de suas próprias escolhas. Blake também não se vitimiza, só é um pouco resistente a mudanças e tem dificuldade de pedir e de aceitar ajuda.
A crítica ao serviço público (impessoal, fragmentado, mal desenhado, terceirizado, automatizado, ineficiente etc.), embora um tanto óbvia, é pertinente. Precisamos avançar muito no desenho e na entrega dos serviços públicos, na articulação entre agências, na atuação dos servidores.
O que me incomodou no filme, afinal, foi o manifesto lido sobre o caixão de nosso personagem título. Seria lido na audiência de apelação para receber o seguro, mas não deu tempo. Ali faria todo o sentido, pois o manifesto ressalta a condição de cidadão, que luta para ser respeitado como tal. O momento e o tom da leitura, porém, convertem o cidadão em vítima. O Estado – sua ineficiência, insensibilidade, inadequação – é responsabilizado pela morte de Blake.
Me perguntei: se ele tivesse sido bem atendido, se os serviços fossem bem planejados e executados, se os servidores fossem mais gentis e flexíveis, se ele tivesse recebido o benefício sem chateações – não teria morrido? Ele sofreu um primeiro infarto por que seu trabalho era estressante e pesado e ele era oprimido? Não me pareceu. A impressão que tive é que ele gostava de seu trabalho e tinha uma boa relação com os colegas. Ele teria se recuperado bem se não tivesse os desgostos com a burocracia? Talvez, mas me parece improvável. Eu apostaria mais que sua recuperação e gosto pela vida na nova condição dependeria de ele permitir ser cuidado, de cultivar relações com amigos, familiares, organizações comunitárias, talvez até o sindicato, a igreja, enfim, viver novas experiências, outras possibilidades.
O Estado pode ajudar a promover uma boa vida, pode garantir certas condições a todos, facilitar mais do que atrapalhar a cidadania. Mas o Estado não pode nos garantir vida plena. Quem cuida de cada um de nós, quem nos permite uma vida melhor somos Eu-Nós, em múltiplas e dinâmicas relações, com Deus presente para quem o admite.
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* Nota: minhas impressões e argumentos estão relacionados a pesquisas, aulas, atividades e debates em nosso curso de administração pública e grupo de pesquisa e aos ensinamentos de parceiros e mestres ao longo da vida, neste caso especialmente José Francisco Salm e Francisco G. Heidemann, a quem sou sempre e muito grata. Agradeço também ao Carlos Nunes pelo diálogo e incentivo para publicar este texto.