Entre o Estado e o Indivíduo, o que há? Reflexão a partir do filme “Eu, Daniel Blake”

por Paula Chies Schommer

Assisti recentemente o filme Eu, Daniel Blake (trailer), dirigido por Ken Loach. Fui ao cinema curiosa, pois vários amigos haviam comentando sobre a obra, que retrata em primeiro plano a relação entre um cidadão britânico e a burocracia para receber o seguro saúde enquanto afastado do trabalho para se recuperar de um infarto.

Gostei da história e da atuação dos atores, me emocionei e refleti bastante, mas senti certo incômodo com o tom e o cerne da crítica social presente no filme. Escrevi minhas impressões a um amigo, que me incentivou a publicá-las. Assim o faço agora, observando que o texto se dirige aos que já assistiram o filme. Portanto, aos que ainda não viram o filme e pretendem fazê-lo, sugiro não prosseguir com a leitura agora. Enfim, o que me ocorreu:

Somos mortais. Enquanto vivos, precisamos uns dos outros para sobreviver e para viver bem. Nem o Estado, enquanto entidade abstrata quase equivalente a Deus, na visão de alguns, nem a Sociedade, enquanto conjunto amplo abstrato, podem mudar isso ou serem responsabilizados por isso.

Somos seres multidimensionais. Uma boa vida, que inclui dores, frustrações e morte, depende de um delicado e dinâmico equilíbrio entre o que temos de natural/ambiental/físico, relacional/social, político, intelectual e espiritual. Há momentos em que estamos mais fortes, equilibrados, e assim podemos contribuir mais com outros. Há também momentos em que estamos mais frágeis ou desequilibrados, e aí precisamos pedir e aceitar receber mais ajuda.

O Estado, enquanto aparato legal, institucional e burocrático, por mais que funcione bem, não contempla ou satisfaz todas as nossas dimensões. Ainda bem. A Sociedade, por sua vez, é algo difuso, indefinido, contemplando todos, em múltiplas e dinâmicas relações. Quem faz a ponte entre indivíduo e sociedade é a Comunidade, em suas várias formas de articulação – família, vizinhança, igrejas, sindicatos, associações e grupos diversos.

Cada um de nós, em relações com outros, desenvolve suas múltiplas dimensões e define sua identidade ao longo da vida, em diferentes espaços e tipos de relações e organizações. Se nos isolamos, se participamos pouco da vida em comunidade, se não nos articulamos politicamente na comunidade, nos colocamos na condição de cliente, usuário, beneficiário, um número frente ao Estado e ao Mercado. Se não cultivamos relações afetivas, resumindo os “laços fortes” a uma pessoa (à esposa, no caso de Blake), nos limitamos afetivamente, e se essa única pessoa falta, ficamos perdidos. Se não nos adaptamos de alguma forma às mudanças em conhecimento e trabalho, tecnologias e formas de produção, se não buscamos alternativas para desenvolver nossos dons e talentos, inclusive produtivos, ficamos à margem.

Não coloco toda a responsabilidade no indivíduo, sim reforço o papel das comunidades – intermediadoras e articuladoras de indivíduos entre si e com o ambiente social mais amplo, em diferentes fases da vida. Nesse sentido, concordo com a análise de Leo Vinicius, em LeMonde Diplomatique Brasil: Nós, Daniel Blake, em lugar de Eu, Daniel Blake. Mas cada Eu tem muitos Nós envolvidos, não apenas a identidade como classe trabalhadora. Poderíamos, ainda, incluir o divino na equação, para além do que nos é possível alcançar como Eu e como Nós, humanos. Entretanto, acreditando-se ou não em Deus, o argumento central é o mesmo.

O aparato estatal e os servidores públicos podem e devem contribuir para incentivar, mobilizar e facilitar a cidadania e a mobilização comunitária, não as substituir. Também podem ser os garantidores de certas condições básicas a todos, mas não podem oferecer tudo o que desejamos.

Ser cidadão, por sua vez, é mais do que trabalhar, pagar impostos, cumprir regras, ser portador de direitos, beneficiário de programas e políticas ou usuário de serviços públicos. É ser sujeito de deveres e direitos, sujeito ativo em opinião, ação e articulação política. O que é trabalhoso e exigente. Além disso, cada um de nós não é apenas um cidadão, condição associada à nossa dimensão política. Há as demais dimensões para cultivar, desenvolver e harmonizar.

Daniel Blake declara que não quer ser reduzido a beneficiário, usuário ou cliente, quer ser cidadão. Ele trabalha, paga impostos, não joga lixo no chão, reclama dos que pervertem a ordem, é amigável com as pessoas e ajuda os outros – ótimo. Mas exerce a cidadania um tanto individualmente. Para além disso, resiste a ser ajudado, resiste a admitir que não pode fazer tudo sozinho (quando pede ajuda, recebe – não de todos, mas de muitos, que se mostram satisfeitos em ajudar) e, aparentemente, não participa de qualquer grupo mais regular, embora seja convidado. Sua família se resumia à esposa. Seus amigos são vizinhos ou colegas que ele encontra eventualmente. Até que aparece uma família – mãe e duas crianças recém-chegadas à cidade. Tornam-se amigos, visitam-se, ele os ajuda em vários aspectos e, depois de muita insistência, permite que o ajudem também.

Essa família está em uma condição difícil, mudou para a cidade porque era onde havia moradia oferecida pela assistência social. A mãe busca emprego e mal consegue garantir que os filhos não passem fome. Mas ela não se coloca como vítima do sistema. Observa que ignorou os conselhos da mãe e não quer que esta a veja sem dinheiro. Percebe que se enganou nas expectativas em relação aos pais de seus filhos. Admite que se tivesse estudado estaria em uma condição melhor. Ela aceita ajuda, às vezes um pouco constrangida, mas sabe que precisa e é grata. Oferece ajuda, pois mesmo quando estamos frágeis podemos ajudar os outros em algo. Vê a prostituição como legítima para garantir comida para os filhos.

É claro que seria mais fácil se houvesse mais empregos, se os benefícios sociais fossem mais generosos e eficientes e se os pais ajudassem a criar os filhos, mas ela não está abandonada pelo Estado ou pela Sociedade. Sente e sofre as consequências dos problemas e virtudes do sistema, das pessoas próximas e de suas próprias escolhas. Blake também não se vitimiza, só é um pouco resistente a mudanças e tem dificuldade de pedir e de aceitar ajuda.

A crítica ao serviço público (impessoal, fragmentado, mal desenhado, terceirizado, automatizado, ineficiente etc.), embora um tanto óbvia, é pertinente. Precisamos avançar muito no desenho e na entrega dos serviços públicos, na articulação entre agências, na atuação dos servidores.

O que me incomodou no filme, afinal, foi o manifesto lido sobre o caixão de nosso personagem título. Seria lido na audiência de apelação para receber o seguro, mas não deu tempo. Ali faria todo o sentido, pois o manifesto ressalta a condição de cidadão, que luta para ser respeitado como tal. O momento e o tom da leitura, porém, convertem o cidadão em vítima. O Estado – sua ineficiência, insensibilidade, inadequação – é responsabilizado pela morte de Blake.

Me perguntei: se ele tivesse sido bem atendido, se os serviços fossem bem planejados e executados, se os servidores fossem mais gentis e flexíveis, se ele tivesse recebido o benefício sem chateações – não teria morrido? Ele sofreu um primeiro infarto por que seu trabalho era estressante e pesado e ele era oprimido? Não me pareceu. A impressão que tive é que ele gostava de seu trabalho e tinha uma boa relação com os colegas. Ele teria se recuperado bem se não tivesse os desgostos com a burocracia? Talvez, mas me parece improvável. Eu apostaria mais que sua recuperação e gosto pela vida na nova condição dependeria de ele permitir ser cuidado, de cultivar relações com amigos, familiares, organizações comunitárias, talvez até o sindicato, a igreja, enfim, viver novas experiências, outras possibilidades.

O Estado pode ajudar a promover uma boa vida, pode garantir certas condições a todos, facilitar mais do que atrapalhar a cidadania. Mas o Estado não pode nos garantir vida plena. Quem cuida de cada um de nós, quem nos permite uma vida melhor somos Eu-Nós, em múltiplas e dinâmicas relações, com Deus presente para quem o admite.

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* Nota: minhas impressões e argumentos estão relacionados a pesquisas, aulas, atividades e debates em nosso curso de administração pública e grupo de pesquisa e aos ensinamentos de parceiros e mestres ao longo da vida, neste caso especialmente José Francisco Salm e Francisco G. Heidemann, a quem sou sempre e muito grata. Agradeço também ao Carlos Nunes pelo diálogo e incentivo para publicar este texto.

4 comentários em “Entre o Estado e o Indivíduo, o que há? Reflexão a partir do filme “Eu, Daniel Blake””

  1. Bela e tocante reflexão, Paula. Não vi o filme, mas digamos que minha família viveu algo semelhante nestes últimos meses, sendo possível ver exatamente isso: como o laço invisível da comunidade é tão mais construtivo, forte e de uma relação de suporte e amparo muito maior que qualquer burocracia, sem desmerecer o que o Estado provê. Na lida com a burocracia hospitalar e até mesmo com o atendimento para o tratamento, encontramos pessoas extremamente dedicadas com aquilo que fazem, outras te tratam como mero formulário, esquecem que estão diante de uma vida humana (e isso é particularmente delicado em um situação de saúde). Concordo que não devemos culpar o Estado nem esperar dele a resolução de tudo, tbm não devemos isentá-lo. Quantas vezes na própria emergência do Hospital ouvi as pessoas comentando sobre o quanto contribuíram, pagaram seus impostos, fizeram tudo certo em suas vidas – incluindo na comunidade em que viviam – e quando precisaram de um atendimento de qualidade ficaram reféns do formulário pra receber o tratamento. Quantas vezes ouvi: "se os governantes não roubassem tanto, tlvz já tivesse sido atendido, feito os exames que preciso… São muitas vidas, muitas histórias que não se conhece, que vivência comunitária tiveram, mas que naquele momento precisaram da eficiência do Estado. Não vi o filme, mas fiquei curioso, e pelo teu relato acho que essa postura mais individual, na atuação do personagem principal, possa refletir muito da cultura britânica, do seu modelo de estado, da valorização do liberalismo, como norteador na busca daquilo que entendem como o bem comum. E toda forma de arte que faz crítica social, em grande parte, usa o extremismo de uma situação, para chamar atenção (tlvz não seja o recurso mais adequado). E como tudo na vida, acho que a reflexão passa pelo equilíbrio entre a nossa contribuição comunitária e a nossa contribuição ao Estado, para que tenhamos no mínimo uma morte digna. Acredito que o que a vivência comunitária nos devolve em situações como essa é respeito, gratidão, empatia, apoio, ajuda. Do Estado espera-se que devolva o mínimo necessário, compatível com a valorização de seus cidadãos, um serviço que respeite a contribuição em vida de cada cidadão (não só impostos)… Enfim, reflexões de domingo! ��

  2. Excelente contribuição, Jeferson Dahmer, combinando seu conhecimento na área de administração pública, seu engajamento comunitário e essa profunda experiência que estão vivendo na família. Sim, merecemos e devemos lutar por um tratamento digno e inteligente nos serviços públicos e privados, ainda mais quando o usuário está em situação de fragilidade. Também é preciso combater a corrupção e o desperdício de recursos, que fazem muita falta na ponta. E como usuários, temos muito a contribuir para melhorar os serviços. Mas o que me impressiona em momentos em que estamos frágeis é o tanto de solidariedade e amor que existe no mundo, bem como a mágica que acontece quando pedimos ajuda. Enfim, concordo plenamente com você: como tudo na vida, a chave é o equilíbrio.

  3. Excelente texto, e diferente do que eu estava habituado a ler no Blog. Esse último parágrafo me chamou muito a atenção:

    "O Estado, enfim, pode ajudar a promover uma boa vida, pode garantir certas condições a todos, facilitar mais do que atrapalhar a cidadania. Mas o Estado não pode nos garantir vida plena. Quem cuida de cada um de nós, quem nos permite uma vida melhor somos Eu-Nós, em múltiplas e dinâmicas relações, com Deus presente para quem o admite."

    É exatamente isso que eu penso. Por mais que o Estado haja com total precisão e eficiência, isso não fará com que o ser humano atinja a felicidade, tampouco a vida plena. Vejo que não só o Estado não é capaz de garantir uma vida plena como nenhuma organização é capaz de fazer isso. A vida plena é uma terra sem caminhos, e as pessoas não podem alcançá-la por meio de organizações, nem por nenhuma religião, por nenhuma seita. A vida plena é incondicionada, inacessível por qualquer método ou padrão. Ela não pode florescer através do outro, através de uma figura religiosa, nem do dogma, etc. No fim das contas a coisa toda começa dentro de nós, e é no espelho das relações que identificamos nossos erros e como agimos frente às situações que enfrentamos.

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