Accountability na regulação do uso de agro(tóxicos) no Brasil e o direito à alimentação adequada

Por Flávia de Souza Hülse e Laura Letícia Cunha*

O direito humano à alimentação adequada, conforme definido pelo item 8, Comentário Geral, nº 12, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, tem como conteúdo essencial “a disponibilidade de alimentos suficientes para satisfazer as necessidades nutricionais das pessoas, tanto em quantidade como em qualidade, livre de substâncias adversas, e aceitável para uma determinada cultura.” 

Não por acaso, o uso de agrotóxicos no Brasil é tema de grande relevância nacional e pauta da mobilização de atores políticos, econômicos e sociais por estar relacionado ao agronegócio – modelo hegemônico de produção de alimentos decorrente da Revolução Verde, que introduziu uma sólida aliança entre agricultura e alta tecnologia, caracterizada pelo emprego de agrotóxicos em quantidades abusivas. Sinônimo da monocultura, desmatamento, genocídio indígena e exploração animal, este modelo é também responsável por significativa parcela das exportações do país. Isto posto, detém grande influência nas decisões políticas, à medida que é, em contrapartida, a agricultura familiar que abastece majoritariamente a nossa mesa. De forma venenosa e exploradora, o agronegócio, de maneira estrutural, contamina nosso prato e transfere o ônus para o povo com vias a aumentar seus lucros.

Além de gerar diversos males para o meio ambiente, o uso de agrotóxicos é causador de infecções agudas e crônicas e afeta tanto a população rural como urbana. Ocorre que o uso desmedido do veneno viola não somente o direito humano à alimentação adequada e à dignidade da pessoa humana, mas danifica o meio-ambiente e gera desequilíbrios ecológicos relacionados ao esgotamento dos recursos hídricos, à degradação do solo, à poluição e ao favorecimento de mudanças climáticas. Manifesta-se  em toda a sua insustentabilidade, sendo incapaz de acabar com a fome e promotor de novas desigualdades.

No Brasil de 2022, o retrocessivo governo Bolsonaro coloca a nação de volta ao Mapa da Fome da ONU e compromete a segurança alimentar da população, como resultado do desmonte sistemático das políticas públicas de combate à fome e à miséria. Conforme dados de julho de 2022, cerca de 7,3% da população está sujeita à insegurança alimentar grave. Ao mesmo tempo, o Brasil mantém o vergonhoso título de maior consumidor de agrotóxicos banidos do mundo, tendo cerca de 43% das liberações sucedidas nos últimos três anos.

Daí a importância do sistema de accountability para a redução dos riscos à vida humana. Accountability contempla responsabilidade objetiva e subjetiva, controle, transparência, obrigação de prestação de contas, justificativas sobre atos e omissões e premiação e/ou castigo (PINHO; SACRAMENTO, 2009). Para capturar a essência do tema, são definidas 5 dimensões, quais sejam: transparência, responsividade, imputabilidade, responsabilidade e controlabilidade (KOPPEL, 2005). Analisando o uso de agrotóxicos no Brasil sob essa ótica, diversos aspectos podem ser destacados, como transparência acerca das propriedades dos agrotóxicos permitidos, controlabilidade dos registros perante os órgãos estatais, responsabilidade dos detentores, entre outros.

A legislação base para compreender a gestão do uso de agrotóxicos no Brasil é a Lei nº 7.802 de 1989 (íntegra). O texto que  dispõe sobre a pesquisa, experimentação, rotulagem, comercialização, importação, destino final, registro, controle e fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, conduz a uma visão primitiva de como é considerada a accountability no que diz respeito ao tema. A Lei serve-se do Decreto nº 4.074 de 2002 (íntegra) para a sua regulamentação. Juntos, os textos compreendem as regras e princípios básicos para a regulamentação e o uso do agrotóxico no território brasileiro. 

Nos artigos 3º da Lei e 41 do Decreto, estão previstas a necessidade do registro prévio e da atualização periódica de dados por parte dos detentores de agrotóxicos perante os órgãos federais, verificando-se aí a controlabilidade, transparência e responsividade, dimensões da accountability (KOPPELL, 2005). O portal do Ibama prevê a lista desses agrotóxicos registrados e permite visualizar como esses princípios são aplicados.

No que se refere à responsabilidade e imputabilidade, também dimensões de accountability, a Lei é bastante clara ao dispor sobre a responsabilização administrativa, civil e criminal, com suas respectivas penas, dos danos causados por aqueles que descumprirem a norma. Além do mais, no texto está contida a possibilidade da participação de entidades na elaboração de laudos de análise de produtos e na impugnação ou cancelamento de registros. 

Com base em uma análise pormenorizada das normas, portanto, é possível compreender onde estão verificadas as dimensões da accountability e de gestão, além das possíveis repercussões que as ausências dessas podem causar.

Há alguns anos, porém, tramita no legislativo um Projeto de Lei que tem por objetivo derrubar essas normativas e reformular alguns dos princípios nelas contidas. O PL nº 6.299 de 2002, conhecido como “Pacote do Veneno”, revoga a Lei nº 7.802 de 1989, mantendo alguns dispositivos e revogando outros. 

Segundo a imprensa e organizações da sociedade civil como o Greenpeace, este projeto, que foi aprovado às pressas na data de 09 de fevereiro de 2022 na Câmara dos Deputados (e agora segue para o Senado), está na pauta de parlamentares ruralistas e conta com mais de 300 (trezentas) organizações posicionadas contrariamente

É imprescindível avaliar, contudo, os impactos que as mudanças propostas podem gerar na gestão do uso dos agrotóxicos no Brasil. Entre outras alterações, está prevista a centralização da fiscalização e análise no Ministério da Agricultura (segundo a Lei vigente, a competência também é da Saúde e do Meio Ambiente). Também, o Pacote contemplaria a revogação da possibilidade de impugnação ou cancelamento dos registros por parte das entidades e alteração da nomenclatura de “agrotóxico” para “pesticida”. Além disso, os órgãos passariam a conceder um registro temporário para agrotóxicos que não tiverem pareceres conclusivos expedidos no prazo de 2 (dois) anos. 

Assim sendo, o Projeto de Lei resultaria em um verdadeiro retrocesso. Importante ressaltar, também, a existência do Convênio ICMS nº 100/97 (íntegra), que reduz a base de cálculo do imposto nas saídas dos insumos agropecuários, facilitando ainda mais o acesso e afrouxando o controle.

Marcos José de Abreu – o Marquito, é vereador em Florianópolis pelo PSOL e referência no campo da agroecologia no Brasil e no mundo. Em entrevista concedida às autoras, ele disserta sobre o impacto negativo do Projeto. Segundo o vereador entrevistado:

O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, uma das legislações mais permissivas. A gente utiliza, consome e aplica agrotóxicos que são proibidos em seus países de origem (…), e ainda mantém esforços para mais liberações com PL do Pacote do Veneno, que tramitou e foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora tramita no Senado, para flexibilizar ainda mais e retirando os órgãos da tríplice análise – órgão ambiental (ICMBIO), de saúde (ANVISA) e agricultura (MAPA), mantendo apenas o último como avaliador do processo de liberação de agrotóxicos, produtos agrotóxicos e composição químicas de agrotóxicos. (Marquito,  07/07/2022, 21:00). 

Para além dos efeitos sociais, a gestão do uso dos agrotóxicos seria abalada pelo pacote, pois as mudanças impactam na diminuição do controle, fiscalização e transparência, entre outras dimensões da accountability.

Para Marquito:

o nível de flexibilidade legislativa e ausência de instrumentos legais nesse processo é também resultado da capacidade e do poder de lobby na sua pior estrutura – a exemplo do financiamento de campanhas eleitorais e manutenção de poder que se exerce sobre as estruturas administrativas (Marquito, 07/07/2022, 21:00). 

Marquito critica a ausência de controle e responsabilização para aplicação de agrotóxicos, denunciando o sistema perverso de compra e acesso ao veneno: 

(…) o sistema de compra de agrotóxicos deveria estar associado a um receituário agronômico, emitido por engenheiros agrônomos ou técnicos agrícolas que analisam a propriedade e a plantação e geram diagnóstico, isto é, identificam qual doença está prejudicando seu plantio e fazem receituário para aquela determinada realidade, naquele período, naquela cultura. O que acontece na prática é que os agricultores se dirigem diretamente às agropecuárias e compram sem indicações adequadas. Não existe controle também por parte das agropecuárias, um problema seríssimo que é o contrabando de agrotóxicos inclusive com metais pesados (Marquito,  07/07/2022, 21:36). 

Complementa apontando a falta de notificação de doenças causadas diretamente pelos agrotóxicos: 

(…) o agricultor contaminado ao ser atendido não é notificado da contaminação por agrotóxico. Não há, portanto, controle na aquisição de agrotóxicos na agropecuária através da análise de um profissional, notificação quando o agricultor é acometido por intoxicação por agrotóxicos, e sequer informação acerca das doenças crônicas não transmissíveis e sua relação com agrotóxicos.

A informação é estruturante e fundamental na mobilização social em torno da temática e se evidencia no campo legal, científico, da gestão pública, e midiático. As barreiras ao acesso à informação, previstas no projeto, são sintomáticas perante o conflito entre as classes e criam panorama favorável à manutenção dos interesses do agronegócio, representado politicamente pela bancada ruralista.

É conclusivo, portanto, que a aprovação do Pacote do Veneno representa um movimento contraproducente no âmbito da accountability, violando suas dimensões e irradiando seus efeitos ao direito à dignidade humana, à alimentação adequada, à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à vida.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7802.htm. Acesso em: 20 jul. 2022.

BRASIL. Decreto nº 4.074, de 4 de janeiro de 2002. Regulamenta a Lei no 7.802, de 11 de julho de 1989, que dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4074.htm. Acesso em: 20 jul. 2022. 

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* Texto elaborado pelas acadêmicas de administração pública Flávia de Souza Hülse e Laura Letícia Cunha, no âmbito da disciplina Sistemas de Accountability, da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer, em 2022.