A Democracia como um Bem Público Coproduzido: Reflexões sobre Engajamento Cívico e Diálogo Construtivo na Sociedade Contemporânea

Por Caroline Dornelles Peressutti* 

Você já pensou na democracia como um “bem público”? A democracia não é um produto acabado entregue pelos governantes aos governados, mas um processo contínuo de coprodução que requer o engajamento ativo de todos os setores da sociedade.

Mas como garantir que a participação cívica seja informada e engajada, mesmo diante da complexidade e polarização política de hoje? Como podemos cultivar o diálogo construtivo, promover a civilidade e investir na educação cívica e política? Será que essas práticas são essenciais para construir pontes entre grupos diversos e fortalecer uma sociedade inclusiva e democrática?

Refletir sobre essas questões nos desafia a compreender nosso papel na sociedade atual e a buscar novas formas de colaboração e entendimento mútuo. A construção de um futuro comum depende, em última instância, de nossa capacidade de dialogar e cooperar além das fronteiras dos nossos próprios grupos.

Jonathan Heidt (2020) procura demonstrar em seu livro “A Mente Moralista” que a mente não foi projetada para ‘praticar a moralidade’, mas que a natureza humana é intrinsecamente ‘moralista’ e propensa ao julgamento, o que a levaria naturalmente a um ‘senso de superioridade moral’. Para o autor, a mente moralista, ao passo que  possibilitou a criação de grandes grupos capazes de cooperar, independente de laços consanguíneos, também levou ao conflito moral entre grupos.

Desde os primórdios da humanidade, a formação de grupos foi crucial para a sobrevivência e o progresso. Nosso instinto natural nos levou a nos agrupar com indivíduos semelhantes, criando laços que garantem proteção e cooperação. Esse impulso ancestral foi fundamental para a construção de grandes civilizações, nas quais a colaboração entre membros do mesmo grupo permitiu avanços significativos em tecnologia, cultura e organização social.

No entanto, esse mesmo impulso também tem seu lado sombrio. O desejo de proteger os similares pode facilmente transformar-se em exclusão dos diferentes. O surgimento de ideologias extremistas, como o nazismo, ilustra como a identificação exagerada com o grupo pode levar a conflitos violentos e injustiças inimagináveis.

Hoje, enfrentamos um novo desafio: a crescente polarização política e social que divide nossas sociedades. Em um mundo cada vez mais conectado, no qual as redes sociais amplificam vozes e opiniões, é necessário repensar o tribalismo. Será que nosso instinto natural de nos agruparmos com indivíduos similares, buscando proteção e cooperação, ainda nos serve bem nos dias de hoje? Precisamos aprender a dialogar com aqueles que são diferentes de nós. A ideia de colaborar “entre-grupos” se torna essencial para o avanço da democracia.

O dilema do bem comum, como explorado por Albert Hirschman (1970) em seu livro “Saídas, Voz e Lealdade”, refere-se ao desafio enfrentado por sociedades compostas por diversos interesses individuais ou grupais. Hirschman analisa como os membros dessas sociedades enfrentam a decisão entre permanecer engajados e contribuir para o bem coletivo (através da “voz”) ou simplesmente sair e buscar seus interesses de forma independente (através da “saída”).

É interessante pensar de que maneira a psicologia social pode oferecer insights sobre as motivações por trás das escolhas individuais e/ou grupais entre permanecer e lutar por mudanças ou optar pela “saída”. 

Jonathan Haidt destaca a importância de entendermos as bases emocionais que fundamentam nossa ‘moralidade’. Ele argumenta que nossas posições são ‘ativadas’ por intuições profundas e não pela razão. Essas intuições evoluíram ao longo do tempo através de experiências emocionais, culturais e sociais, que podem ser difíceis de articular racionalmente. Então, até que ponto estamos conscientes das motivações subjacentes às nossas crenças e opiniões?

Ao entender que as emoções influenciam nossas percepções, podemos desenvolver mais empatia ao dialogar com aqueles que têm visões opostas. Compreender que suas intuições são tão fundamentais para eles quanto as nossas são para nós pode abrir espaço para um diálogo mais respeitoso e construtivo. 

Nessa perspectiva, a capacidade de raciocinar sobre a vantajosidade de uma emoção é uma conquista evolutiva recente, mas promissora. Pensar de que forma podemos controlar nossos “impulsos moralistas” para sermos realmente capazes de ver através de outra lente.

Fato é que o debate acerca da relação entre emoção e razão é antigo. Platão enfatizava a separação entre razão e emoção e acreditava que um controle rigoroso das emoções pela razão era necessário para alcançar a sabedoria e a virtude. Aristóteles, embora fosse seu discípulo, pensava diferente. Para ele, as emoções eram parte integrante da experiência humana, mas, ainda assim, deveriam ser moderadas e guiadas pela razão prática. Baruch Spinoza, por outro lado, oferece uma perspectiva única sobre a dicotomia entre emoção e razão. Spinoza não vê a razão como uma força separada que controla as emoções, mas como a capacidade de compreender racionalmente as causas dos afetos. Ele enfatiza que o entendimento adequado das emoções leva à aceitação racional delas. 

As ideias de Spinoza vão ao encontro do que diz o neurocientista Antonio Damásio (2013), para o qual “a única maneira de ultrapassar as emoções é o conhecimento: saber analisar as situações com grande pormenor, ser capaz de raciocinar sobre elas e decidir quando uma emoção não é vantajosa”.

Esse entendimento não apenas demonstra a relevância da capacidade humana para reflexão e análise crítica, mas também enfatiza que ao empoderar os cidadãos com conhecimento e habilidades sociais, estamos criando uma base para o diálogo construtivo e a participação ativa. Assim, a democracia se reafirma como um bem público, continuamente moldado e aprimorado pela coprodução de uma sociedade informada, empática e engajada. 

Como sugere Schommer (2023), quando um eixo democrático estruturante como a participação cidadã deixa de ser pauta de um grupo político específico, e quando os conflitos e diferentes visões são considerados, o processo democrático torna-se mais sustentável. 

A coprodução da democracia exige que todos nós trabalhemos juntos para criar uma sociedade que valorize a diversidade, promova o diálogo construtivo e respeite os compromissos morais de cada um. Dessa maneira, podemos assegurar que a democracia não seja apenas um sistema de governança, mas uma verdadeira expressão do esforço coletivo e da cooperação mútua para o bem comum.

*Texto elaborado por Caroline Dornelles Peressutti, no contexto da disciplina Accountability, Controle e Coprodução do Bem Público, do Mestrado Profissional em Administração da Udesc Esag, ministrada pelas professoras Paula Chies Schommer e Elaine Cristina de Oliveira Menezes, com participação das doutorandas Larice Steffen Peters e Loana de Moura Furlan, no primeiro semestre de 2024.

Referências

DAMÁSIO, Antônio. O homem está evoluindo para conciliar a emoção e a razão. [Entrevista concedida a] Julia Carvalho. Veja, São Paulo, 29 jun. 2013. Disponível em: https://veja.abril.com.br/ciencia/o-homem-esta-evoluindo-para-conciliar-a-emocao-e-a-razao-diz-antonio-damasio. Acesso em 07 jul. 2024.

HAIDT, Jonathan. A Mente Moralista. Rio de Janeiro, Alta Books, 2020.

HIRSCHMAN, Albert O. Saídas, Voz e Lealdade: Reações ao Declínio de Firmas, Organizações e Estados. Cambridge: Harvard University Press, 1970.

SCHOMMER, Paula C. Coprodução e accountability em processos administrativos públicos: articulações conceituais e aprendizagens com a prática. In Campo de Públicas: perspectivas e diálogos Ibero-Americanos (p. 316–347). Fundação João Pinheiro, 2023.