A presença de elementos arcaicos e modernos nas práticas políticas e administrativas brasileiras foi discutida em aula do oitavo termo do curso de Administração Pública da Udesc Esag, na manhã de 10 de Março de 2016. O debate aconteceu durante a disciplina Sistemas de Accountability, ministrada pela professora Paula Schommer, e teve como base o artigo “Accountability: já podemos traduzi-la para oportuguês?”, de José Antonio Gomes de Pinho e Ana Rita Silva Sacramento.
Segundo os autores “no Brasil coexistem dois países, cujas mentalidades, comandadas pela educação, são bastante distintas: uma moderna, outra arcaica”. Entre as características arcaicas, estão o clientelismo, o formalismo e o patrimonialismo, que muitas vezes se disfarçam ou se modificam para permanecer, gerando, por exemplo, o neopatrimonialismo, que convive com práticas consideradas avançadas nas democracias contemporâneas.
Os estudantes trouxeram exemplos de como ocorre essa combinação do arcaico e do moderno em nosso cotidiano, evidenciando que nem sempre a emergência de um instrumento considerado moderno substitui ou elimina um valor ou uma prática arcaica.
Exemplo 1 – Sistemas de Avaliação
Um dos exemplos trazido pelos colegas foi o próprio sistema de avaliação interno da Universidade, que inclui a avaliação dos professores pelos alunos, ao fim de cada semestre. Segundo os acadêmicos, por mais que o sistema seja um exemplo de ação moderna, pois facilita a identificação de pontos positivos e negativos vivenciados no dia a dia, não se percebe que os resultados sejam valorizados pelos professores para promover melhorias. Assim, há um certo desestímulo à participação dos acadêmicos, pois não se percebe conexão entre o sistema de avaliação e as mudanças nos processos de ensino. Além disso, os estudantes não recebem retorno sobre o que é feito com os resultados da avaliação e não tem conhecimento sobre responsabilização associada ao desempenho docente e institucional.
Outros sistemas de avaliação em geral foram lembrados, ressaltando-se a relevância de que sejam úteis – para aprendizagem, para tomada de decisão, para promover melhorias em serviços, políticas e métodos, e para gerar responsabilização, na forma de prêmios ou punições. Foram lembrados exemplos de classificação para qualidade de serviços oferecida por aplicativos de celular. A professora comentou sobre o aplicativo 99 Taxis, onde a avaliação negativa por vários usuários pode gerar penalização aos taxistas. Outra aplicação para celular lembrada foi o IFood, onde o estabelecimento pode justificar uma avaliação negativa, orientando a decisão de futuros usuários.
Exemplo 2 – Aplicativo Dengue SC (https://play.google.com/store/apps/details?id=br.gov.sc.ciasc.denguesc&hl=pt_BR)
O aplicativo foi criado recentemente pelo governo do Estado de Santa Catarina para que a população localize possíveis focos de dengue e encaminhe ao Poder Público. Assim, medidas cabíveis podem ser tomadas. A medida é considerada moderna, pois o recurso gera agilidade na identificação de focos, com a participação direta dos cidadãos, coproduzindo a resolução de um problema grave e que afeta diretamente a saúde de todos. No entanto, uma série de fragilidades que são comuns no cotidiano da administração pública afetam a efetividade desse novo instrumento. Entre elas, a falta de preparação para os municípios sobre as ações. Até o momento, 34 dos 295 municípios catarinenses aderiram ao aplicativo, mas reclamavam de falta de treinamento. Enquanto isso, catarinenses de 102 municípios já fizeram download da aplicação, mostrando interessem em utilizá-lo.
O elemento arcaico mais visível nesse exemplo é a morosidade dos processos internos do Poder Público. O problema demanda uma velocidade para a qual a Secretaria de Estado da Saúde e demais envolvidos não estão preparados. Essa falta de comunicação entre órgãos e níveis de governo também é um exemplo do arcaico.
Exemplo 3 – Lei que busca impedir o nepotismo
Segundo o grupo que trouxe o exemplo, a lei é um exemplo do moderno porque reconhece que o nepotismo é um problema no país e porque busca contribuir para o combate ao patrimonialismo e à corrupção, tão arraigados na sociedade brasileira. No entanto, a mesma lei se contradiz, pois coloca exceções para cargos específicos. Além disso, não consegue evitar o chamado nepotismo cruzado. O que evidencia que as leis, por si só, não são capazes de mudar as práticas, pois as pessoas encontram maneiras de burlar o espírito da lei, mesmo que formalmente as cumpram integralmente. Algo que evidencia a característica formalista da cultura brasileira. O arcaico é percebido, também, quando se desprivilegia a qualificação dos indicados, pois não se admite que pode haver pessoas apropriadas para certas funções por sua competência e qualificação, ainda que sejam parentes de outro servidor. Além disso, se desconsidera as relações de confiança, inerentes às relações sociais.
Na discussão sobre o formalismo, a frase “para os amigos, tudo; para os inimigos, o rigor da lei”, foi lembrada.
Exemplo 4 – Acusação de rede de nepotismo (http://www.estacaodanoticia.com/index/comentarios/id/5614)
O exemplo trazido relata que o ex-governador do Maranhão, Jackson Lago, criou a maior rede de nepotismo já vista no país. Foram contratados 23 parentes diretos do governador. O arcaico é percebido pela persistência de uma prática antiga, típica do coronelismo.
Já o moderno é entendido a partir dos questionamentos que vêm por meio da população, que começa a se preocupar com essas questões e cobrar posicionamento das autoridades competentes. Debate esse que passou a ser mais difundido no país a partir da difusão das redes sociais.
Exemplo 5 – Prefeitura no Bairro
O programa da Prefeitura de Florianópolis, executado nos primeiros anos da atual gestão, buscou aproximar gestores públicos da população nos diferentes bairros da cidade, contribuindo para compreender as particularidades existentes em um mesmo município. Secretários, servidores e o prefeito se deslocavam a cada comunidade, aos sábados, para ouvir, conhecer as demandas e dialogar. Posteriormente, a Prefeitura enviava um retorno a cada cidadão sobre a sua demanda.
O elemento moderno do programa está na abertura de um canal de diálogo mais próximo entre governantes e cidadãos, considerando as particularidades de cada bairro da cidade. Entretanto, limitava-se a escutar demandas pontuais, sem envolver a população nas decisões e soluções. Além disso, parece ter havido fragilidade na coordenação entre as várias áreas da Prefeitura. E houve descontinuidade.
Também se percebeu que alguns líderes comunitários, ao invés de utilizar o espaço em prol da comunidade, discutindo e encaminhando problemas coletivos, buscavam usar o programa para benefício e promoção pessoal.
Citando Alberto Carlos Almeida, autor do estudo publicado no livro “A Cabeça do Brasileiro” (2007), os autores do artigo debatido concluem que “como a escolaridade está aumentando, pode-se esperar que no futuro haja mais modernos do que arcaicos”. Porém, a escolaridade não garante a mudança de valores e práticas, como demonstra o estudo coordenado por Almeida. Mesmo entre pessoas com alto grau de escolaridade, vê-se aceitação e prática de corrupção, formalismo e nepotismo, como se fosse algo natural. Mas isso está mudando bastante!
* este relato foi elaborado pelo acadêmico Nícola Martins, durante a aula, com contribuição de colegas que trouxeram e debateram exemplos, com a participação da professora Paula.